À exceção do Facebook, ninguém me perguntou o que penso do atual conflito na Ucrânia. Mas, como se trata de evento crucial na Estratégia contemporânea, com significações muito além dos vizinhos e que nos afetam diretamente enquanto formação periférica do capitalismo global, resolvi escrever algumas linhas.
Estratégia é a ciência dos meios, ciência do mais alto interesse para qualquer Estado. Poder, além de um substantivo, é um verbo que indica as possibilidades de cada qual em realizar tal ou qual feito. Assim, não há poder sem estratégia nem estratégia que não se imiscua com algum poder. Claro, devemos distinguir entre força e poder. Força é a capacidade de atuar sobre o mundo físico; é a dynamis dos gregos, muitas vezes traduzida como potência. Recuperemos e distorçamos Aristóteles e pensemos que a força é a capacidade de tornar aquilo que era mera possibilidade em ato. Nesse sentido, todos os entes possuem alguma força, já que constantemente agem sobre o mundo, alterando-o. Tudo está cheio de deuses: o kosmos possui movimento, as partículas vibram, se destroem, dão origem a novas.
O poder é um tipo especial de força, já que ele age em uma sociedade, ou seja, age sobre outros humanos, determinando suas condutas ou insuflando sua reação. Poder é a força em sociedade orientado por uma estratégia. Nem toda força em sociedade é um poder, mas todo poder só existe em sociedade. A força não se vale de estratégias, mas de estrategions, termo nosso, que utiliza o termo estratégia com o diminutivo grego — ion; poderíamos dizer, estrateginhas. Todo poder utiliza estratégia, portanto, mas somente algumas relações de poder são estudadas pela ciência da Estratégia, ciência pristina, velha como as pirâmides, mas que só se firmou ainda muito recentemente.
Para essa ciência, a política fixa os meios e a Estratégia executa. Por isso Estratégia (ciência dos meios) e poder (meios para um fim) se relacionam tão intimamente, orientados pelo skopos (finalidade) determinado pela política. É a submissão dos interesses militares aos civis, do contrário viveríamos todos em ditaduras militares.
Pois bem, para a Estratégia contemporânea o fundamental da ação militar é garantir e ampliar nossa própria liberdade de ação (consequentemente, nosso poder) e restringir a do inimigo. Essa é a definição do general francês André Beaufre, a qual seguimos (e que influencia muito as F.A.s). Essa máxima explica o caso ucraniano: esse conglomerado de países capitalistas reunidos sobre a bandeira da OTAN busca reduzir a liberdade de ação russa e aumentar sua própria. Os russos suportaram esse avanço da OTAN enquanto estavam suficientemente fracos, mas, agora, com a criação de mecanismos de suporte, veem-se na posição de peitar essa mesma OTAN, em território europeu.
Aos russos, interessa uma guerra rápida e impor à Ucrânia uma derrota e um governo pró-Moscou. Aos ucranianos interessa uma guerra de desgaste, talvez abertamente de guerrilha, única forma de um país pequeno resistir a magnitude dos russos sem utilizar armas nucleares, armas estas que a Ucrânia abriu mão. Se possível, atrair aliados para a luta contra os russos e transformar a Ucrânia na tumba fria de seus algozes. A OTAN parece disposta a financiar esta guerra, afinal, não serão os seus morrendo, mas uma entrada direta no conflito parece pouco provável, já que significaria a guerra nuclear e a Ucrânia não é um objetivo tão valioso.
Como diz Clausewitz, a guerra tende aos extremos, mas é modulada pela política, que serve de pelego para as ações. Se Putin usa a bomba atômica, será retaliado. Se Zelensky escolhe uma guerra de resistência, será um massacre de ucranianos. Tudo há de depender da eficiência dos russos e dos ucranianos e da disposição de Zelensky em ceder.
Como Estratégia lida com poder, é natural que ela percorra até mesmo a mídia, esse quarto poder nas sociedades assim ditas livres. Cantam alguns que Zelensky venceu a guerra midiática. Mas, quando foi que a mídia ocidental, os grandes conglomerados, trataram Putin bem? Quando não o chamam abertamente de ditador, o veem como autocrata e a elite russa, tão oligárquica quanto as plutocracias do Oeste, é retratada como uma oligarquia.
O que gera esse ódio contra Putin é o fato de ser presidente de um país que enterrou o ideário neoliberal e de se tratar de uma sociedade organizada fortemente em torno do Estado, entendido como ponto nodal das relações sociais, ao contrário dos EUA ou da UE. Na Rússia, o Estado ocupa papel central na sociedade. Além disso, A Rússia de Putin é um Estado que tem grande liberdade de ação e apoia e é apoiada por todos os regimes-pária, quer dizer, anti-Ocidente, ou seja, que resistem ao imperialismo yankee. A Rússia é um poder autônomo em um mundo onde o poder dominante, malgrado se diga democrático, está nas mãos de alguns plutocratas, que querem terminar de ocidentalizar o mundo, quer dizer, de abrir mercados para suas empresas e explorar recursos naturais, tendo como eixo a Europa Ocidental-EUA-Canadá-Japão-Austrália-Nova Zelândia-Coréia do Sul-Israel.
Mas a Rússia também é um regime capitalista, somente mais estatizado. Trata-se, portanto, de uma guerra interimperialista, com a particularidade de que há décadas a OTAN não era desafiada tão abertamente, por um Estado capaz de opor resistência. Esse é o único ponto positivo do conflito, já que a vitória russa significa o enfraquecimento da OTAN e, com isso, do neoliberalismo; talvez haja outro ponto positivo, se acrescentarmos as relações entre o governo da Ucrânia e as forças neonazistas de lá, as quais os russos dizem querer esmagar. Mas o regime russo não nos oferece nenhuma real alternativa ao pesadelo neoliberal. Ao contrário, seria a escolha de um regime menos pior ou, sob alguns aspectos, até mesmo pior, o que não deve nos impedir de condenar a hipocrisia do assim dito Ocidente, suas organizações e sua mídia que mistura jornalismo com tomada de posição. Dito de outro modo: Putin é inimigo estratégico, mas pode ser aliado tático, dependendo da orientação política de cada qual; escrevo este texto para pessoas de esquerda, como sempre. Já os neoliberais são, no Brasil, inimigos estratégicos e táticos.
Não rebaixemos, no entanto, nossos objetivos para a realpolitik que o mundo nos impõe. Temos direito a mais do que o menos pior. Organizemo-nos para alcançá-lo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário