quarta-feira, 25 de março de 2020

Foucault com Marx

BIDET, Jacques. Foucault avec Marx. Paris: La Fabrique, 2014 [Edição em inglês: Foucault with Marx. London: Zed Books, 2016] 

A esquerda é múltipla, comportando muitas influências teóricas, que vão desde autores oriundos de revoltas populares até de pesquisas mais acadêmicas. Mas há "correntes" e, dentro destas, muitas vezes subcorrentes, caso notório do socialismo. Mas o mainstream da esquerda contemporânea comporta, basicamente, duas correntes teóricas distintas, a socialista e suas brigas entre marxistas e anarquistas, e, dentro destas linhas, disputas internas, proverbiais no caso dos trotskistas; e os pós-estruturalistas, eles mesmos divididos em muitas frações, segundo a predileção por Deleuze, Foucault, Lyotard, etc. De modo geral, como aponta Bidet, as principais lutas contemporâneas giram em torno de três eixos: classe, raça e gênero. Para as primeiras, a influência dominante é o velho socialismo, para as outras se utiliza o pós-estruturalismo francês. Claro, isto tudo é muito esquemático, e deixa de fora campos de luta importante, como a ecologia.

É possível unir estas correntes, ou, antes, tratam de coisas separadas? A extrema-direita elegeu ambas como inimigas, rejeitando, simultaneamente o que chamam de comunismo, a existência do racismo e a imaginária teoria de gênero, que é identificada com a dita esquerda pós-moderna, vide a recepção de Butler nos aeroportos do Brasil. Para o maior inimigo de ambas, elas representam o mal. Para os marxistas, corrente mais difundida do socialismo, os pós-estruturalistas são irracionais e tachados pejorativamente de pós-modernos, termo que Lyotard reivindica com orgulho, mas, por exemplo, Foucault rejeita; para os pós-estruturalistas, ou alguns deles, o marxismo é totalitário e avesso ao esprit du temps. Jacques Bidet crê, no entanto, que é possível uma reconciliação entre o maior nome dos pós-estruturalistas, Foucault, e o maior nome dos socialistas, Marx. É sobre essa ponte que ele escreve em seu livro Foucault avec Marx, publicado em 2014, na França.

Bidet é um marxista experiente e um professor de renome. Publicou estudos sobre Marx e atua no sentido de difundir sua obra. Mas se trata de um heterodoxo. Ele propõe uma refundação da teoria social, naquilo que ele chama de teoria metaestrutural. No livro em questão, ele não aborda em profundidade a questão, mas há lampejos que possibilitam entrever sua proposta. Do ponto de vista do estilo, ele escreve em um francês elegante, sem concessões para devaneios poéticos ou floreios. É direto. Talvez possa se objetar que sua bibliografia é limitada; quanto a Marx, ele se foca somente no estudo maior que é O capital; quanto a Foucault, praticamente toda a produção anterior a 1971, e aquela posterior a 1979 é escanteada. No pós-1979 é que Foucault fará sua proposta ético-política mais séria, e onde boa parte dos estudos mais hodiernos se focam. 

Como Bidet procede a síntese do absolutamente heterogêneo? Para ele, haveria dois eixos de dominação na sociedade contemporânea, o eixo de mercado e o eixo da organização. Marx teria exposto o funcionamento daquele do mercado, conquanto Foucault teria feito a analítica do  outro. O eixo da organização é dominado pela outra classe da sociedade capitalista, a dos dirigentes-competentes (dirigéants-compétents), que dominam porque exercem um poder-saber, conceito caro a Foucault. Já o poder da classe capitalista é aquele econômico, de mercado. Assim, Foucault e Marx podem dialogar no sentido do estabelecimento da teoria moderna da sociedade.

