quarta-feira, 4 de maio de 2022

Losurdo, Foucault, anarquismo e marxismo

     Lendo o Luta de classes, de Domenico Losurdo, surgiram-nos algumas questões, especialmente na parte na qual ele analisa Foucault, parte esta que vem explicitada e comentada abaixo.

    Para Losurdo, o marxismo se constitui em uma lógica que explica o conflito social em três níveis: no nível econômico, na luta entre operários e patrões, no nível nacional (que podemos dizer étnico) entre nações oprimidas e nações opressoras, e no nível de gênero, com a opressão das mulheres pelos homens. Ele ainda acrescenta as preocupações ecológicas de Marx e Engels, segundo ele, adequadas às questões contemporâneas.

    Losurdo considera que Nietzsche comete uma contradição performativa ao criticar o silogismo como plebeu e se valer da mesma razão criticada a fim de construir suas argumentação. Ele também considera que Nietzsche faz um giro nominalista, desconfiando da categoria de homem, a fim de poder tratar os homens como escravos aristotélicos, como meros instrumentos, ao tornar a luta entre senhores e escravos um princípio explicativo transcendente, que explicaria todas as sociedades humanas (p. 77-78)

    O resultado desse nietzscheanismo, que Foucault crê mais radical que a proposta de Marx, é a busca por relações de poder em toda parte, o que se mostrou, diz Losurdo, uma luta contra a razão e uma microfísica do poder que dificultou a comunicação intersubjetiva. A construção de uma sociedade pós-capitalista também se encontra prejudicada, já que novas formas de poder hão de emergir, de modo a não se encarar verdadeiras alternativas, ou seja, nem todo poder é ruim. O resultado é uma perspectiva anárquica, que deixa um espaço aberto, o qual somente pode ser preenchido pela violência direta. (p. 78)

    Essa é a avaliação geral dele de Foucault. Para, ele portanto, o poder político não está, à moda do mestre francês, espalhado nas instituições sociais. É um poder político centrado no Estado. Além disso, como fica claro, todas as relações de poder têm por base o campo da produção econômica: operários e patrões, imperialismo e países dominados, mulher e divisão sexual do trabalho, ecologia e as consequências da indústria ao meio ambiente. Losurdo não procede, destarte, a uma crítica da civilização ocidental enquanto tal, mas a um capítulo dela, aquele da modernização capitalista.

    Não chegamos ainda ao fim do livro e não sabemos como ele terminará sua arguição, mas, por ora, abordemos alguns aspectos de sua argumentação.

    Foucault, é certo, é um nietzschiano, mas um nietzschiano de esquerda, com origens no marxismo e alguém para quem o marxismo é muito importante, um de seus principais interlocutores, especialmente na figura de Althusser, seu antigo professor. Foucault parece não crer em um modelo para analisar o poder, mesmo porque, para ele, não existe um poder político hipostasiado, que alguém possa controlar. Trata-se de uma concepção fluida de poder, um poder que só existe em exercício e que precisa ser constantemente exercitado para se valer. Poder é a capacidade de influir sobre a liberdade alheia, mas tem sempre formas históricas, existe sempre em cada caso. Não existe uma substância do poder, não existe um quid do poder; a pergunta é por um situs: situar as relações de poder historicamente, não crer que um mesmo poder político se repita na história. Por ser sempre em exercício, o poder, nas sociedades contemporâneas, caracterizadas pelo acúmulo de humanos em espaços diminutos, se aplicou sobre o corpo, criando um determinado tipo de sujeitos, os proletários. A questão era, para as classes possuidoras dos princípios da revolução industrial, como transformar o camponês em proletário, como educar esse corpo de modo que ele não seja revolucionário e improdutivo, como se apropriar do tempo dessas populações. Para o mestre francês, a burguesia se valeu de estratégias para tanto.

