quarta-feira, 12 de abril de 2023

Da utilidade da filosofia

 

“A filosofia não é útil”. Assim começava nosso ex-professor Lúcio Prado a ministrar seu curso de Filosofia moderna na UNESP de Marília. Com isso ele determinava, de uma vez por todas, uma velha questão que remete a séculos, à aurora mesma da filosofia, a questão de sua utilidade. Questão antiga, que nos leva a Tales.

Esopo, o fabulador mais conhecido do mundo, dedicou uma historieta àquilo que ele chama de astrônomo. Vagando pelos campos, observando as estrelas e confabulando consigo, um astrônomo cai em um poço e é vítima da troça geral. Alguns ligam essa fábula a Tales, o dito primeiro filósofo da tradição ocidental.

O mesmo argumento vamos encontrar em Aristófanes, na peça “As nuvens”, onde ele se dedica a descrever as peripécias de um Sócrates. O título seria devido ao fato do personagem alvo viver com a cabeça nas coisas do céu, esquecendo-se de se ligar aos problemas terrenos. Na peça, Sócrates é descrito como tendo preocupações tais quais medir o tamanho do salto de uma pulga.

Essa imagem do filósofo amalucado, preocupado com questões desimportantes, preocupado com coisas as quais não interessam a ninguém é, como se vê, muito antiga. Fora da literatura, na Metafísica de Aristóteles, ele mesmo afirma que a filosofia surge do ócio e que somente após a constituição das ciências da utilidade é que foi se constituir a própria filosofia enquanto tal. Ou seja, a filosofia se oporia ou seria secundária em relação às ciências mais importantes.

A mesma literatura nos oferece contraexemplos. Pesemos ainda em Tales. Diógenes Laércio, que escreveu uma Vida dos filósofos ilustres, nos mostra como Tales, cansado de ser zombado por suas pesquisas, resolveu mostrar que seu saber era de grande valia e que ele somente não se dedicava às coisas ditas “úteis” por escolha própria. Prevendo uma boa colheita de azeitonas, mandou alugar todas as moendas da cidade. Dito e feito: a colheita foi esplendorosa e, como ele estava em usufruto de todo o aparato destinado ao beneficiamento das olivas, ganhou muito dinheiro.

Outros exemplos da Antiguidade podem ser dados, seja o papel que se determina aos filósofos na República de Platão, com o concomitante reconhecimento do mais alto grau de importância que se deve reservar à filosofia, seja com a função terapêutica da filosofia nas escolas de pensamento pós-aristotélicas, ou, ainda, no uso que os sofistas faziam da lógica avant la lettre nas disputas pelo assentimento da assembleia ateniense.

Determinações opostas, portanto, e noções muito diferentes da filosofia. Caso ela seja inútil, não haveria motivos para se destinar o suado dinheiro dos contribuintes ao seu cultivo. Filósofos que defendem esta posição estão, por assim dizer, tomando sua cicuta própria. Afinal, se ela for mero joguete, mero passatempo, um pouco complicado, confessemos, qual a razão de se a entreter, de regar a horta dos amigos da sabedoria? Não estamos tratando do banimento da atividade, mas do financiamento público das pesquisas, já que o mercado, parece concordar com essa afirmação e, assim, reserva poucos empregos fora da docência para os filósofos. Empresas que contratam inúteis? Difícil de encontrar.

Ao mesmo tempo, essa parece ser a prova a mais cabal de se provar que a filosofia é inútil: as empresas não os querem, “eles não fazem dinheiro; ao contrário, vão questionar quem quer ficar rico”, “vão impor entraves e plantar a semente da dúvida nos empresários de si mesmo”. “A filosofia não só é inútil para o mercado, como é até mesmo nociva para o mercado”. “Não são os cursos de filosofia antros de esquerdistas?” “Não são as faculdades de humanas a Meca de tudo aquilo que quer questionar a ordem atual?” “Não, a filosofia é uma desutilidade para a sociedade moderna”, dirão. Quase escuto a voz de Lehmann falando enquanto escrevo estas linhas.

Mas, ali, já encontramos mais determinações. Não é bem que a filosofia seja inútil. Ela o é se considerarmos o modelo de utilidade estabelecido pelos poderes dominantes. Para o mercado, a primeira vista, a filosofia é inútil, já que os filósofos não produzem, ou produziriam, mercadorias, que podem ser vendidas. Sua mão de obra, malgrado altamente especializada, não completa os requisitos para se tornar um bem comercializável, já que o principal efeito da filosofia é sobre os sujeitos. A filosofia, assim, não poderia ser expostas em gôndolas ou negociada na bolsa.

Essa noção, ao que parece, já foi ultrapassada. Quantos cursos de filosofia pagos são ofertados atualmente? Quantos livros de filosofia são vendidos e comprados? Ou seja, mesmo para o mercado, há um nicho de leitores e estudantes muito bem dispostos a oferecer quantias a fim de se instruírem na velha senda da filosofia. Ela não é inútil, nem mesmo para o mercado, que consegue capitalizar em cima da formação das pessoas. Trata-se da noção de capital humano, e, com isso, do savoir-faire das pessoas, já que outro tipo de competências têm sido demandados no mundo corporativo. Ou seja, mesmo para os defensores de um estrito capitalismo, a filosofia tem lá suas belezas. Ela não é inútil.

Até porque, desde meados da Revolução industrial, o saber e os processos produtivos, estes que geram muito dinheiro, originário da exploração dos trabalhadores, se interconectaram de maneira muito profunda. Claro, para produzir qualquer coisa que não seja meramente corporal, é necessário saber. Mas a escala na qual ciência e produção se interconectaram é sem paralelos na história do globo, não só pela ideia mesma de aplicar os saberes daqueles que viviam medindo o pulo da pulga  no fabrico de produtos, como ademais pelos impactos incomensuráveis sobre a vida das pessoas e tudo que daí se seguiu. Como nota Lyotard, o saber é algo da mais extrema importância no mundo moderno. E a filosofia, por conseguinte, também o é. Não como mochileira, que pega carona na boleia alheia, mas como motorista, uma vez que novas ciências só podem nascer de um tipo de atividade na qual os filósofos são mestres: interrogar, duvidar, perguntar as causas, os meios e os fins.

Claro, há um grave problema: quando se começa a perguntar, não se sabe aonde vai parar. As questões se interligam e, de repente, às três da manhã encontrar-nos-emos pesquisando sobre a história da ideia de força. Mas a dúvida, essa sementinha potente que a filosofia faz plantar na mente das pessoas, é o começo da sabedoria. Para Platão e Aristóteles, era o maravilhamento, como preferimos traduzir, ou a admiração ou espanto, como querem outros. Quando se começa a duvidar das coisas e se empreende uma pesquisa a fim de sanar a dúvida, eis um filósofo. Quando se começa a crer com demasiada fé, sem se indagar jamais, eis um noviço.

Tratamos apenas de uma facetada utilidade da filosofia. Ela ensina habilidades importantes até mesmo para o mundo corporativo. Há outras, mas, essas, ficam para outro texto.

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