O
Petit Gaffiot, um dos principais dicionários de latim, não dá
entradapara o termo revolutio, mas para os termos revolutus,
partícipio do verbo revolvo, e este último, que significa voltar,
retornar, ou seja, re, indicativo de repetição, e volvere,
voltar, mexer. Sabe-se que a utilização do termo revolução para indicar mudanças
sociais é recente. Até bem pouco tempo, essa palavra indicava o movimento dos
astros, que sempre retornam suas posições prévias, em um tempo onde a física
moderna ainda engatinhava e antes disso. Atualmente, o termo indica a mudança brusca
de rumo de algo, e, nas ciências humanas, a emergência de uma nova racionalidade
de organização. Assim, termos como revolução científica e revolução dos
costumes, vieram se juntar às ideias de alteração repentina de um governo ou
sociedade ou do movimento dos astros, esta última acepção caindo em desuso.
Em
um de seus textos, não me lembro ao certo qual, Foucault vaticina: se a era contemporânea
principiou por uma revolução, outra há de dar-lhe cabo. Com isto, Foucault
prossegue uma tradição, de cariz socialista, que indicava a necessidade de uma
revolução, nos dois sentidos que o termo comporta: a inexorabilidade da revolução
ou a carência que dela padece as sociedades hodiernas. E, em meados do século
passado, essa dupla acepção pareceu se confirmar, já que, em todos os
continentes, revoluções se processaram, governos caíram, sociedades se
transformaram.
Como
diz Emília Viotti, o século XIX viu as revoluções liberais, o XX, as revoluções
socialistas. E o XXI? Permanece válida a ideia de revolução? Mais que a ideia,
o objetivo da revolução, como panaceia de nossos males, é ele atual? Caso não,
como se processarão as mudanças sociais? Somente por revoltas, insurreições? Ou
as lutas sociais devem ser absolvidas pelos debates parlamentares, local de
criação de importante nicho de normatividade? Caso sim, quem será o sujeito
dessa revolução, quem a fará? Ou compete às forças interessadas criar esse
sujeito? Mais ainda: qual há de ser o caráter dessa revolução e como esse
caráter se adaptada ao Zeitgeist, visto as demandas emergentes que se
materializaram em nossa sociedade desde a queda da URSS, evento considerado
marco nessa seara? Quais seus objetivos? E seus métodos? Ainda há necessidade,
no sentido bígamo do termo, de revolução, enfim?
É
nesse debate, com muitos autores envolvidos, verdadeira messe teórica, que
queremos nos posicionar. Nosso estudo é parcial e há de subsidiar um artigo e,
pretendido, um livro. Assim, estudo em progresso, por hora esboçaremos algumas
reflexões prévios, expondo à sala escura da crítica nossas ideias e, destarte,
incentivando um debate importante para o conjunto da sociedade, sem pretensões
de originalidade ou de abrangência.
Os
problemas se avolumam; nisto todos estão de acordo. Liberais, fascistas,
comunistas, anarquistas. Cada qual a seu modo pensa que a sociedade global está
em um rumo equivocado e necessita de mudanças imperiosas. A diferença entre
esses grupos é que o hegemon é liberal e possui poder de facto para
impor ao restante do planeta um rumo. Nesse sentido, os liberais não acreditam
em revolução como respostas às questões prementes. A burguesia liberal
abandonou as armas da oposição, tornando-se a posição que todos atacam, o
extremo-centro; assim, as mudanças propostas pelo hegemon nada mais são
do que dar os anéis para não perder os dedos. Pequenas concessões e, se o mundo
se prepara para sair da era dos combustíveis fósseis, as mudanças serão
paulatinas, não bruscas, como geralmente se associa a uma revolução.
Restam
os extremos. Uma extrema-direita fascistas, com cariz diferente conforme se
esteja de um ou outro lado do planeta, mas associadas à noções saudosistas, de
restauração de um passado ido, onde não havia migração, não havia tantos negros
em Paris, e o Ocidente reinava indiscutivelmente, assentado nas colônias. A fé
era o principal denominador comum das diferentes sociedades, constituindo a
religião a raison d’être da vida de milhões. Ou seja, trata-se de uma
revolta contra o mundo moderno, contra a ciência, contra o materialismo
crescente, do liberalismo e socialismo que trocaram as considerações ética, uns
pelo vil metal, outros pelo interesse de classe. A extrema-direita e, assim,
reacionária; quer restaurar o passado idealizado, seja da ditadura no Brasil,
seja quando a América era great ou a Europa tinha colônias.
Já
a extrema-esquerda repete a mesma ladainha: socialismo ou barbárie. Só ele pode
nos salvar da destruição certa para a qual nos leva o capitalismo: guerras,
massacres, genocídio e, mais recentemente, ecocídio. O que é esse socialismo é
questão sobre a qual essa esquerda não se põe de acordo. Para uns, estatização
dos meios de produção. Para outros, autogestão dos mesmos.
Fascistas
querem a revolução dentro da ordem: contrarrevolução política, utilizar o
Estado para impor uma ordem regressiva, por exemplo, através de golpes de
Estado. Já a extrema-esquerda quer se valer de agitações populares a fim de,
para uns, controlar o Estado, para outros, extingui-lo. São as forças
contrarrevolucionárias e revolucionárias de nossa sociedade.