    Em uma das passagens mais célebres do Tractatus, Wittgenstein afirma, após expor a estrutura das relações entre mundo e linguagem, que suas proposições são como uma escada que se deve jogar fora depois de subir, visto que elas são indizíveis, não podem ser empiricamente provadas. Foucault parece seguir essa lição. Por isso, ele só trabalha com documentos históricos, datados, existentes; com fatos, em duas palavras. Daí que se o digam um empirista histórico. Disso também decorre seu nominalismo.

    A questão de fundo é saber se o poder político possui uma archē, um princípio existente em todas as sociedades. Para o marxismo, esse princípio é a propriedade privada. Foucault não crê nisso. O poder, existindo somente em ato, só pode ser decifrado com a análise histórica de cada sociedade, na história, através de dados. Não que ele ignore a questão da propriedade ou dos conflitos econômicos. Ao contrário, sempre leva em conta dados econômicos, como fica patente em livros como a História da loucura ou nos cursos no Collége de France, isso sem dizer de Vigiar e Punir. Mas o poder não se reduz à economia. Os marxistas parecem sonhar que, com o fim da propriedade privada, acabar-se-ão as relações de poder. Ignoram o que se passou na URSS ou em outros países que fizeram a revolução socialista? Os trotskistas tem a fórmula pronta: Estado operário degenerado. A revolução não foi global, e passou por um termidor, por um 18 Brumário.

    Deixemos a crítica ao trotskismo para outro dia. Nos foquemos no neoestalinismo de Losurdo. A verdade é que em sociedades sem propriedade privada o poder não acabou, ao contrário, bastante ao contrário. Foucault adota algumas precauções de método, como ele chama, a fim de estudar o poder em algumas hipóteses, que ele lança. Por exemplo, que o poder não se reduz à economia, mas sim que ele visa estabelecer relações de força, e que a política é a guerra continuada por outros meios. Trabalhemos, já com nosso toque, essas teses.

    Há muitas definições de política. O termo nos reenvia para a polis, termo grosseiramente traduzida como cidade-estado. Mas a polis não é isso, já que a maior parte dos domínios de Atenas não era urbano, mas rural, por exemplo. A polis indica a união das diferentes tribos, divididas em famílias, que habitam o oikos, e que guardam interesses comum, sejam econômicos, de defesa, culturais, etc. A política é a ciência e a technē que nos fornece os elementos capazes de contribuir com a gestão da pólis. A política é a gestão da vida em sociedade. Onde há sociedade, há política, porque há interesses em comum. Falar em fim da política significa assinar o suicídio da comunidade. Do mesmo modo Estado; não podemos cair no anacronismo e no etnocentrismo de identificar como Estado somente aquelas formas que se desenvolveram na Europa, cujo paroxismo é a ditadura. Estado é o nome do âmbito onde os conflitos sociais são administrados. Enquanto houver sociedade humana haverá Estado, já que haverá conflitos. O Estado possui muitas forma históricas e não necessariamente precisa guardar o caráter de administrar os bens comuns, como estes não precisam ser públicos.

    Assim, a política e o Estado não se ancoram na propriedade privada somente. Pode existir Estado sem propriedade privada, como podem existir sociedades sem a mesma. Como o marxismo crê que a propriedade privada é a origem do Estado, defende que a chave interpretativa da política é essa mesma propriedade, subsumindo os conflitos aos seus assim ditos “interesses materiais”, como se pudessem existir interesses não materiais.

    Foucault afirma que quer adotar um modelo belicoso, da guerra civil. Esse modelo ele retira de Nietzsche, que possua vez o retirou de Heráclito. Marx trabalha seu modelo a partir de Hegel, que, por sua vez, também o retirou de Heráclito. Este, conhecido como o obscuro na Antiguidade, defendia a guerra como princípio supraempírico, nas palavras do frei brasileiro Damião Berge, capaz de explicar até mesmo os deuses, além de dar os esclarecimentos de porquê alguém se torna rei ou escravo. Heráclito torna a guerra princípio cósmico de explicação, princípio que, como se vê ressoa até o presente. Ele por sua vez foi beber em fontes mais antigas, como Anaximandro e a épica grega; afinal, a Ilíada e a Odisseia tem como background uma guerra.

