domingo, 29 de março de 2020

Genealogia do neoliberalismo

 DARDOT, P. LAVAL, C. La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néolibérale. Paris: La Découverte, 2009 [ed. brasileira: A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal, SP: Boitempo, 2016

Foucault abordou o liberalismo e o  neoliberalismo no final dos 1970, ao traçar-lhe sua genealogia. A novidade de seu viés era a de tomar estas vertentes não como simples teorias econômicas, mas como governamentalidades, quer dizer, as formas de governar (que articulam saber e prática). É interessante notar que Foucault elaborou sua análise quando o neoliberalismo começava a se espraiar, indo além das experiências alemã e chilena, e chegando à Inglaterra e aos EUA. O curso em que Foucault analisou o liberalismo chamava-se O nascimento da biopolítica, estando esta e aquela ligados.

Dardot e Laval, pensadores franceses contemporâneos, em seu livro A nova razão do mundo, expandem a análise foucaultiana, mas seguem esta em suas linhas-mestras. Não se trata de uma história do pensamento liberal e suas vertentes; capítulos importantes dessa história, como o pensamento neoclássico em economia, são deixados de lado ou citados muito brevemente. Trata-se, para eles, de mostrar o neoliberalismo enquanto uma racionalidade, que dominou praticamente o mundo todo. Já tivemos oportunidade de analisar uma parte dessa racionalidade (que se pode conferir aqui http://www.revistas.usp.br/humanidades/article/view/106215), e mais recentemente, antes da leitura de Dardot e Laval, insistimos na ideia de tomar o neoliberalismo enquanto uma estratégia (em artigo no prelo). Não se trata, para essa vertente teórica foucaultiana, de pensar que o neoliberalismo seja apenas uma doutrina econômica, mas uma série de princípios que visam a reorganizar toda a sociedade, desde as relações pessoais, até a estrutura do estado, passando por plasmar um sujeito neoliberal, que Dardot e Laval chama de neosujeito. Eles mostram como a racionalidade neoliberal gerencial (managérial) se expandiu até mesmo para setores de esquerda, como o trabalhismo britânico e a social-democracia de maneira geral. Os autores insistem ainda no fato de que o neosujeito é o puro fruto de injunções políticas que objetivam acabar com a classe trabalhadora, visto que cada indivíduo é encarada enquanto uma empresa, assim, desvencilhado de direitos como férias e aposentadoria. Em tempos de uberização, o livro, que é recente, guarda muita atualidade. Assim, eles introduzem a ideia de um novo dispositivo disciplinar neoliberal, que visa enquadrar a classe trabalhadora para torná-la mais apta à exploração das novas formas de capitalismo.

Há diferenças nítidas em relação a uma das análises mais conhecidas no Brasil quanto ao neoliberalismo, a de Perry Anderson, publicada em 1995. O desnível de tempo e a comparação entre um simples capítulo e um livro de mais de quinhentas páginas, como o de Dardot e Lval, podem dar mostras de desonestidade intelectual; mas, se fazemos esta comparação, é para pontuar, sem reduzir o marxismo a uma única análise. Deve-se lembrar que quando Anderson escreve seu artigo, o curso de Foucault já completara quinze anos desde sua preleção, ou seja, o tipo de ideias que desenvolvem Dardot e Laval não eram mais novidade. Anderson afirma que o neoliberalismo surgiu com a sociedade Mont Péllerin, um erro segundo Dardot e Laval (e Foucault), visto que, mais de dez anos antes, os neoliberais se encontram no Colóquio Walter Lippman, e foi ali, inclusive, que surgiu o termo neoliberal. Outro erro de Perry Anderson, muito difundido no Brasil, é o de que o Chile de Pinochet foi a experiência-piloto do neoliberalismo, quando, em fato, foi a República Federal Alemã (Alemanha Ocidental) por ocasião da reconstrução do país no pós-guerra. Há ainda outra falha, verdadeiro chavão da esquerda brasileira, o qual afirma que o neoliberalismo é o retorno ao capitalismo do século XIX. Já Foucault mostrava como para o liberalismo clássico e para o neoliberalismo se tratam de ordens de problema totalmente diferentes, um visando criar, no interior de um estado absolutista, um espaço de liberdade econômica, o outro, como no caso do ordoliberalismo alemão, como construir o estado a partir de uma ordem econômica de mercado. Além disso, o neoliberalismo não é um todo, contando com correntes; Dardot e Laval distinguem em duas principais, seguindo Foucault: o neoliberalismo austro-americano e o ordoliberalismo alemão. Se distinguem, na medida em que este último está mais próximo das preocupaçõess sociais de Bentham, por exemplo, e formula uma verdadeira política de sociedade, uma estratégia para quebrar os fundamentos das sociedades moderna, com sua grande acumulação de homens e as consequências políticas que disto decorre. Já o austroliberalismo, que reúne nomes conhecidos como Hayek (apontado por Anderson como fundador do neoliberalismo, quando este título seria mais apropriado a Lippman) e Mises, este recentemente muito difundido no Brasil; para estes neoliberais, qualquer ação do estado na economia é danosa; além do que, capital é capital humano, de modo que cada um é uma pequena empresa.

