Panorama da estratégia
Estratégia. A ideia é muito antiga. Em sua Anthologie Mondiale de
l’estratégie Chaliand, um dos maiores especialistas vivos no tema, regride
até o Egito antigo para mostrar que desde lá a idéia de se mobilizar dados
meios a fim de realizar certos fins já estava presente. Mas o nome estratégia é
de estirpe grega. É tarefa hercúlea pesquisar, nas milhares de páginas que nos
sobraram dos sábios helenos, qual foi a primeira aparição do termo e qual a
idéia que era expressa, tarefa esta que recai sobre o pesquisador e que algum
dia realizaremos. Por ora, nos contentaremos em fazer alguns apontamentos
etimológicos; depois, em um salto milenar, mostraremos algumas das principais
concepções contemporâneas de estratégia — Clausewitz, Liddel Hart e Beaufre —
para, por fim, chegar ao nosso objeto propriamente falando, tal seja, a
utilização sui generis que encontramos na obra de Foucault do conceito
de estratégia, no que vimos chamando de conceito filosófico de estratégia, uma
idéia de filosofia da história.
Os gregos eram um povo muito belicoso. Não à toa, foram eles que, na boca
de Heráclito, disseram que a guerra é de todas as coisas pai, no fragmento 53
DK. Mas o conceito de estratégia não guarda raiz com o pólemos, stásis,
éris, agon ou palé, termos gregos que indicam, com matizes de
significado, a guerra. É na idéia de stratos, exército, e um de seus
derivados, strategos, general, que encontraremos a raiz comum, segundo
Chantraine (1968). A língua grega, pela sua precisão, permitia que se
substantivasse as ações no neutro ou certos nomes para dar uma idéia de
pertencimento ou de elementos gerais. Assim, philosophia e ta
philosophia, as coisas da filosofia; stratos e ta stratia, as
coisas do exército; strategos e ta strategia, as coisas do
general, quer dizer, a conduta do exército, a hoplomaquia, as melhores
condições de combate, inclsuive as metereológicas, como nos revelam tratados
antigos de estratégia, como o de Vegêcio, etc. A noção por trás de estratégia,
em seu sentido grego, é que se trata das coisas relativas ao general, a arte
deste, seus negócios. É curioso que Péricles, em seu famoso discurso à Boule
grega por ocasião do início dos conflitos da Guerra do Peloponeso, embora
indique uma estratégia de conduta na guerra a porvir, não emprega o termo
estratégia. Do mesmo modo Xenofonte, narrando a retirada dos dez mil, não
utiliza o termo. Isso pode indicar que ele ainda não estava suficientemente
difundido, ou, senão, que as idéias ainda não estavam tão claras para os
gregos, nossos ancestrais intelectuais.
Esta última hipótese talvez seja a mais forte, visto que somente muito
tardiamente o termo estratégia foi popularizado e aceito universalmente. Ainda
Napoleão não o utilizava, preferindo se valer da noção de grande tática. É com
Bülow, um intérprete teutônico das guerras revolucionárias francesas e
napoleônicas, que a noção se populariza. Bülow intentava matematizar, bem no esprit
du temps, a guerra, tornando-a uma ciência exata; em seu pensamento, a
estratégia é reduzida a esquemas lógicos, perdendo um dos aspectos que a
etimologia revela que é a importância do comandante, no que Clausewitz chamará,
talvez influenciado pelo romantismo, do gênio militar.
É praticamente consenso que o maior escritos militar da história do
Ocidente foi Clausewitz. Muitos vieram depois dele, e muitos antes; mas sua
monumental obra é um verdadeiro divisor de águas, seja pela riqueza das
proposições, ou também pela duração de sua influência. Rapoport chega a flar de
uma era clasewiziana das relações internacionais, que cobriria a maior parte do
século XIX e cessaria com a Primeira Guerra Mundial, quando novas filosofias da
guerra emergiriam, como a leninista. Algumas proposições clausewitzianas se
tornaram verdadeiro senso comum, como aquela segundo a qual a guerra é a
política continuada por outros meios, máxima que Foucault inverte, e que
teremos a chance de comentar. Quanto à estratégia, o pensador militar prussiano
ficou famoso por propor que a estratégia é arte de organizar as batalhas
visando certo fim, fim este estabelecido pela política. A tática seria a
conduta na batalha propriamente falando, de modo que tática e estratégia mantêm
uma interação dinâmica, com a estratégia determinando a tática.
No esquema de Clausewitz, que alguns, como Meira Mattos, seguem, a
política dita os fins, a estratégia os executa. Podemos abstrair para a
seguinte tese: a filosofia política, em suas elucubrações, dita as
características mais gerais de uma sociedade. A ciência política viabiliza as
construções da filosofia política e a estratégia executa, quando estes fins
envolvem força militar. Por exemplo, peguemos uma das principais filosofias
políticas contemporâneas, o marxismo. Marx e Engels, em um grande esforço,
plasmaram as diretrizes das novas sociedades em seu aspecto mais geral. Outros
e outras — e são muitos — buscaram viabilizar esta nova sociedade já não mais
no âmbito da filosofia política, mas no âmbito da ciência política e, por vezes,
se valeram de um instrumento estratégico, a guerra revolucionária, que derruba
o poder burguês e, em seu lugar, coloca o poder nascente do proletariado.
Veremos que, hodiernamente, o conceito de estratégia expandiu-se, não estando
mais restrito à mera utilização violenta da força; embora Clausewitz, em
algumas passagens, deixe claro que, em níveis elevados, estratégia e governo se
confundem, é sobretudo do âmbito da organização das batalhas que ele a situa.
É curioso notar que, para outras filosofias políticas, como o anarquismo,
a relação entre fins e meios, ou entre estratégia e tática, é diferente. Para
os anarquistas, são os meios que determinam os fins, quer dizer, a forma como
empreendemos a luta hoje deve refletir a sociedade que almejemos. Ou no dizer
de alguém como João Bernardo, que não é anarquista, mas marxista libertário, a
autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas. Isto é
especialmente claro nas proposições dos sindicalistas revolucionários e
anarcossindicalistas, que propunham que o sindicato, órgão de organização das
lutas operárias contra o capital e sua sociedade, seria o embrião da gestão
econômica da nova sociedade.
Para Clausewitz, enfim, a estratégia é a organização das batalhas ou das
campanhas, quer dizer, do enfrentamento belicoso, âmbito da tática, dentro dos
fins visados pela política. Na batalha, o objetivo é tomar o centro do
dispositivo inimigo, se valendo de toda a força possível, a fim de desorganizar
este dispositivo e desbaratar as forças adversárias.
Esta visão, um tanto quanto reducionista do intrincado pensamento
clausewitziano, foi chamada por alguns comentadores, como Liddel Hart, de estratégia
direta. A nosso ver, malgrado deixe passar certas minúcias, a
caracterização é válida, e por isso a adotamos, especialmente porque outro de
nossos interlocutores,como Beaufre, se valem dela, de modo que a uniformidade
terminológica será de grande valia.
Liddel Hart foi um escritor prolífico, sendo autor de muitas obras. Gozou
também de certa influência política. Sua principal proposição é a noção de estratégia
indireta. Analisando diferentes campanhas ao longo da história, de Lisandro
à Segunda Guerra Mundial, Liddel Hart argumenta que as principais vitórias
militares da história foram obtidas por meio de uma aproximação indireta ao
dispositivo inimigo. Por exemplo, cortar-lhe as linhas de comunicação ou a
linha de suprimentos; se valer da ordem oblíqua de batalha ou flanquear,
surpreendê-lo. Tudo isso visa a desorganizar a formação de batlha do inimigo
enquanto nós mesmos, seguindo o princípio da economia de forças, atuamos em
várias frentes, a fim de confundir o inimigo, para só então, com as forças adversárias desdobradas em
muitas frentes, aplicar o golpe decisivo.
Liddel Hart propõe ainda a noção de grande estratégia, quer dizer, a
política de guerra, que implica pensar as condições para a paz, sendo esta o
verdadeiro objetivo da guerra. Para ele, a diplomacia, a economia e o campo
psicossocial são formas de pressionar o adversário, enfraquecê-lo, sangrá-lo, para,
só então, atacá-lo. Haveria uma relação dinâmica entre grande estratégia e
estratégia, e o bom comandante, submetido, geralmente à grande estratégia,
deveria saber manobrar em seus limites de modo a obter resultados favoráveis.
