“A filosofia não é útil”.
Assim começava nosso ex-professor Lúcio Prado a ministrar seu
curso de Filosofia moderna na UNESP de Marília. Com isso ele
determinava, de uma vez por todas, uma velha questão que remete a
séculos, à aurora mesma da filosofia, a questão de sua utilidade.
Questão antiga, que nos leva a Tales.
Esopo,
o fabulador mais conhecido do mundo, dedicou uma historieta àquilo
que ele chama de astrônomo. Vagando pelos campos, observando as
estrelas e confabulando consigo, um astrônomo cai em um poço e é
vítima da troça geral. Alguns ligam essa fábula a Tales, o dito
primeiro filósofo da tradição ocidental.
O
mesmo argumento vamos encontrar em Aristófanes, na peça “As nuvens”, onde ele se dedica a descrever as peripécias de um
Sócrates. O título seria devido ao fato do personagem alvo viver
com a cabeça nas coisas do céu, esquecendo-se de se ligar aos
problemas terrenos. Na peça, Sócrates é descrito como tendo
preocupações tais quais medir o tamanho do salto de uma pulga.
Essa
imagem do filósofo amalucado, preocupado com questões
desimportantes, preocupado com coisas as quais não interessam a
ninguém é, como se vê, muito antiga. Fora da literatura, na
Metafísica de Aristóteles,
ele mesmo afirma que a filosofia surge do ócio e que somente após a
constituição
das ciências da utilidade é que foi se constituir a própria
filosofia enquanto tal. Ou seja, a filosofia se oporia ou seria
secundária em relação às ciências mais importantes.
A
mesma literatura nos oferece contraexemplos. Pesemos ainda em Tales.
Diógenes Laércio, que escreveu uma Vida dos filósofos ilustres,
nos mostra como Tales, cansado de ser zombado por suas pesquisas,
resolveu mostrar que seu saber era de grande valia e que ele somente
não se dedicava às coisas ditas “úteis” por escolha própria.
Prevendo uma boa colheita de azeitonas, mandou alugar todas as
moendas da cidade. Dito e feito: a colheita foi esplendorosa e, como
ele estava em usufruto de todo o aparato destinado ao beneficiamento
das olivas, ganhou muito dinheiro.
Outros
exemplos da Antiguidade podem ser dados, seja o papel que se
determina aos filósofos na República de Platão, com o concomitante
reconhecimento do mais alto grau de importância
que se deve reservar à filosofia, seja com a função terapêutica
da filosofia nas escolas de pensamento pós-aristotélicas, ou,
ainda, no uso que os sofistas faziam da lógica avant la
lettre nas disputas pelo
assentimento da assembleia ateniense.
Determinações
opostas, portanto, e noções muito diferentes da filosofia. Caso ela
seja inútil, não haveria motivos para se destinar o suado dinheiro
dos contribuintes
ao seu cultivo. Filósofos que defendem esta posição estão, por
assim dizer, tomando sua cicuta própria. Afinal, se ela for mero
joguete, mero passatempo, um pouco complicado, confessemos, qual a
razão de se a entreter, de regar a horta dos amigos da sabedoria?
Não estamos tratando do banimento da atividade, mas do financiamento
público das pesquisas, já que o mercado,
parece concordar com essa afirmação e, assim, reserva poucos
empregos fora da docência para os filósofos. Empresas que contratam inúteis? Difícil de encontrar.
Ao
mesmo tempo, essa parece ser a prova a mais cabal de se provar que a
filosofia é inútil: as empresas não os querem, “eles não fazem
dinheiro; ao contrário, vão questionar quem quer ficar rico”,
“vão impor entraves e plantar a semente da dúvida nos empresários
de si mesmo”. “A filosofia não só é inútil para o
mercado, como é até mesmo
nociva para o mercado”.
“Não são os cursos de filosofia antros de esquerdistas?” “Não
são as faculdades de humanas a Meca de tudo aquilo que quer
questionar a ordem atual?” “Não, a filosofia é uma desutilidade
para a sociedade moderna”, dirão. Quase escuto a voz de Lehmann
falando enquanto escrevo estas linhas.
Mas,
ali, já encontramos mais determinações. Não é bem que a
filosofia seja inútil.
Ela o é se considerarmos o modelo de utilidade estabelecido pelos
poderes dominantes. Para o mercado,
a primeira vista, a filosofia é inútil, já que os filósofos não
produzem, ou produziriam, mercadorias, que podem ser vendidas. Sua
mão de obra, malgrado altamente especializada, não completa os
requisitos para se tornar um bem comercializável, já que o
principal
efeito da filosofia é sobre os sujeitos. A filosofia, assim, não
poderia ser expostas em gôndolas ou negociada na bolsa.
Essa
noção, ao que parece, já foi ultrapassada. Quantos cursos de
filosofia
pagos são ofertados atualmente? Quantos livros de filosofia são
vendidos e comprados? Ou seja, mesmo para o mercado, há um nicho de
leitores e estudantes muito bem dispostos a oferecer quantias a fim
de se instruírem na velha senda da filosofia. Ela não é inútil,
nem mesmo para o mercado, que consegue capitalizar em cima da formação
das pessoas. Trata-se da noção de capital humano, e, com isso, do
savoir-faire das
pessoas, já que outro tipo de competências
têm
sido demandados no mundo corporativo. Ou seja, mesmo para os
defensores de um estrito capitalismo, a filosofia tem lá suas
belezas. Ela não é inútil.
Até
porque, desde meados da Revolução industrial, o saber e os
processos produtivos, estes que geram muito dinheiro, originário da
exploração dos trabalhadores, se interconectaram de maneira muito
profunda. Claro, para produzir qualquer coisa que não seja meramente
corporal, é necessário saber. Mas a escala na qual ciência e
produção se interconectaram é sem paralelos na história do globo,
não só pela ideia mesma de aplicar os saberes daqueles que viviam
medindo o pulo da pulga no fabrico de produtos, como ademais pelos
impactos incomensuráveis sobre a vida das pessoas e tudo que daí se
seguiu. Como nota Lyotard, o
saber é algo da mais extrema importância
no mundo moderno. E a filosofia, por conseguinte, também o é. Não
como mochileira, que pega carona na boleia alheia, mas como
motorista, uma vez que novas ciências só podem nascer de um tipo de
atividade na qual os filósofos são mestres: interrogar, duvidar,
perguntar as causas, os meios e os fins.
Claro,
há um grave problema: quando se começa a perguntar, não se sabe
aonde vai parar. As questões se interligam e, de repente, às três
da manhã encontrar-nos-emos pesquisando sobre a história da ideia
de força. Mas a dúvida, essa sementinha potente que a filosofia faz
plantar na mente das pessoas, é o começo da sabedoria. Para Platão
e Aristóteles, era o maravilhamento, como preferimos traduzir, ou a
admiração ou espanto, como querem outros. Quando se começa a
duvidar das coisas e se empreende uma pesquisa a fim de sanar a
dúvida, eis um filósofo. Quando se começa a crer com demasiada fé,
sem se indagar jamais, eis um noviço.
Tratamos
apenas de uma facetada utilidade da filosofia. Ela ensina habilidades
importantes até mesmo para o mundo corporativo. Há outras, mas,
essas, ficam para outro texto.