No latim abstraho
significa
“separar de”, “destacar
de”, “afastar de”. É um verbo de uso corrente, como também do
português, origem quase intacta de onde sorvemos este como muitos
outros vocábulos. Meillet e Ernout, no seu Dicionário
etimológico do latim, não
notam o termo o que dificulta a tarefa de precisar suas origens. Mas
temos um palpite. Assim como nas línguas modernas como alemão e
russo, e também o português, muitas palavras do latim são formadas
justapondo termo mais primitivos. No caso, são claros os termos
originais: a preposição ab-,
grafada abs-,
e o verbo traho.
Ab indica
um movimento para fora, um afastamento, uma separação, ao passo que
traho
indica tirar, arrastar, puxar. Assim, abstraho
indica o movimento de puxar para fora, de arrancar de um lugar
interno para outro, desta vez externo. Do termo abstraho,
veio o nosso abstrair e os vocábulos derivados, como abstrato,
abstração, etc.
Na virada
do século retrasado para o passado, Windelband, em plena onda
neokantiana na Europa, introduziu dois termos para tratar do problema
que estava posto e que já era o de Kant: o descompasso entre as
ciências naturais e as humanas. As primeiras faziam progressos a
olhos vistos, calcadas na matematização da natureza e em um caminho
que parecia seguro, com resultados práticos que se tornavam mais e
mais acessíveis a todos através
das conquistas da técnica.
Já as segundas, envoltas em querelas, escolas e seitas, se debatiam
em um sem fim de polêmicas, que, na comparação, pareciam lhes
tornar infrutíferas e bizantinas. A distinção que Windelband
introduziu foi aquela entre as ciências nomotéticas e as ciências
idiográficas. As primeiras buscam por leis universalmente válidas,
por constantes aplicáveis a qualquer parte do kosmos,
cujos resultados serão sempre os mesmos; ao passo que as segundas se
debruçam sobre eventos específicos, sobre acontecimentos que
ocorrem uma vez somente e são irrepetíveis no tempo e no espaço: é
a lógica do acontecimento.
Essa
distinção não fazia muito sentido para muitos dos cientistas das
humanidades. Estávamos no tempo do positivismo e mesmo o marxismo
parece ter pretensões nomotéticas. Ao mesmo tempo, desenvolvia-se
um forte apelo idiográfico nas humanidades, uma busca por
compreender os fenômenos em seus vincos específicos, em seus
contornos que os particularizavam na miríade do plasmado.
Ora, esse
debate se estende, a bem da verdade, até hoje, se pensarmos, por
exemplo, na oposição entre foucaultianos e marxistas. Foucault
situava a própria contemporaneidade filosófica no opúsculo
kantiano sobre as Luzes, onde, nos diz, a questão é saber e
delimitar o que torna o presente presentemente este presente, e não
um outro. É a sua ontologia de nós mesmos, ontologia histórica ou
outro nome que se dê. Já os marxistas se apoiam em outra sorte de
pressupostos, ao menos se dermos razão a Lukács; ora, nos diz, o
fundamento de toda coletividade humana é o trabalho, de modo que é
a ele que devemos nos dirigir caso busquemos compreender e fundar
uma ciência social.
Assim,
Foucault vai se interrogar, especialmente em seu período mais
político, o que constitui o presente como tal, o que o tornou
exatamente isto que ele é. Um dos traços que ele parece notar é
que a política é compreendida como guerra. No curso Em
defesa da sociedade
marco absoluto de seus trabalhos, ele vai se interrogar: onde a
política foi pensada, pela primeira vez, como guerra? Retornando no
tempo, ele se detém nos processos que conduziram ao fim da Idade
Média e começo da modernidade, não à toa, a nosso ver (como
também no de Alliez e Lazzaratto), o mesmo período onde se armava o
capitalismo. Fica nas entrelinhas de Foucault que teria sido com o
capitalismo que primeiro se pensou a sociedade e as relações
políticas como organizadas em torno de termos e práticas belicosas.
Assim, profetizam Alliez e Lazzaratto, nosso trabalho consiste em por
fim a isso e pensar a política em outros termos, que eles não
indicam.
O
capitalismo se fez, nos dizem, não somente através de guerras
reais, onde exércitos se enfrentam, mas também, e sobretudo,
através daquilo que chamam de guerras
de subjetividade,
onde populações inteiras foram enquadradas visando formar esse
bicho estranho, esse que é o servo voluntário: o cidadão moderno,
passivo, submisso, mandável, “fútil, cotidiano e tributável”.
Na Idade Média e em boa parte do período posterior não era desse
modo: as revoltas eram constantes, os massacres também e as guerras,
sem estarem organizadas em torno de um poder centralizado, de um
Estado soberano, se faziam e desfaziam às milhares.