    Anaximandro buscou no jargão dos tribunais um vocabulário para descrever o mundo. Segundo ele, os contrários se enfrentam e pagam pena pelos seus atos, retornando, no final, ao princípio, à mesma archē de onde advieram. Trata-se de uma asserção do cosmo como, ao mesmo tempo, belicoso e cíclico. Heráclito pensa o mesmo, mas acrescenta que, por trás dos conflitos, há uma unidade. Essa unidade, cujo nome é ser, ressoa em Hegel; os contrários lutam, mas em um eixo espiralado que conduz adiante, rumo à realização do Absoluto. Ou seja, não se trata de um conflito que vai até as últimas consequências. Pensemos em uma guerra; há adversários, mas há, também, o campo de batalha, que possibilita a guerra, sem a qual esta não é possível. Essa conceitualização se marcou em Marx, que vê as lutas de classe se desenrolarem nos marcos do desenvolvimento das forças produtivas.

    Nietzsche, embora também seja herdeiro de Heráclito, radicaliza suas posições. Isso porque Nietzsche não parte de uma ontologia do trabalho, mas de uma ontologia do saber. Assim, ele se pergunta sobre o valor de todos os valores e vê no ato mesmo de aquilatar algo um valor. Dar sentido a algo, para Nietzsche, em um momento de neokantismo na Alemanha, é já impor uma certa ordenação à coisa. Foucault é herdeiro dessa posição nominalista.

    Assim temos duas visões sobre o poder político, uma orientada à uma ontologia do trabalho, que reintegra os conflitos no interior de uma sociedade, a outra que os radicaliza e pensa que o próprio pensar sobre o conflito já é conflituoso. Podemos abstrair ainda mais esta última posição (contra os desejos de Foucault). Para sermos consequentes, pensemos que força é um fenômeno da natureza; as moléculas, as partículas têm força, são capazes de agir e mudar o rumo umas das outras. Força, em sociedade, se torna poder. Como as relações sociais são geohistóricas, nada é natural ou vão; ao contrário, tudo pode ser politizado: a forma da família, a relação com o corpo, o que se ingere, como nos comportamos, como nos relacionamos uns com os outros. A pergunta pelo quid, já dissemos, é uma pergunta pelo situs, quer dizer, a pergunta pela essência deve ser situada: só existe essência em uma forma geohistórica.

    Por isso Foucault afirma que é nas microrrelações de poder (e na sua alteração) que podemos encontrara chave para a mudança social. Como um corpo, que todos somos, pode mudar uma sociedade se não for um corpo rebelde? Daí que se possa aproximar Foucault do anarquismo, como faz Losurdo. Os anarquistas tinham uma preocupação com questões como vegetarianismo, educação, sexismo, etc., ou seja, uma preocupação com ser você mesmo a mudança. Favor não confundir com slogans de autoajuda. Para os anarquistas, o meio contem os fins: a mudança social só vai acontecer se adotarmos meios condizentes com ela. Para os marxistas ou, antes, para os leninistas, os fins justificam os meios, id est, a fim de que tomemos o Estado, qualquer meio é válido, inclusive dizer todo poder aos soviets para depois se desfazer deles.

    Os marxistas esperam organizar o ethos, a organização da sociedade através de uma ação que venha de cima; os anarquistas (e Foucault, que não era propriamente falando anarquista) pensam que se deve organizar por baixo: um rebelde é um corpo rebelde. Mudar a sociedade a partir do centro ou da periferia, de cima ou de baixo; depende das preferências de cada um, que devem ser baseadas na análise histórica, na casuística dos processos históricos, tendo em vista os fins almejados. Os marxistas tendem a se focar nas questões econômicas salientadas, que são muito importantes. Os foucaultianos tendem a ter uma visão libertária de política, o que também é muito importante.

    É possível unir as duas visões, em uma estratégia que dê conta dos dois campos de ação? Alguns, como Bidet, Dardot e Laval, Negri e Hardt, creem que sim. Mas a resposta a essa pergunta só teremos ao cabo de uma nova pesquisa, a ser feita.

Nenhum comentário:

Postar um comentário