Bidet certamente ignora o trabalho de autores como Tragtenberg e João Bernardo, marxistas heterodoxos, que denunciavam (e denunciam, no caso de João Bernardo) a classe dos gestores. Esta classe, não a dos trabalhadores, é que teriam tomado o controle do Estado, em países como URSS e China. O socialismo, para estes autores, e outros, como Castoriadis, além dos anarquistas, significa autogestão. É a via libertária do socialismo e o marxismo de conselhos. A teoria de Bidet pode ser aproximada desses autores.

Tragtenberg intentou unir anarquismo e sua crítica política e marxismo e sua crítica econômica. Na análise de Bidet, a crítica política anarquista é substituída pelas fecundas análises de Foucault. Bidet distingue entre o socialismo (democracia econômica) e comunismo (democracia política), posto ser avesso ao estalinismo. Não que, exatamente, se ignore a ampla crítica política que o marxismo fez; mas o livro se chama "Foucault com Marx" não "Foucault com o marxismo", o que redunda em uma bibliografia magra, conforme indicado.

Bidet distingue Foucault em dois tempos, aquele da análise da sociedade disciplinar, cujo escopo é uma crítica do capitalismo; e o Foucault que emerge mais no final da década de 70, centrado na analítica do liberalismo e neoliberalismo e seu duplo, a população,  e o decorrente disto, o dístico governantes-governados. Marx analisa outro elemento, a formação e estrutura do capitalismo. Marx e Foucault se distinguiriam porque aquele elabora uma análise estrutural (entre as classes), enquanto Foucault faria uma análise nominalista (entre indivíduos); assim, Bidet separa rapports (relações) entre as classes e relations (relações) entre os indivíduos.

A proposta de Bidet não é dissolver Foucault em Marx, nem este naquele, mas fundar um metamarxismo, que dê conta, ao mesmo tempo, das críticas que ambos os pensadores elaboraram. Ele debate, mais no final do livro, uma estratégia, ou seja, fornece saídas. É a primeira vez que nos deparamos com uma discussão mais profunda sobre o conceito de estratégia em Foucault, nosso objeto de mestrado. Conforme dito, Bidet ignora a parte da obra de Foucault onde ele propõe uma estratégia, a constituição de outro sujeito ético e de outros modos de vida. Fiando-se em entrevistas e colocações mais esparsas, como as que constam no Dits et écrits, Bidet pensa que se trata de dois eixos de lutas, um vertical, marcado pela luta contra os dois pólos da dominação contemporânea (mercado e organização), e o eixo horizontal, onde as relações da classe fundamental (classe trabalhadora) devem ser equalizadas.

A tentativa de Bidet é interessante, e merece muito ser lida, especialmente por marxistas empedernidos, para que seu horizonte se amplie. Vimos insistindo que, para um marxista, como ademais para todos os herdeiros de Hegel, não se trata de simplesmente excluir, mas, sim, de suprassumir. A crítica foucaultiana é pertinente e documentada, extrapolando o campo da filosofia e se espraiando por muitas áreas. Certos conceitos de Foucault, como o de biopolítica, se tornaram moeda comum das Humanidades. Ao mesmo tempo, o marxismo se renova constantemente e sua crítica permanece atual.

Consegue Bidet fundir as duas correntes? Se considerarmos que ele reivindica uma democracia radical, contra os desvarios do estalinismo; e que ele reinscreve Foucault em um horizonte de classes, pode-se dizer que sim. Mas perguntas restam. Para a análise das classes, dialética, e para análise da organização, genealogia? E o intento marxista de fundar uma crítica da totalidade contra a pretensão foucaultiana de lançar flechas genealógicas? Como conciliar o projeto marxiano de uma ontologia do trabalho e aquele foucaultiano de uma ontologia do presente? E a heurística de pesquisas futuras, como proceder? São apenas algumas questões que, a nosso ver, Bidet não responde a contento. Claro, pode-se ler o livro como uma primeira aproximação, como um desafio ou como um projeto de pesquisa. Mas, para aqueles que, até então, se viam como inimigos mortais, especialmente os marxistas, que acusam Foucault de liberal, é um primeiro passo, mas que somente pode ser dado pelos não-dogmáticos.  

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