Nem sempre, nos diz Liddel Hart, houve uma opção consciente, nas campanhas
vitoriosas, pela estratégia indireta; muitas vezes, ela é fruto do contexto. Em
sua epígrafe, ele coloca algumas citações, por exemplo, de Sun Tzu, onde se
afirma que o maior general é aquele que vence sem sequer lutar. Isto ilustra
muita bem sua posição, e dá a tônica de seu livro Strategy. Assim,
pode-se dizer que Liddel Hart e Clausewitz divergem, posto que, para este, a
forma de vencer a guerra é obter a batalha decisiva entre dois amassamentos
humanos contrapostos, com elevado custo humano e material; para Liddel Hart, a
batalha é seguimento da manobra, e o melhor general será aquele que ganhar sem
combater. Por isso apontamos acima que houve um sistema clausewitziano de
guerra, cujo ápice é a Primeira Guerra Mundial, onde os exércitos buscavam,
através da conscrição ativa, aumentar seus efetivos e esmagar os adversários.
Como se sabe, e Paret trabalha estas questões, Clausewitz não foi um teórico da
guerra naval, muito menos das potencialidades da mobilidade que a mecanização
desencadeou. Ademais, distinguia entre a guerra absoluta, onde a violência é
sempre crescente e ilimitada, e a guerra real, onde a política modula a
aplicação de forças. Liddel Hart critica Clausewitz, visto que este não abordou
as guerras de objetivo limitado, realidade bélica do mundo, sempre tendo
pensado em guerras onde a aniquilação do inimigo era realidade.
Esta característica do pensamento estratégico de Clausewitz é retomada
também por Beaufre, o último militar que analisaremos, posto que ele fecha este
debate. Beaufre aponta que Clausewitz com suas proposições selou o destino da
Europa, posto que sua influência e a busca cega pela aniquilação do inimigo fez
com que as potências européias se destruíssem, determinando assim a perda de
sua supremacia no mundo. Contudo, ao invés de propor outro modelo estratégico,
como o direto ou indireto, Beaufre sustenta que a estratégia é um método de
pensamento, é o conhecimento de quando se adotar certos meios, disponibilizados
pela política, para certos fins, determinados pela política. Para ele, a
estratégia alargou-se e, de mera questão militar, tomou a variadas expressões,
para utilizar a terminologia do Exército brasileiro, tais quais a econômica, a
diplomática, a científica, a psicossocial e também a militar. A questão é como
coordenar estas distintas estratégias objetivando os fins fixados pela
política. Pode-se dizer que, para Beaufre, Clausewitz e Liddel Hart estão
equivocados, porque a melhor estratégia não é nem a indireta nem a direta, mas
a adequada à determinada situação. Ele nos oferece modelos de ação, segundo
tenhamos inimigos fortes ou fracos, meios suficientes ou insuficientes, etc.
Para, a situação na década de 1960 era a de luta de estratégia indiretas e a
URSS estava ganhando, visto o levante geral do Terceiro Mundo contra a
supremacia estadunidense. Esta situação de estratégia indireta era reforçada pela questão da arma atômica,
que impedia um conflito aberto entre as potências. No prefácio ao livro de
Beaufre, Liddel Hart escreve que concorda com as posições do general francês,
de modo a ser possível afirmar que Beaufre fecha um debate de cento e cinqüenta
anos.
Um conceito filosófico de estratégia
Enquanto Beaufre escreve seu livro
(1963), Foucault grajea fama crescente.
Em seu segundo livro, Histoire de la folie à l’âge classique (1961), o
filósofo francês escreveu um prefácio, depois substituído na década de 1970.
Entre um e outro uma diferença: em toda a história da loucura o termo
estratégia não aparece, mas o termo stratagème. Já no prefácio de 1972,
vemos o termo estratégia se delinear claramente. É como se, no meio do caminho,
Foucault repentinamente descobrisse a noção de estratégia e passasse a se valer
dela. Se na Archéologie du savoir (1969) ele se valerá deste conceito,
mas em um contexto muito próprio, é sobretudo em suas produções da década de
1970, década do Foucault militante, interessado nas relações de poder, que ela
se desdobrará. Atualmente pesquisamos exatamente quando o conceito apareceu
pela primeira vez, qual seu significado e quais as mutações conceituais que
passou. Trata-se de uma pesquisa em curso, de modo que agora apresentaremos os
resultados parciais.
A dar razão a Castro (2016),
Foucault utilizou o conceito de estratégia em quatro sentidos diferentes: 1º a
racionalidade (meios) utilizada para se obter determinados fins; 2º os
movimentos de um jogador em um jogo, a partir do que pensa de como os outros
jogadores se comportarão; 3º os movimentos destinados a privar o inimigo de
seus instrumentos de luta; por fim, 4º os meios utilizados para manter em
funcionamento um dispositivo de poder.