Dardot e Laval mostram como foi o ordoliberalismo a pedra de toque na fundação da União Européia. Estes neoliberais compreendem que o Estado deve fornecer um quadro (uma armadura jurído-legal) que permita aos agentes econômicas perseguir seus próprios fins. Neste sentido, na UE, como também no Brasil mais recentemente, com a PEC 95/2016 (Lei do teto de gastos), a ordem neoliberal tenta se tornar constitucional, restringindo a ação dos governos, sejam de esquerda ou de direita, tudo em nome da segurança dos assim chamados agente econômicos, quer dizer, dos grande capitalistas. 

A psicanálise também entra no crivo dos autores, que, a partir sobretudo de Lacan, indicam a dessimbolização do mundo no sujeito levada a cabo pelo neoliberalismo e como este impõe um dispositivo de performance-gozo (jouissance), que deve auferir as ações de todos em termos de rentabilidade e de auditorias (audits). Não se trata de supor, como fazem alguns críticos, notoriamente muitos marxistas, que existiria um sujeito fundamental que é desfeito; mas de mostrar, em uma linha francamente fouco-deleuziana, que este sujeito é produzido, incitado, requerido, por uma malha complexa de instituições, discursos e práticas.

Outra ideia importante que os autores levantam é a de como, para os neoliberais, a democracia não é um "valor universal", para usar a formula de Coutinho. Se fazem a defesa da liberdade, é sobretudo a econômica. Hayek, citado no livro, afirma claramente que prefere uma ditadura economicamente liberal a uma democracia economicamente socialista. Mas, segundo os autores, não seria lícito distinguir tão rapidamente entre liberalismo político e liberalismo econômico, pois, conforme visto, este guarda profundos efeitos políticos. Dardot e Laval chegam mesmo a afirmar que a democracia tal qual conhecemos está ameaçada pelo avanço do neoliberalismo e de rua lei de ferro. 

As saídas desse emaranhado que nos cerca são dadas pelos autores sobretudo em outro livro (DARDOT, P. LAVAL, C. Commun. Essai sur la révolution au XXIe siècle. Paris: La Découverte, 2014; edição brasileira: Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI. SP: Boitempo, 2017), o qual será por nós analisado em breve. Em A nova razão do mundo há, somente, algumas indicações. Como, conforme mostram os autores, mesmo a esquerda vem replicando a governamentalidade neoliberal, trata-se, primeiramente, de criar uma governamentalidade de esquerda. Já o velho João Bernardo, um famoso marxista português, apontava como a esquerda não tinha inventado uma arte de governar, copiando, na maior parte de suas experiências históricas, modelos da economia de guerra alemã durante a I GM. Outra indicação é a de reforçar práticas que se contraponham à razão gerencial neoliberal, a qual incentiva a competição e o comportamento de empresa, mesmo no estado. Há alguns anos, João Bernardo, se indagava qual o sentido de defender a universidade pública se ela se assemelha mais e mais a uma empresa. É isso que Dardot e Laval questionam, quer dizer, o próprio estado é chamado a se organizar segundo a forma de uma empresa em nome de uma suposta modernização, nome máscara de privatização de seus meios. Para Dardot e Laval esta resistência deve-se dar em torno da reabilitação do comum - é como encerram o livro, sem dar maiores explicações, nos convidando a ler sua sequência.

O livro é muito bem escrito, fluente e agradável na leitura. Os atores são, também, muito capacitados para tratar do tema. Para aqueles que buscam uma análise bem informada sobre um dos principais tópicos da contemporaneidade, vale a leitura. Um feito do livro em terras tupiniquins é ser publicado pela Boitempo, editora marxista. Prova que, quando o trabalho é fecundo, mesmo os rivais se dobram a ele. 

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