Nos
concentremos na extrema-esquerda. Conforme é de conhecimento comum, as teorias
revolucionárias tomam corpo em um momento de ascensão da indústria, com a
formação de grandes contingentes operários, mas com uma importante base
camponesa, em uma Europa onde o feudalismo ainda não tinha sido completamente
enterrado. Ao contrário, é em contraposição aos privilégios feudais que o
socialismo revolucionário primeiro se insinua, indo se assentar somente com a
delineação do capitalismo industrial, no entanto. Mas, se pensarmos nos Enragés,
nos Diggers e nos Levellers, vê-se que a massa camponesa já era revolucionária
avant la lettre, no seio mesmo dos movimentos subversivos burgueses. No
século XIX o que eram intuições ou escritos menos claros dá lugar claro á
teorias subversivas da ordem, nas forma do marxismo e do anarquismo. A
revolução ganha as massas definitivamente e, desde então, exerce atração sobre
parte das populações, dando origem a distintas teorias de como operacionaliza-la.
Com
o ciclo revolucionário que principia com a Comuna, as revoluções socialistas
sacodem o mundo em vagas sucessivas. Após a Revolução espanhola, no entanto, a
Europa deixa de ser o centro revolucionário, com este se transferindo para a
periferia do sistema, em revoluções anticoloniais, muitas com caráter
socialista. A queda da URSS significa um duro golpe aos revolucionários uma vez
que a sociedade socialista ou assim dita que por mais tempo se firmou, deu
lugar a um capitalismo mafioso, com altos índices de miséria, concentração de
renda e opressão.
Tivemos
que esperar décadas até que processos revolucionários se desencadeassem,
descontado o movimento zapatista, no vãmente na periferia do sistema. No
centro, os outrora grandes partidos comunistas se viram reduzidos a pequenas
agremiações e os anarquistas já não constituem força expressiva em quase nenhum
lugar.
No
Brasil, as força de esquerda derrotadas durante a Ditadura parecem ter tomado,
em sua ala majoritária, os rumos de uma via parlamentar sequer reformista, já
que não está em seus planos uma sociedade capitalista, somente a mitigação dos
efeitos dispersivos e nefandos do capitalismo.
Desde
a ascensão do neoliberalismo, a desigualdade aumenta. A velha classe
trabalhadora ocidental, gloriosa de tantas batalhas, viu os empregos
industriais serem transferidos para o outro lado do planeta, para nações que já
fizeram revolução e se identificam, gostemos ou não, como comunistas.
Aproveitando-se da precarização das relações de trabalhos, as classes
dominantes tocaram adiante um programa que desmembrou a classe trabalhadora,
através da terceirização, e, mais recentemente, da uberização. O Estado, que
representa a ideia de público na propriedade das coisas e no interesse defendido,
foi apontado como fonte maior dos males, ineficiente e fonte de corrupção.
Assim, importantes empresas públicas foram privatizadas e a lógica de mercado
se aprofundou em todos os ramos da vida social. O neoliberalismo se fez
escrever nas constituições ou tratados, se tornando, assim, norma legal a ser
seguida por não importa qual governo.
Se
o neoliberalismo reina e já não há, no Ocidente, o clássico inimigo do capital,
o operariado fabril, com os postos de trabalho mecanizados e os empregos
restantes sendo muito bem pagos, de forma a garantir ascensão social e jogar
para as traças a memória de uma classe trabalhadora revolucionária; enfim,
nesse cenário é possível a revolução?
Aprendi
no curso de filosofia que, desde que não logicamente contraditório, tudo é
possível. Então, melhor dizendo, é provável? Os novos sujeitos que tem tocado
as lutas no último período (estudantes, imigrantes, mulheres, LGBT’s, indígenas)
parecem ter a força para realizar revoltas, mas não revoluções, já que lhes falta
uma característica central da velha classe trabalhadora: o poder de suspender a
produção. Também outras formas de militância, como associações de bairro,
sofrem da falta de poder de barganha ou mobilização.
Ou
seja, o neoliberalismo aprofundou as mazelas do capitalismo, mas destruiu, com
astúcia, aqueles que poderiam se opor a ele. Nessas condições, é provável uma
revolução, por exemplo, na Alemanha, nos EUA ou na França? Não somos
futurólogos, mas acreditamos que essas sociedades se preparam para mudanças
drásticas no próximo período. A crise ambiental imporá alterações de grande
magnitude em todas as sociedades. Para o próximo período, se anuncia uma
mutação verdade; se será revolucionária, baseada nas periferias do sistema, ou
se será meramente mudar algo para manter tudo como está, vai depender da
correlação. No último período, vimos movimentos de massa nos EUA (onde as
condições de vida são particularmente brutais) e na França (com os Gilets
Jaunes), mas o futuro pós-pandemia desses surtos de manifestação é incerto.
Falta-lhes organicidade, organização, enraizamento.
As
alterações no mundo do trabalho tornaram a velha classe trabalhadora e seus órgãos
de classe parte do sistema. Hoje, poder se sindicalizar já indica certa
condição privilegiada, já que os novos empregos são precarizados, isto quando
não há outras formas de emprego, onde o trabalhador trabalha por conta própria,
com a ilusória impressão de ser senhor de si, destruindo por completo a chances
de organização enquanto classe. A classe não é somente um dado econômico, ela
deve ser construída. Por estas vias, como diziam meus amigos Marcelo Bigode
e Vinícius Millhouse, vivemos uma surra de classes — e não estamos a
bater.
A
crise dos setores espoliados não é de direção, mas de organização, à moda
sindicalista revolucionária: estamos desorganizados, e somente muita militância
pode reverter esse quadro. Criar o antagonista das elites, a partir de uma
massa repleta de ilusões, que defende com unhas e dentes os setores que a
oprimem e sem tradição de luta. Eis as tarefas dos revolucionários. Ao mesmo
tempo, a partir da reflexão sobre as experiências socialistas até aqui, chegar no
programa correto, socialista, e não em arremedos. Nesse sentido, a proposta da
construção do comum parece promissora. Mas isto é debate para outro texto.
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