Foucault,
entretanto, erra ao indicar que a política e a sociedade foram
pensadas como guerra primeiramente nos estertores da Idade Média. Já
na Antiguidade um outro filósofo pensou a política e, mesmo, o
kosmos
como guerra e foi Heráclito, como se pode ler em vários fragmentos,
especialmente no 53 DK.
Claro, antes dele, já com Anaximandro e, depois, com Empédocles, já
se entrevia outros usos para a noção de guerra além daquele
estritamente bélico. Esses usos outros estão espergidos pela
história do pensamento, seja em formas metafóricas (como Agostinho
na Cidade de deus),
seja em proposições mais diretas, como Hobbes e sua guerra de todos
contra todos.
O uso que
Foucault identifica no crepúsculo do medievo é a noção de guerra
de raças, a qual, segundo ele, foi redundar no nazismo. Essa noção
de que existem raças e de que elas estão em luta teria surgido, nos
diz, especialmente durante a revolução inglesa, mas não como um
discurso de opressão, como foi o nacionalsocialismo, mas, sim, como
uma arma de guerra dos setores oprimidos, contra uma nobreza de
origem estrangeira, normanda. Mas já durante o Iluminismo teria sido
recuperado por setores da nobreza francesa a fim de pressionar o rei
absolutista por mais direitos.
De toda
forma, enquanto a prática política mais bem acabada da noção de
guerra de raças
é o nazismo, sua expressão teórica prévia encontra-se formulada
por uma série de teóricos do século XIX, como Gobineau, Gumplowicz
e Chamberlain. Os textos desses autores não guardam o mesmo
estatuto. Os dois primeiros se pretendiam cientistas e faziam a
ciência de seu tempo. Já Chamberlain escreveu uma espécie de
manifesto racista, ainda que fundado nas pesquisas de autores, tais quais os
previamente citados. Era o clima do século, onde a medicina e a biologia faziam
avanços incríveis e as bases do período
seguinte, calcado em
massacres, se punham. É o século de afirmação das diferentes
nacionalidades, do chauvinismo, no triunfo do Estado-nação, no
positivismo, enfim.
Gobineau
escreveu muitos livros, já envoltos em um dos mitos do periodo, o
arianismo. No Ensaio sobre
a desigualdade das raças humanas,
livro gigantesco, em vários tomos, ele escreve uma espécie de história
racial do mundo, narrando como a
organização global
contemporânea
e as antigas civilizações são fruto de um festim de povos, que se
massacram, fusionam e dão à luz diferentes civilizações Cada povo
seria dotado inatamente (hoje diríamos, geneticamente) de qualidades
próprias. Uns, espertos, fortes, decididos, teriam características
para serem senhores; outros, pusilâmines, fracos, desprovidos de
potência, deveriam ser mandados. Gobineau escreve nos marcos de um
pensamento ainda religioso, se diz cristão e crê na salvação dos
brancos dos perigos das civilizações femininas e emasculadas, como
ele as divide.
Esse
gênero de pensamento encontra ecos em Gumplowicz, o qual radicaliza
Gobineau e vai propor modelos abstratos a fim de se pensar o
desenvolvimento histórico. Para ele, em uma paródia de Comte no
Curso de filosofia
positiva,
haveria vários níveis de processos na realidade: cosmológico,
físico, químico, vegetal e animal. Ora, esses processos vão do
mais abrangente, o qual, portanto, determina os demais, ao menos
abrangente, que é determinado pelos demais, assim como, para Comte,
as ciências naturais mais gerais, como a álgebra e a geometria,
determinam a física social, mais concreta e menos abstrata, passando
pela física, química, etc. Para Gumplowicz,
a história do mundo é a história de como as raças dominaram umas
as outras, como impuseram entre si regimes políticos, visando
favorecer um povo em detrimento do outro. A noção de raça que ele se vale,
não, é, no entanto, biológica. Ele cita vários termos, como
Stamme
(estirpe), Nation (nação), Volk (povo), Rasse (raça), etc. No
princípio haveriam famílias isoladas. Estas, organizadas em torno
de um patriarca, seriam a origem do Estado. Uma família de uma mesma
tribo dominaria a outra, dando origem, destarte, aos diferentes
Estados, com o pater
famíliae
aparecendo enquanto embrião do rei. Formado um povo, este invadiria
outro povo mais pacífico e lhe imporia sua organização social,
formando, assim, com o tempo, um novo povo, uma nova raça, em um
crescendum que foi redundar nos grandes e coevos Estados-nação.
Gumplowicz mostra, nesse como em outros textos, certa preocupação científica.
Para ele, ao contrário de Comte, o qual ele censura, a ciência
deveria entender, não colocar o que poderíamos chamar de axiologia
em seus julgamentos, muito
menos fins enquanto eixos organizadores do discurso, tal como fez o positivismo, com sua religião da humanidade, por exemplo. Vale, para ele,
a máxima de Espinosa: nem rir, nem chorar, compreender.
