sábado, 6 de julho de 2019

A loucura me curou


 Já desde há muito se sabe que as coisas possuem história, que os costumes variam conforme a geografia e os povos, enfim, que há diferentes maneiras de se portar no mundo e se relacionar com ele. Mas há coisas cuja descoberta da historicidade é recente e outras que, talvez, não tenhamos descoberto a história ainda.

Neste quadro, não é de se espantar o impacto que Foucault causou ao publicar uma história da loucura, mostrando que, até bem pouco tempo, tendo em vista os parâmetros históricos, o Ocidente tinha uma outra experiência da loucura, quando os loucos vagavam pelas cidades comunicando com o divino. O racionalismo clássico deitou isto por terra, criando as bases para o internamento da loucura, em uma experiência que ainda é nossa, onde a sociedade, em parâmetros higienistas, que varrer o diferente para debaixo do tapete, medicalizando os comportamentos ditos anormais e causando extremo sofrimento psíquico nos desviantes.

Diz-se que a juventude é o momento da desmesura. “Aos vinte, se é incendiário, aos trinta, bombeiro”. O raiar da vida seria o momento do excesso, e as faltas do jovens muitas vezes são perdoadas por essa atmosfera de que, no princípio, as faltas são justificáveis, afinal, ainda não aprendemos a ter a medida das coisas, nos falta o tato da moderação, da mediação; enfim, nos falta a capacidade de mensurar, nos falta a razão das coisas. Razão, como se sabe, guarda muitos sentidos, indicando tanto uma faculdade, quanto os motivos e, também, a proporção. O jovem não saberia ter proporção, e o dente do juízo marca quando esta começa a se manifestar, dando seus primeiros sinais.

Esta perspectiva, certa ou errada, pode ser aplicada a muitos casos. Minha juventude foi marcada pelos excessos de toda ordem. Poeta, dedicava-me a versificar a vida, a morte, as delícias do sexo, as drogas, a política, enfim, queria-me na posição que, n’As Horas, Virginia Woolf profere; querendo matar alguém em seu romance, ela escolhe o poeta, segundo ela, o visionário. Eu acreditava firmemente que minha poesia deveria comunicar com o desenrolar da história; meu ideal era exprimir em poucas palavras, ditas em um tom profético e grandissonante, o deslindar das coisas, sua estrutura última, A Verdade do Ser. Influenciado pelos poetas, especialmente Ginsberg e Solomon, com os quais, à noitinha, eu me comunicava, ditava em versos a armação do real. Até mesmo um dos livros de poesia que escrevi, nenhum publicado, chamei de profesia.

Em meu périplo poético, valiam-me as noites com meu petit comité, nosso poeta sonhador Júnior, e nosso outro amigo, este mais prático e libidinoso, o bom e velho Alonso. Regadas a vinho, nossas soirées, que em nada deviam às noitadas de Marinetti, se davam em sucessivas epifanias alcoólicas, influenciados pelos marginais de outrora, pela psicogeografia, pela experiência do 68 francês. Nada podia nos parar, nada deveria estar no caminho de nossa triunfante marcha poética rumo à essência das coisas e o cristalino do universo. Guiava-me por Pessoa: “para ser todo, sê inteiro, nada teu, ou exagera ou exclui...”.

Este ethos do excessivo, com a arrogância que lhe acompanha, também me guiava na militância. Pudera, comecei cedo, aos treze anos, não organizando apoio aos republicanos espanhóis, como fazia Ginsberg e os seus, mas marchando contra as guerras do imperialismo, lutando pelas melhorias na escola, pelo passe-livre, pela educação. Tampouco distribuímos panfletos hipercomunistas na Times Square, mas, sim, imprimimos às centenas, com a verba do Grêmio estudantil do qual eu era presidente, poemas de Brecht, o analfabeto político, e entregamos pelas ruas de Ribeirão Preto, nossa pequena Paris do sertão. Na universidade, no curso de história, guiávamo-nos pela luta contra a precarização da educação e a exclusão dos pobres, e assim, também como outro louco, fui expulso da universidade, com outros, por desafiar o reitor, mostrando-lhe a merda que ele estava fazendo. Nosso reitor parecia não muito afeito a poesia, ou certamente teria se lembrado de Artaud e suas transmissões alucinadas pelas noites da França: “aonde há merda, há ser”.

