Na tradição, aponta-se que a filosofia surgiu no século VI, nas colônias gregas da Jônia, atual Turquia. Antes dos primeiros filosófos, os pensadores de Mileto, havia outras formas de sabedoria que são, por muitos, aparentadas à filosofia. Adorno e Horkheimer, no clássico Dialética do Esclarecimento, afirmam que o mito já é uma forma de explicação racional. Estudos mais técnicos (apoiados na filologia, de helenistas) vão no mesmo sentido, como Kirk e Raven, no seu clássico "Os filósofos pré-socráticos". O mito, enquanto tentativa de explicar a totalidade, já indicaria um esforço de racionalizar o mundo, de dotá-lo de causas assinaláveis, ainda que transcendentes ou antropomorfizadas ou, até mesmo, animistas. Lévi-Strauss concorda com esse raciocínio, como, ademais, outros antropólogos. Antes da filosofia, ainda imbuídos com o espírito mítico, havia na Grécia uma espécie de pensadores que se expressavam sobretudo através da poesia, uma poesia densa, codificada, que tentava resumir máximas de sabedoria em poucas palavras; é a chamada poesia gnômica, escrita em um grego bem erudito, por vezes de difícil compreensão, visto que utiliza todos os recursos da língua. Embora muitos filósofos se expressem através da poesia, como Xenófanes, o desenvolvimento da prosa, que começa já com Anaximandro, é tido como particularmente filosófico, mesmo porque se inseria nas historie, nas investigações científicas que autores como Heródoto ou os médicos, hipocráticos ou não, empreendiam. Esses poetas-sábios foram aglutinados nas listas dos chamados sete sábios da Grécia. Houve muitas listas, com sábios diferentes. O mais famoso deles certamente é Sólon, que foi chamado para resolver os conflitos em Atenas, atuando também como legislador. Aqui, gostaria de chamar atenção para um desses sábios, Bias de Priene. Bias é um nome interessante, porque parece guardar relações com o verbo biazdein, que significa ser violento, agir com força. Bias é violência. Dos poucos fragmentos que restaram de Bias, um dos mais interessantes é aquele no qual ele afirma, no espírito de Horácio, que "a maioria é má" [hoi polloi kakoi]. A poesia gnômica, conforme dito, guarda o sentido de ser moral ou moralizante, se aproximando do sentido de textos como os de Esopo, que quase sempre terminam com algum tipo de lição de moral. Como decifrar as palavras de Bias à luz da história do mundo? Guardam elas atualidade? Para nós, influenciados pelas posições que relativizam o comportamento, dando razões sociais e históricas para explicar o móbil da ação das pessoas, talvez Bias esteja errado. Mas, se notarmos bem, Bias não afirma que a maioria sempre é má ou que por natureza a maioria é má. Afirma, apenas que, naquele momento, a maioria na Grécia era má. Bias viveu um momento de particulares tensões na Grécia, que redundariam na diáspora grega pelo mundo antigo, provocando o surgimento de colônias gregas desde a Península Ibérica até as costas do mar Negro, na atual Rússia. O motivo dessa dispersão da população era a ausência de terras. Sabe-se que o solo grego, além de pobre, é pedregoso, entrecortado por montanhas e, ademais, constitui uma pequena região; uma terra ruim para o cultivo. E os gregos estavam em plena expansão demográfica, após a chamada Idade das Trevas grega, período no qual sucessivas hordas de invasores derrubam o potentado micênico, dando azo à formação da pólis, com o fechamento do mundo grego. Penso que Bias pode ser lido de uma maneira diferente da habitual, mas, talvez, torcendo o autor; não é nossa culpa: indicamos que a poesia gnômica, por ser condensada, abre espaço para múltiplas interpretações; foi justamente essa característica que, talvez, tenha despertado a admiração de Heráclito que escreve aforismos gnômicos, condensados, com palavras dúbias. A maioria é má já que não quis lutar pela reforma das condições da vida na Grécia, se rendendo aos latifundiários e indo embora do país, abandonando seus concidadãos nas mãos da minoria aristocrata, detentora das melhores terras. Nesses termos, nós tornamos maus quando preferimos fugir à lutar, quando passamos a nos centrar somente em nós mesmos, virando as costas para aqueles que precisam, levando uma vida totalmente idiota. Idios, como se sabe, significa, em grego, "particular", "próprio"; o idiotes é aquele que leva sua vida sem se ater aos negócios da pólis. Nesse sentido, estamos cheios de idiotes, seja aqueles que não tomam preocupações contra a pandemia, seja aqueles que pedem uma reabertura de um fechamento que nem ocorreu de fato, por pressão desses mesmos que querem a reabertura. Trocar os deveres da pólis pelo interesse próprio é o que torna alguém idiotes. Como esses são a maioria, podemos afirmar, no legado de Bias, que a maioria, no Brasil, continua sendo má.
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