domingo, 16 de fevereiro de 2020

Foucault e os aplicativos de entrega


Estou em uma fase da pesquisa da dissertação em que estou lendo variados comentadores de Foucault. Resolvi incluir na bibliografia textos de pesquisadores fora do eixo Atlântico-norte, especialmente latinoamericanos, a fim de dar visibilidade para os pensadores destas bandas. Ontem, terminei de ler um livro de um pesquisador colombiano, disponível na Biblioteca da FFC. Segundo o carimbo institucional na primeira página do livro, ele custou cinco reais. Não vale nem a metade. Ou melhor, vale exatamente a metade. Isto porque o livro é dividido em duas partes. Na primeira, o autor, Gonsález, expõe o pensamento de Foucault e o faz bem. Desacordo de sua visão, especialmente de como ele organiza a divisão da obra de Foucault pensando, como também o faz Veiga-Netto, em três eixos, o que conhecemos, o que fazemos, e como agimos em relação a nós mesmos, ou, em outros termos, arqueologia do saber, genealogia do poder e ética. Para ele, são pesquisas complementares, que se interconectam e expõe a empreitada de Foucault. Até aqui, tudo bem; uma discordância meramente teórica e que, ademais, segue inicações dadas pelo próprio Foucault nos últimos anos de vida. O problema aparece na segunda parte do livro, a partir do momento em que ele quer depreender do pensamento de Foucault um corolário. Já quando tive o livro em mãos pela primeira vez fui conferir o sumário e a bibliografia, regra primeira de um bom leitor. No sumário constava a ideia de se tornar um "empresario de si mesmo". O livro está em espanhol. Cursei espanhol por algum tempo e sei que esta língua está cheia de armadilhas, como os temidos falsos cognatos, mas eu tinha certeza que "empresario" é "empresário" mesmo. É exatamente esta a ideia que o autor quer passar; a ética foucaultiana do cuidado de si seria a base para que, cada um, seja um empresario de si mesmo. A construção teórica do autor é confusa. Mistura Mises, Hayek, São Tomás de Aquino e Sêneca; utiliza Platão para defender a divisão de tarefas que nos permitiria fabricar mais alfinetes em menos tempo, famoso exemplo de Adam Smith. E se vale da Bíblia para afirmar que a mulher empresaria de si mesma é boa e dócil com o marido, sabe costurar, limpar e cozinhar. Recomenda a não infidelidade conjugal e pensa na possibilidade da eugenia para garantir um bom capital humano - faz isto citando, de forma descontextualzada, a passagem em que Foucault está, precisamente, criticando a teoria do capital humano. Há um corte entre a primeira parte, onde ele expõe o que Foucault pensava, e a segunda, onde expõe as suas próprias posições. Segundo ele, a crítica de Foucault às distintas dominações a que estamos submetidos pode ser entendida em uma grade austríaca: é o estado que oprime os empresários. Mas não chega tão longe a ponto de defender que o "empresário de si mesmo" não tenha previdência pública, ao meso tempo em que insiste que o empresário de si mesmo deve garantir uma bo renda para a velhice, a fim de não sobrecarregar o estado. O corolário que ele extrai de Foucault é completamente absurdo, em descompasso com o que ele mesmo, páginas antes, havia exposto. Em Foucault, biopolítica e normalização da população e liberalismo surgem praticamente juntas, uma correspondendo a outra, uma sendo a estratégia de governamentalização da outra. É exatamente contra esta estratégia e seus dispositivos que Foucault escreveu e militou. A ética do cuidado de si, por sua vez, está vinculada a construção de um sujeito autônomo, que ousa saber, e que constrói um modo de vida próprio. Não guarda relações com uma sociedade de empresários de si. Foucault não era um revolucionário marxista ou anarquista, mas, venho insistindo, seu pensamento pode guardar consequências anarquistas, se colocado, por exemplo, em relação com Landauer, Tragtenberg ou de Jong ou, in extremis, Malatesta. São precisamente estas consequências anarquistas que escapam a muitos marxistas, como Boito. Constatar que Foucault não era revolucionário, muito bem; defender que ele postulava uma sociedade uberizada, já é demais. Baixaria tem limite.

O livro em questão se chama "El papel de la filosofia desde Michel Foucault", de Willian Cerón Gonsalez, Medellín: UNAULA, 2012 

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