Ingressando no curso de filosofia, minha vida oscilava entre os pólos da loucura induzida por substâncias, teoria e política. Particularmente, eu me locupletava enfrentando a autoridade, sentindo-me vivo ao ver que pulsava com as massas estudantis e nossas pequenas rebeliões, nossas assembleias, nossos atos. Tudo que me cheirava a autoritarismo, eu enfrentava, mesmo correndo o risco de cacetadas; na verdade, apanhando muito, tomando tiros de bala de borracha e respirando o ar contaminado de sprays e bombas. Fizemos grandes manifestações, tomamos de assalto o ápice do poder acadêmico no estado de São Paulo, a reitoria da USP. Enfrentando o governo, fizemos ele recuar, derrotamos os neoliberais. Corria o ano de 2007, eu tinha 19 anos e era um primeiranista efusivo e completamente dedicado à subversão da ordem.

No ano seguinte, comecei a sentir os primeiros sinais da loucura. Ataques de pânico, sudorese, mal-estar. Leitor da psicanálise, pensava que estava desenvolvendo alguma neurose. Assim, cortei as drogas e passei a me dedicar a somente dois excessos, os da política e os da teoria, sendo agraciado com uma bolsa de iniciação científica para estudar, ironia da história, epistemologia política da psiquiatria, ciência da qual eu era muito crítico. Eleito para o DCE da UNESP, organizamos atos, greves, ocupações, trancaços, enfim, lutas contra o poder reitoral, o empresariado e o governo neoliberal de plantão. Dedicava-me com afinco na construção do poder estudantil e do anarquismo organizado. Seguia a senda de On the road, e rodava o estado de carona, construindo as lutas estudantis e populares. Orador hábil, conquistava a audiência por onde passava, construindo uma biografia militante e organizações políticas.

Nosso ápice foi a greve no ano louco de 2013, quando a força das massas se mostrou. Nesse ano, paralisamos quase toda a UNESP, lutando por uma universidade popular e democrática. Fomos presos, sindicados, apanhamos, fomos roubados, mas vencemos a batalha. Meus pequenos excessos com as drogas davam sinais, e, nas belas praias de Ubatuba, eu acreditava estar sendo perseguido pela polícia, grampeado, vigiado e admoestado pelas forças da ordem. Tudo delírio? Em partes sim, mas que revelavam a potência que havia se manifestado.

Então, tempos depois, já no ano de 2015, estes pensamentos paranoicos foram tomando vida. Agora, não apenas eu acreditava firmemente estar sendo treinado pelos russos, para o grande combate contra as trevas neoliberais, como conseguia me comunicar, graças a aparelhos de rádio instalados em minha cabeça, com outros espiões. Tornado agente de uma potência estrangeira, eu via as conspirações por todo lado, nos pequenos atos, nas disposições do móveis, nos olhares tortos. Logo, estava completamente enredado em uma grande trama internacional, com Putin, Dilma e Lula.

Logo, o que era apenas algo de minha cabeça se manifestou externamente. Para não ter que militar defendendo o governo, que eu tomava como pouco radical, rasguei e incinerei todas as minhas roupas. Vendi livros, os quais eu demorara anos para comprar. Meus amigos me diziam que eu estava mal, que precisava de ajuda; mas eu, em meu excesso, em minha empáfia, do alto de minha arrogância, dizia que, tendo estudado a psiquiatria, eu não precisava de médicos. Destarte, em uma longa noite de 2015, passei doze horas andando em círculos em uma casa da moradia estudantil da UNESP-Marília, acreditando estar sendo orientada por uma psiquiatra telepaticamente.

Fui medicado e psiquiatrizado, reduzido a objeto de cientistas. Deram o diagnóstico: esquizofrenia paranoide. Na anamnese, emergiram os pródromos da moléstia. Senti-me vencido, envergonhado, entrei em depressão. Aos poucos, me recuperei, aceitei o diagnóstico, retomei os estudos, reconquistei minha vida.

Para os antigos gregos, a falta maior era a hybris. A tradução não é simples. Se tomarmos que a virtude superior era a moderação, podemos traduzir a hybris como desmesura. É ser excessivo: comer demais, beber demais, ler demais. Enfim, exagerar, desafiar os deuses, chamar o universo à luta. Mas, a experiência da loucura fez com que eu me sentisse frágil, sujeito a doenças, dependente de medicamentos; enfim, humano. Antes, eu estava acima da história, inclusive querendo ditar os rumos desta, determinar o próprio ser. A loucura me ensinou a moderação; não abrir mão de seus projetos, mas modulá-los de acordo com suas forças, com os limites humanos que nos marcam. Aprendi, enfim, a lição da humildade. A loucura me curou de minha arrogância, de minha hybris. Preparou-me para a vida de acordo com a medida, aproximando-me dos gregos, que eu amo tanto, não só por ser filósofo, mas pelo brilhantismo de sua civilização, pelas marcas que deixaram.Inclusive, aprendi o grego depois de minha lição; e não só o grego, como o alemão e o italiano. Formei-me, hoje curso mestrado. Rompendo com a hybris por força da loucura, curei-me e me tornei humano.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Fragmento filosófico: uma resposta a Porchat

