Estou escrevendo um trabalho sobre Olavo de Carvalho. Tarefa inglória, que exige disposição e estômago. Somente em condições muito especiais alguém como Olavo poderia ganhar alguma proeminência, somente uma direita muito órfã de pensadores se deixaria fiar em alguém com tão poucas qualidades e tantos defeitos.
Tudo o que se diz de Olavo à boca miúda pude comprová-lo. Grosseiro, mal fundamentado, delirante, teórico da conspiração. Olavo é tudo isso e mais um pouco. Suas concepções não resistem ao exame crítico, de modo que não pretendo escrever o texto para aqueles que, ao lê-lo, percebem as falácias, mas para aqueles que não são capazes de per si de enxergar os erros primários de Olavo.
Ele se situa em uma direita que é antimoderna. Com isto quer-se dizer: anti-iluminista. Para esse setor, o mal maior da humanidade moderna é o abandono da fé como princípio regulador. Kant e seu ceticismo naturalista implicam que se ouse saber e o abando da religião como princípio aceitável de organização social são inaceitáveis. A revolução francesa, o golpe de misericórdia. Nem se diga da revolução russa.
Uma das fontes de Olavo é Guénon, pouco conhecido nos círculos de esquerda, mas que faz extraordinário sucesso naquela diminuta parcela da direita que lê alguma coisa, já que a maioria destes sequazes simplesmente perpetua discursos prontos. Para Guénon, francês cristão que terminou a vida como muçulmano fanático, o mundo moderno está em crise porque abandonou os princípios universais em benefício do mundo material. A verdadeira inteligência, que teria existido na Antiguidade e Idade Média, foi preterida. Em troca, ganhamos meras benesses materiais, e perdemos o verdadeiro conhecimento. A humanidade ansiaria por conhecimentos imutáveis, que a ciência materialista e humanista seria incapaz de fornecer. Mas no Oriente, entre hindus, chineses e muçulmanos, ainda se encontrariam a verdadeira sabedoria.
Guénon despreza as “meras conquistas materiais da ciência”. É de se estranhar, já que, fora da matéria, não há nada e os n´veis de vida e prosperidade deram um salto desde que se principiou a modernidade. Nosso conhecimento do universo nunca foi tão vasto e, ainda assim, é diminuto. Mas é amplo o suficiente para saber que as religiões estão todas equivocadas. Para discursos que se dizem inspirados na divindade, todas erraram grosseiramente sobre as formas de organização do mundo. Para começar, supõe uma archē do cosmos, como ademais, boa parte da filosofia, quando atualmente se sabe que a chave para explicação do mundo é a relação. Além disso, as teorias da auto-organização da matéria avançaram, de modo que não é mais necessário supor essa archē.
É exatamente por que a ciência contemporânea já não busca essa archē que Guénon e Olavo são contra a ciência ou a minimizam. Para eles, deveríamos debater o sexo dos anjos, deveríamos debater o primeiro motor imóvel, e não a cura do câncer, por exemplo, a melhor forma de organização social ou o aquecimento do planeta. Essas questões mais prosaicas já foram respondidas nos livros religiosos, inspirador por deus. Homem manda, mulher obedece, homossexual é aberração e espíritos infestam o mundo. Deus criou o mundo em sete dias e sua palavra está na Bíblia, no Corão, nos Vedas, etc.
É inacreditável que, diante de tantas evidências da inexistência de deuses, Olavo e Guénon se aferrem, com o tempo e possibilidades que tiveram para estudar, em uma mitologia em tudo superada pelo andar dos fatos.
A religião foi muito importante historicamente, especialmente o cristianismo, na medida em que afirmou a igualdade radical dos humanos, contra as religiões elitistas e étnicas da antiguidade. Não foi posta em prática e, ainda na Antiguidade, viu-se sua inter-relação com os poderosos do mundo em um regime de opressão aos servos. Mais tarde, se tornou justificativa dos massacres colonialistas. Enquanto religião dos poderosos, foi criticada por aqueles que querem aplicar suas ideias não em um mundo após este, encarado como de sofrimento, mas criar o reino dos céus na terra, nesta vida. O nome dessas teorias é socialismo, nas suas múltiplas formas, que são aquilo que de melhor a humanidade produziu em termos de exequibilidade de um novo mundo.
A crítica às religiões mantém-se na ordem do dia. A espiritualidade moderna deve ser organizada em torno da filosofia, e, nesse sentido, a filosofia segue mais atual do que nunca. Revoluções podem ocorrer, mas a espiritualidade dos humanos há de se manter. Nesse sentido, as teorias éticas antigas podem ser de grande auxílio, especialmente o epicurismo. Outras forma de ética também são centrais na superação de um mundo religioso. Pensamos na ética que Foucault analisa no segundo volume da história da sexualidade e no dandismo: encarar a própria vida, a própria biografia como forma obra de arte.
Os olhos doem ao ler Olavo. Mas ele responde a uma sociedade que transformou toda espiritualidade no ato de comprar. Até deus, hoje em dia, se compra, no débito ou no crédito. Superar Olavo, do ponto de vista político, implica superar uma sociedade vazia de valores, onde tudo se resume ao vil metal e a vida humana se reduz àquilo que ela possui. E, do ponto de vista ético, superar Olavo é uma tarefa contemporânea da filosofia, e exige uma construção socialista de valores e de espiritualidade. Do contrário, outros Olavos surgirão, talvez ainda piores, se é que isto é possível.
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