Lembro-me de ter visto na adolescência um filme na Sessão de Gala.
Não me recordo o título, mas era um filme antigo, bem ao gosto da
Guerra Fria. Na verdade, um libelo anti-soviético. Nele, um
professor estadunidense, um físico, estava na incapacidade de
resolver um teorema e recebe notícias de que, na Alemanha do Leste,
outro pesquisador havia conseguido resolver o dito problema. Assim,
ele se faz de dissidente do capitalismo e logra ser aceito na
Universidade do dito pesquisador. Uma vez que começam a trocar
figurinhas, o estadunidense descobre a solução para o que lhe
afligia e passa a tentar fugir do “pesadelo comunista”, o que
ele, após muitos percalços, consegue lograr. Uma das passagens que
mais me marcou do filme foi o momento em que ele está no bar e
encontra uma moradora local. Anterior às descobertas da relação do
cigarro com o câncer, o filme mostra os dois fumando, ele, cigarros
da gringa, ela cigarros locais. Ela pega um dos cigarros e lhe mostra
—
eles têm fumo só até a metade. A ideia de que à elite comunista
era reservado o melhor, enquanto que ao povo restava o pior está
presente também em Orwell. Inesquecíveis as passagens onde ele
descreve o oleoso gim que lhe era destinado ou a sacarina, ou a fuga
para tomar café e usar açúcar. Já li em fontes mais confiáveis
que estes armazéns especiais realmente existiam, destinados à elite
do partido. Mas, por estas bandas tropicais, é diferente?
Hoje
provei o “café gourmet”. Uma delícia, café de verdade. Estou
até agora aquecido
pela boa bebida e totalmente alerta. Tomei duas xícaras. Paguei o
dobro do preço, mas, pela primeira vez, desde a ocupação da
Prefeitura do Campus São Carlos da USP, em 2010, onde tínhamos um
grande estoque de café moído na hora, tomei um produto de primeiro.
Tinha me esquecido do gosto, dos aromas, da consistência, da cor.
Acostumei-me a tomar o nada bom café Caboclo, que de café só tem a
cor e o nome.
Para
provarmos um produto de qualidade, é necessário desembolsar mais
dinheiro, ou seja, mais tempo de vida. Para quem não pode pagar, e
são muitos nos dias atuais, um produto de segundo, misturando café
e sabe-se lá o que, pois o produto não é puro. Criou-se uma nova
aristocracia, pior que a velha nobreza de pescoços tão atraentes.
Fico imaginando o que as verdadeiras elites bebem e comem. Uma
nobreza pautada no dinheiro e, além disso, nas heranças. Não, não
estou falando da sua casa de COHAB, mas da herança que terão os
filhos de Elon Musk, de outros
bilionários e, em breve, trilionários. Um abuso, não?
Essa
discrepância entre os produtos de elite os produtos para as classes
baixas era justamente o que a direita criticava nos países
socialistas e, veja-se, reprodu-la exatamente, cada vez mais.
Treslendo Olavo (estou preparando um trabalho sobre ele) é comum que
ele repita um bordão falsamente atribuído a Lênin: acuse-os do que
você é, aja como você os acusa de agir. A citação é mais ou
menos esta. A ideia é clara: seja um hipócrita. O dito aplica-se
perfeitamente aos bolsonaristas, falsos moralistas e falsos cristãos
em geral, sem contar os membros da milícia ora no Planalto.
A
dicotomia popular-elite é que deveria acabar. Foi justamente contra
os privilégios da velha aristocracia de sangue que a burguesia e o
povo se uniram para deitar abaixo. Por que os endinheirados têm que
ter a prerrogativa de beber café de primeira, enquanto a maioria
amarga (porque isso que eles chamam de café é amargo; o café de
verdade tem notas doces, ao menos do terroir de onde o que eu bebi
veio) um produto indigno? Por que? Há alguma boa razão? Por que
temos que beber bebida láctea ao invés de leite, mistura condensada
em vez de leite condensado, preparo sabor queijo em vez de queijo,
sobrevivência em vez de vivência?
Isso
só dá mais azo para o óbvio ululante: não vivemos em uma
democracia se as pessoas são divididas em categorias no que tange ao
acesso a bens. Classe A, B, C, etc.: subdivisões que escondem o
simples fato de que, na república das bananas, todos são iguais
perante a lei, mas alguns são mais iguais que os outros, como
escreveu Orwell, mirando os países socialistas e acertando em cheio
a miséria do capitalismo.