segunda-feira, 23 de março de 2020

Crítica da razão negra

MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre, Paris: La Découverte, 2013 [edição brasileira: Crítica da Razão Negra, s/l: n1 Publicações, 2018]

Na primeira metade do século passado, em um mundo onde a África e quase toda a Ásia eram colônias das nações européias e dos EUA, alguns intelectuais negros se encontraram em Paris por ocasião de estudos, dando início a variadas reflexões sobre a situação do negro, o que redundaria na Présence Africaine, editora que publicou alguns dos clássicos do estudo do continente negro. O marco da filosofia africana é, no entanto, o livro do padre Tempels sobre a filosofia banto (publicado por aquela editora), onde se eleva o pensamento deste povo ao mais alto nível de abstração e se os afirma como capazes de filosofar, quebrando um dos pilares do racismo colonial, a inferiorização do negro. Mas a filosofia africana ficou muito tempo presa nos marcos de sua possibilidade: discutia-se se era viável uma filosofia africana, se havia uma tradição filosófica negra, se os egipcíos eram negros, etc. - algumas destas questões são marcos também para os debates de filosofia brasileira e outras etnofilosofias. O processo todo é muito bem descrito por Montoya em "Introducción a la filosofia africana" (2010), e nos mesmos já tivemos oportunidade de debater a filosofia africana em alguns trabalhos. Com Mbembe se está em outro nível; já não se trata de perguntar se é possível a filosofia africana e de a justificar: se a faz. E Mbembe vem ganhando repercussão internacional, especialmente com a introdução do termo necropolítica, na esteira dos trabalhos de Foucault, conceito este que aparece com cada vez mais constância no debate brasileiro. 

Este livro em específico, a Crítica da razão negra, pode ser dividido em quatro partes: a introdução, uma análise histórica da formação do mundo negro, crítica literária de algumas obras africanas e análise de algumas das principais personalidades da razão negra, além do epílogo, o corolário do livro, parte extremamente importante. Mbembe mobiliza saberes de diferentes disciplinas, como se pode prever, mas três influências se sobressaem: o pós-estruturalismo francês (Foucault, Deleuze) e Frantz Fanon, redundando em uma análise muito interessante. Apartamos a introdução do restante do livro posto que nela ele introduz a noção de devir-negro do mundo, que não é devidamente trabalhada no restante da obra; por ela se indica a precarização dos modos de vida no planeta em decorrência do neoliberalismo. Já na parte histórica, faz uma análise bastante competente da formação do mundo negro, com farta bibliografia, mas focado na França, nos EUA e no Caribe; o caso brasileiro, maior destino de negros cativos no mundo, é citado de passagem, falta que é, a nosso ver, injustificável. Além disso, Mbembe começa o livro anunciando que a Europa já não é mais o centro do mundo, como o era durante o período colonial e escravista; mas ignora a própria realidade africana, não trabalhando a contento a produção mais contemporânea da filosofia africana e da razão negra. Dado o peso da análise discursiva, se poderia afirmar que o livro é uma espécie de arqueogenealogia no mundo negro, mas faltam alguns elementos, como apontado acima. Um dos focos, como o título indica, é a crítica da razão negra; por esta deve-se entender a maneira como aqueles intelectuais negros, que foram para Paris se formar no século passado, adotaram algumas das categorias do próprio colonialismo para pensar a própria realidade do negro no mundo, visto que este é uma criação do Outro; por exemplo, Mbembe aponta que o próprio conceito de nègre (negro) era reservado aos cativos, conquanto noir (negro) se aplicava aos africanos que quedaram em África. O autor chega a afirmar que o objetivo é um mundo sem raças, quer dizer, um mundo de diferentes, mas de uma humanidade enfim constituída como tal, não mais mercantilizada nem minorizada pelo racismo. Este, no entender de Mbembe, que, neste ponto como em outros segue Foucault, é tomado como a forma privilegiada da mecânica do poder contemporâneo, onde a população é segmentarizada e, sobre uma parte dela, tomada como inferior ou perigosa, se aplicam medidas de contenção ou, in extremis, ela é tomada, como ele aponta em outros textos, como passível de ser morta (necropolítica).

As passagens do texto onde o autor se propõe a analisar três obras literárias são morosas, mais interessantes, fazendo lembrar, pelo estilo e foco, o Raymond Roussel de Foucault. Mas são as outras três partes as mais importantes. Naquela onde ele analisa algumas das principais personalidades da razão negra (Garvey, Césaire, Fanon, Mandela) passa-se em revista as contribuições de cada um. O peso de Fanon aqui, como em outras partes do livro, é marcante. Se Mbembe se inscreve na continuidade fanoniana, falta-lhe, no entanto, a veia revolucionária deste. Claro, são autores de períodos muito distintos, e o foco de Mbembe é a crítica ao racismo e à formação da razão negra e do mundo negro; mas, nunca é demais lembrar, o racismo moderno surge de uma empresa capitalista. Para muitos partidos e movimentos marxistas e anarquistas, não é possível capitalismo sem racismo; para Mbembe, que não aponta uma estratégia nem um programa de luta, não foi possível capitalismo sem racismo. Ou seja, é concebível elaborar uma apropriação moderada de seu pensamento, talvez, mesmo, liberalismo. Cremos que o elo entre o pensamento de Mbembe e o socialismo precisava ser mais claro; ele faz elogios ao tratamento que os anarquistas davam a questão colonial e critica Jaurès, o que pode fornecer pistas, mas muito vagas; nestes termos, segue Foucault e as alusões deste ao anarquismo e à revolução, sem compromissos mais profundos.

O autor é fanoniano ainda em outro sentido: na clínica, ou na mobilização de elementos clínicos para analisar o mundo negro. Em Peau noire, masques blanches (Peles negras, máscaras brancas), Fanon, que tem formação médica, dedica a maior parte do livro a mostrar como o colonialismo destrói a subjetividade do colonizado. Neste ponto, a ruptura de Mbembe com o pós-estruturalismo é clara, visto que Foucault e Deleuze não pensam que exista um sujeito fundamental, mas que este é criado; em Deleuze, até mesmo o inconsciente deve ser produzido. Já Mbembe parece pensar nos termos do universalismo criptohegeliano de Fanon, que afirma a existência de uma humanidade destroçada pelo colonialismo, mas que cumpre reconciliar consigo mesma. 

O livro é bem escrito e, malgrado as falhas apresentadas acima, bem argumentado. Recomenda-se como uma boa análise das questões étnico-raciais. Deve desagradar marxistas (pela filiação pós-estruturalista) e liberais (pela insistência em modelos de luta e crítica ao neoliberalismo), mas faz bem o papel de dar seguimento às pesquisas pós-estruturalistas e decoloniais sobre a temática do racismo.

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