Polemizamos com Castro na medida em que acreditamos poder encontrar em
Foucault um outro sentido de estratégia. Em uma discussão, uma interlocutora de
Foucault fala que, na obra deste, existe uma estratégia sem sujeito. Com
isto ela quer apontar que, dada a belicosidade do devir, cada posicionamento é
tático, com conseqüências estratégicas. Assim, pode-se afirmar que a
biopolítica é uma estratégia sem sujeito, na medida em que foi se delineando
historicamente e, sem ser pensada por alguém enquanto estratégia de dominação
social, constituiu-se desta maneira. Como o termo estratégia sem sujeito dá a
impressão que não há sujeitos envolvidos, preferimos chamar de estratégia
histórica; o que não há é um gênio estrategista, na sombra do mundo,
pensando em como dominar a todos. O dispositivo carcerário, o grande
internamento, o dispositivo da aliança; todos eles são estratégias históricas,
plasmadas nos combates que determinaram o mundo contemporâneo. Certamente há
outros e, no trabalho de pesquisa rumo a uma ontologia do presente, devem
aparecer.
Como se vê, se trata de um conceito filosófico de estratégia que guarda
raízes no alargamento contemporâneo da noção de estratégia. Antes tratada como
mero negócio do general, passar a aumentar seu escopo com Liddel Hart e sua grande
estratégia, até ganhar um alcance inaudito com o general Beaufre. Se na
guerra e mesmo na paz, há variadas expressões do poder nacional em disputa, não
seria o caso de tomar a própria formação do poder nacional, quer dizer, de uma
sociedade com sua expressão política mais comum, o estado, como frutos de uma
guerra, de um conflito?
Isto nos encaminha para outra questão. Como se sabe, no curso de 1976 no Collège
de France, Foucault dedicou-se a analisar o pensamento de Clausewitz,
propondo uma curiosa inversão: se o militar prussiano propunha que a guerra é a
política continuada por outros meios, já Foucault pensará que a política é a
guerra pensada por outros meios. As diferentes sociedades estariam tomadas por
conflitos de toda ordem; isto dá azo para que Gros (2012) fale de um
neomarxismo de Foucault. De toda forma, o pensador francês se encaminha no
sentido de analisar o discurso histórico de certa nobreza francesa do século
XVIII, que analisava a formação da
sociedade francesa em termos de guerra, no caso guerra de raças. O estado seria
fruto de um conflito, as leis, a paz civil, tudo isso, prolongação de uma
dominação principiada pela guerra. Para manter esta dominação, o estado se vale
de variados meios, inclusive de estratégias históricas, como a biopolítica. Mas
a luta não se restringe ao estado, englobando meios paraestatais e
infraestatais, como se pode ver em Surveiller et punir.
Conclusões
Passamos em revista alguns dos
principais conceitos contemporâneos de estratégia, seguindo um fio de
continuidade. É fato que deixamos de lado produção expressiva, como Mão Tse
Tung e outros teóricos das guerrilhas, dentre outros. Mas tentamos mostrar como
há um diálogo entre pensadores militares de primeira grandeza, buscando incluir
Foucault como se não militar, ao menos como tendo contribuído com algum aspecto
do pensamento estratégico.
Vimos que Clausewitz propunha certa
estratégia, Liddel Hart outra, e Beaufre arremata a questão, defendendo que a
estratégia é sobremaneira um modo de pensamento diante de uma situação de
conflito, destinada a fazer com que nossos interesses vençam os do adversário
através do que ele chama de dialética das vontades. A estratégia se torna
assim, sempre estratégia em certa situação, nunca uma perspectiva absoluta de
sempre vencer os conflitos a partir de um trunfo dado de uma vez por todas.
A contribuição de Foucault, nestes
termos, pode ser a de pensar como uma sociedade se torna o que é, como certa
característica do poder nacional se formou, os modos como uma sociedade se
autoproduz, em uma perspectiva belicosa, de conflito de interesses e posições.
Com Foucault, a estratégia adentra o luminoso reino da filosofia para, uma vez
lá, fincar raízes e nos ajudar a desvendar o presente e a pensar como alterar
uma sociedade visando certo objetivo estratégico, visado pela política, na
hierarquia de saberes que estabelecemos.
Bibliografia
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à estratégia, RJ: BIBLIEX, 1998
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