Imaginemos uma situação: cada pessoa afirma seu ponto de vista unilateralmente, baseado nas evidências que possui e em sua própria formação. Dizem verdades sobre o universo, asseveram os fundamentos da história e fazem constar como se deve agir diante dos fatos. Como adquirir seu próprio ponto de vista nesta discussão? Aristóteles afirmaria que se deve fugir do extremos, buscando o justo-meio. Kant se interrogaria sobre as condições em que cada ponto de vista foi gerado. Já Hegel pensa que ambos estão corretos, são momentos de expressão de uma mesma verdade mais fundamental. Marx demandaria as posições de classe de cada um. Nietzsche clamaria pela história das diferentes posições. Essa anedota exprime um pouco a história da filosofia e das ciências, com a vantagem de que esta última desenvolveu metodologias para fugir da mera expressão de opinião. Como descobrir a episteme (ciência) por trás das distintas doxas (opiniões)? Ou o problema esta na própria ideia de que existe uma Verdade, última e redentora? Parece que, diante de tudo isto, devemos nos valer do método dos cientistas. Já entre os gregos os hipocráticos prescreviam o método experimental. O problema é que a experiência é dúbia, dando margem para muitas interpretações, como mostra Descartes; mas, ao invés de nos refugiarmos no cogito, talvez devamos aprender com Francis Bacon. Para este, o saber serve para dominar. Então, colocando o saber nos marcos da dominação, das lutas sociais que os produziram, em uma mixórdia de Kant, Marx e Nietzsche, estes doutos teutões, cheguemos a um resultado satisfatório. Então, daríamos razão a Hegel: cada um revela um pouco o ser, cada um expressa um aspecto da verdade. Para chegar a esta, é necessário compreender que o próprio ser se dá como conflito, sempre aberto, sempre renovado. No final, talvez cheguemos ao começo, com a cobra comendo o rabo: a rediviva frase de Heráclito, "a guerra é de todas as coisas pai...". Eis belo exemplo de atavismo filosófico.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Sabedoria grega: Kleóbulos de Lindos

A [justa] medida é o melhor

Cleóbulos de Lindos

[Na tradução de Cleóbulo, achei correto colocar "justa" para qualificar "medida", porque é como ficou conhecida na tradução brasileira] Antes do surgimento da filosofia, por volta do século VI, a Grécia produzia outras formas de sabedoria. Além da poesia gnômica (oracular) e da poesia épica, havia os sete sábios da Grécia. Houve muitas listas com as frases dos sábios, e os próprios sábios também mudaram ao longo do tempo, alterando-se segundo o autor que os compilava. São famosos por suas frases curtas, expressando máximas morais ou simples conselhos para a vida. São efígie do espírito grego. Nessa máxima que traduzi hoje, por exemplo, está manifesta algo que traduz o que um aspecto central da vida psíquica grega: o amor pela moderação. Ou um dos aspectos, se seguirmos Nietzsche, que afirma que, além do amor pela moderação, pela luz, pela correta medida, havia o extático, o ressoante, como expressão da cultura grega. Seria na dialética entre estes dois modos de vida, o apolíneo e o dionisíaco, que se teria forjado a cultura grega. A filosofia de Platão já marcaria a decadência da cultura grega, posto que apagaria o dionisíaco para passar tudo pelo crivo da razão. O curioso é que este espírito apolíneo foi o que ficou marcado como o tipicamente grego, sendo recuperado mais tarde pelos neoclassicistas e renascentistas, na luta contra as tradições religiosas. Pode ser definido também pela fala do mais famosos dos sete sábios, Sólon de Athenas: μηδεν ἀγαν, ou, nada em excesso, nada em demasia. Vê-se que são característica próprias da cultura grega, que Platão e Aristóteles somente expressam em caráter filosófico, sem nada criar de novo (para um grego).. Quando Sade vai definir o libertino, ele nos dá outra visão: o libertino é excessivo, é pela desmesura. Por isso Sade é tão chocante: vai contra os valores que herdamos da Grécia clássica e que influenciaram a démarche do Ocidente.