A obra de
Gumplowicz é um verdadeiro marco. Se bem ele morra ainda nos
princípios da 1ª Guerra, já se formava todo o caldo cultural do
nazismo, o qual conduziria o mundo a seus dias mais sombrios. Ora,
essa noção de “guerra de raças” é retomada por teóricos
nazistas e pelo próprio Hitler. Em
Mein Kampf,
há uma construção do judeu como uma espécie de vírus social, com
intenções hegemônicas e efeitos deletérios. O judeu, diz, polui a
raça, envenena o sangue puro dos alemães, é uma mácula que deve
ser extirpada. Enquanto Gumplowicz, bem como Gobineau, e mesmo
Chamberlain, outro teórico com profundas influências no nazismo,
sabiam que “não há raça pura”, uma vez que todas são frutos
de múltiplas mestiçagens ao longo da história, Hitler defende uma
espécie de higiene
genética no povo alemão. E isso é só a ponta do
iceberg.
As mulheres, por exemplo, deveriam ser donas-de-casa e procriar. O
próprio modelo de país que Hitler nutria era um no qual não
haveria grandes cidades, mas pequenas vilas, onde os perigos da vida
urbana, com seu ambiente que convida ao desregramento moral, seria cortado pela raiz. Para que o povo alemão,
superior em tudo aos demais, especialmente aos judeus e negros,
pudesse sobreviver e, assim, se constituir em uma raça de senhores
de toda a humanidade, ele precisaria de um espaço vital, de uma
ampla área dotada de recursos naturais, de onde ele pudesse retirar
seu sustento. Um povo pelo qual Hitler nutre particular desprezo são
os eslavos. Lembremos que Hitler era oriundo do Império
Austro-húngaro, e que este compreendia várias etnias eslavas. Há,
em Mein Kampf,
queixas e mais queixas sobre uma eslavização do Império, sobre
como os eslavos, feito ratos, invadiam as dependências do outrora
pasteurizado povo austríaco-germânico.
Sabemos
o resultado desse gênero de pensamento.
Ora, e o
que tudo isso, exposto nos últimos parágrafos, tem a ver com os primeiros parágrafos, sobre ciência nomotética
ou idiográfica? Tudo. Gumplowicz pensava que a guerra
de raças
seria a base de uma sociologia científica, verdadeiro ponto
arquimediano que prometia explicar todas as vicissitudes da vida
social. Era, assim, nomotético. Já Foucault, um século depois, com
um mundo já calejado pela experiência do nazismo, recupera bem a
raiz dessa noção, os trabalhos de Boulainvilliers, um pensador que,
segundo Jonathan
Israel, estudioso do século XVIII, seria já iluminista.
Boulainvilliers, um nobre francês com idade e tempo de vida próximos
aos de Leibniz, escreveu como a nobreza francesa era de origem
germânica, ao passo que o povo é galorromano. Ao longo
do tempo, esse gênero de noção foi desembocar em autores como
Gumplowicz,
Gobineau, etc.
Por outro
lado, as duas outras vertentes das ciências humanas nomotéticas, o
marxismo e o liberalismo, redundaram no estalinismo, ao qual Foucault
não via com bons olhos, e no neoliberalismo, o qual ele também
denuncia. Assim, para Foucault, é como se as ciências nomotéticas
—
as leis da história e da sociedade, as histórias de todas as
formações sociais, as constantes espaçotemporais, as ontologias
(em sentido duro), etc. —
trouxessem consigo o perigo de regimes opressores. Todas elas
redundaram em formas de organização da sociedade que acabavam com a
liberdade humana, promoviam miséria e massacres. Foucault era,
decididamente, um idiográfico.
Por isso,
Roberto Machado, grande intérprete brasileiro de Foucault, podia
afirmar que não havia em sua obra teoria do poder, somente
descrições históricas, precisa e recortadas. Como notamos em
alguns textos, entretanto, e fomos rechaçados pelos pares, há
pressupostos ontológicos na obra de Foucault, como não poderia
deixar de haver. Esses pressupostos são, eles mesmos, de ordem
conflitual, assumem que o mundo é um espaço vincado por querelas e
completamente artificial, isto, não natural. Tudo é politizável,
nada brotou da terra nas sociedades humanas; ao contrário, são
frutos da liberdade criativa e multifacetada de uma espécie cujo
único laço é o liame biológico, pois todo resto a separa. É como
se Foucault, querendo se esconder do Sol, somente se expusesse aos
raios lunares, desconhecendo, destarte, que esses também são raios
solares. Pode-se dizer, pois, que mesmo uma ciência idiográfica
carrega consigo traços nomotéticos, os quais são impossíveis de
se fugir, já que estão embutidos nas concepções mais gerais e
fundamentais —
filosóficas?
—
do autor. Ou, em outros termos, para poder jogar fora a escada de
Wittgenstein, Foucault, primeiro, teve que trepá-la. E ele subiu
alto, bem alto.