sábado, 21 de março de 2020

O que é lugar de fala?

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?, BH: Letramento: Justificando, 2017

Muito se discute sobre o "pós-moderno", suas consequências, origens, enfim, seu ser. E, neste debate, especialmente nas redes sociais, salta aos olhos a noção de "lugar de fala", que é amplamente utilizada como forma de deslegitimar sujeitos que estão abordando realidades que não são as suas. Essa é a vulgata. Mas há produções teóricas sérias sobre o tema e é sobre estas que iremos tratar, resenhando e, também, criticando um dos livros brasileiros mais conhecidos sobre o tema, da feminista Djamila Ribeiro, chamado "O que é lugar de fala?". Odiada por marxistas e outros setores da chamada old leftdesqualificada como liberal ou pós-moderna, Djamila vem galgando posições na mídia, sendo frequentemente convocada a se pronunciar sobre questões como mulheres negras, sua especialidade, feminismo, racismo, etc. O livro em questão é bem pequeno, e nela a autora articula diferentes questões a fim de responder a questão que o intitula. É marcante a presença de autoras estadunidenses, embora o debate brasileiro também conste em suas páginas. A autora principia o texto com questões relativas sobretudo ao que viria a ser o feminismo negro, defendendo a especificidade da posição da mulher negra nas sociedades ocidentais, especialmente aquelas que foram marcadas pelo escravismo colonial. A dar razão a ela, dentro do próprio feminismo a perspectiva das mulheres negras seria constantemente apagada e questões como aquelas da primeira onda feminista, tais quais o direito ao trabalho, não fariam sentido para as mulheres negras que, uma vez cativas, sempre trabalharam. Outros elementos, como saúde ou educação, índices em que as mulheres negras são classificadas sempre abaixo daquelas brancas, também serviriam como índice para apontar que a mulher negra merece tratamento especial.  A partir disso, ela passa a desenvolver o conceito de lugar de fala. Além das críticas particularmente teóricas, pode-se endereçar à Djamila outras, como  a falta de uma definição precisa; a partir do relatado sobre o feminismo, o conceito de lugar de fala é mais intuído que definido. Trabalhando o ponto de vista feminista (feminist standpoint), conceito proposto por autoras estadunidenses, ela aponta como em uma sociedade todos temos um lugar de fala, que não é individual, mas social; as referências a Foucault e seu conceito de discurso, são explícitas. Para Djamila, nessa estrutura que determina quem pode dizer e o que pode ser dito, os subalternos são desclassificados pela epistemologia dominante em benefício de uma ciência afirmada como neutra. A referência à ciência é vaga; como ela cita Benjamin e seu postulado da necessidade de fazer a história dos excluídos, podemos pensar que se trata das ciências humanas, mas críticos mais mordazes podem apontar que a crítica de Djamila implica o questionamento da objetividade da ciência, e aí entraríamos em um outro patamar, onde se poderia aproximar a autora de terraplanistas e antivacinas - mas seria ir longe demais, a nosso ver. Escrever a história dos subalternos sob o ponto de vista destes, isto é, de modo a que eles ocupem seu espaço, eis seu programa. Claro que se poderia objetar que não basta ser negro para defender um ponto de vista de luta contra o racismo; Holiday e o novo presidente da fundação Palmares ou, mesmo, Morgan Freeman, estão aí para provar. Mas Djamila aponta que não se tratam de experiências individuais, mas, sim, coletivas. O lugar de fala indica uma posição social, não uma mera coleta de experiências. Muitos elementos comumente apontados como próprios ao lugar de fala, e que a própria Djamila incorre em suas redes sociais, como, por exemplo, que que brancos não poderiam falar sobre racismo, são desfeitos pela autora. Ela também faz um apelo a uma mudança social profunda, ou seja, é crítica ao capitalismo. Mas há claramente um direcionamento reformista em sua fala, o que marxistas empedernidos leem como adesão ao sistema estado-capital. Suas referências teóricas vão dos frankfurtianos aos pós-estruturalistas, com foco nestes, passando por Sartre, além das múltiplas feministas, a maior parte das quais também bebendo na French theory. 

Entendemos que ser humano é ser diferente. Quem solapa as diferenças e homogeniza todos nas formas do kitsch, ou na repetição de slogans e propagandas, é o capitalismo e as formas de poder estatal, dividindo a sociedade entre os normais e anormais, buscando pasteurizar a humanidade, reduzida a categoria de consumidores e empresários de si mesmo (empreendedores). Lutar para que possamos ser diferentes pode ser uma luta anticapitalista e antiestatista. Isto não significa, portanto, negar as lutas pela igualdade, mas compreender que a igualdade radical é o sine qua non da construção de um mundo diverso, posto que, por onde passa, o capitalismo faz terra arrasada das diferenças humanas em benefício de um jargão comercial que afirma a humanidade na pertença a uma sociedade de massas. Dar a voz às próprias pessoas, educadas politicamente, eis o que nos é negado a todo momento, ou, mais recentemente, capturado pelo poder na forma do Big Data e disparos de Whatsapp. A reflexão de Djamila é muito interessante e atual, embora, como dissemos de princípio, poderia ser aprofundada, embora o propósito da coleção seja ser uma mera introdução ao tópico. Lembro-me de um filme do grupo francês Dziga Vertov, oriundo do maio de 68; entrevistava-se um operário e sua esposa sobre as condições de vida; as perguntas direcionadas à mulher eram respondidas pelo homem, de modo que ela queda muda durante todo o filme. Ressoar a voz dos oprimidos e inscrevê-los na ordem do discurso, eis, talvez, o chamado de Djamila e seu lugar de fala, que passa longe dos excessos que vemos comumente nas mídias sociais. 

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