Lendo o Luta de classes, de Domenico Losurdo, surgiram-nos
algumas questões, especialmente na parte na qual ele analisa
Foucault, parte esta que vem explicitada e comentada abaixo.
Para Losurdo, o marxismo se constitui em uma lógica que explica o
conflito social em três níveis: no nível econômico, na luta entre
operários e patrões, no nível nacional (que podemos dizer étnico)
entre nações oprimidas e nações opressoras, e no nível de
gênero, com a opressão das mulheres pelos homens. Ele ainda
acrescenta as preocupações ecológicas de Marx e Engels, segundo
ele, adequadas às questões contemporâneas.
Losurdo considera que Nietzsche comete uma contradição
performativa ao criticar o silogismo como plebeu e se valer da mesma
razão criticada a fim de construir suas argumentação. Ele também considera
que Nietzsche faz um giro nominalista, desconfiando da categoria de
homem, a fim de poder tratar os homens como escravos aristotélicos,
como meros instrumentos, ao tornar a luta entre senhores e escravos um
princípio explicativo transcendente, que explicaria todas as
sociedades humanas (p. 77-78)
O resultado desse nietzscheanismo, que Foucault crê mais radical
que a proposta de Marx, é a busca por relações de poder em toda
parte, o que se mostrou, diz Losurdo, uma luta contra a razão e uma
microfísica do poder que dificultou a comunicação intersubjetiva.
A construção de uma sociedade pós-capitalista também se encontra
prejudicada, já que novas formas de poder hão de emergir, de modo a
não se encarar verdadeiras alternativas, ou seja, nem todo poder é ruim. O resultado é uma
perspectiva anárquica, que deixa um espaço aberto, o qual somente
pode ser preenchido pela violência direta. (p. 78)
Essa é a avaliação geral dele de Foucault. Para, ele portanto, o
poder político não está, à moda do mestre francês, espalhado nas
instituições sociais. É um poder político centrado no Estado.
Além disso, como fica claro, todas as relações de poder têm por
base o campo da produção econômica: operários e patrões,
imperialismo e países dominados, mulher e divisão sexual do
trabalho, ecologia e as consequências da indústria ao meio
ambiente. Losurdo não procede, destarte, a uma crítica da
civilização ocidental enquanto tal, mas a um capítulo dela, aquele
da modernização capitalista.
Não chegamos ainda ao fim do livro e não sabemos como ele terminará sua
arguição, mas, por ora, abordemos alguns aspectos de sua
argumentação.
Foucault, é certo, é um nietzschiano, mas um nietzschiano de
esquerda, com origens no marxismo e alguém para quem o marxismo é
muito importante, um de seus principais interlocutores, especialmente
na figura de Althusser, seu antigo professor. Foucault parece não
crer em um modelo para analisar o poder, mesmo porque, para ele, não
existe um poder político hipostasiado, que alguém possa controlar.
Trata-se de uma concepção fluida de poder, um poder que só existe
em exercício e que precisa ser constantemente exercitado para se
valer. Poder é a capacidade de influir sobre a liberdade alheia, mas
tem sempre formas históricas, existe sempre em cada caso. Não
existe uma substância do poder, não existe um quid do poder; a
pergunta é por um situs: situar as relações de poder
historicamente, não crer que um mesmo poder político se repita na
história. Por ser sempre em exercício, o poder, nas sociedades
contemporâneas, caracterizadas pelo acúmulo de humanos em espaços
diminutos, se aplicou sobre o corpo, criando um determinado tipo de
sujeitos, os proletários. A questão era, para as classes
possuidoras dos princípios da revolução industrial, como
transformar o camponês em proletário, como educar esse corpo de
modo que ele não seja revolucionário e improdutivo, como se
apropriar do tempo dessas populações. Para o mestre francês, a
burguesia se valeu de estratégias para tanto.
Em uma das passagens mais célebres do Tractatus,
Wittgenstein afirma, após expor a estrutura das relações entre
mundo e linguagem, que suas proposições são como uma escada que se
deve jogar fora depois de subir, visto que elas são indizíveis, não
podem ser empiricamente provadas. Foucault parece seguir essa lição.
Por isso, ele só trabalha com documentos históricos, datados,
existentes; com fatos, em duas palavras. Daí que se o digam um empirista histórico.
Disso também decorre seu nominalismo.
A questão de fundo é saber se o poder político possui uma archē,
um princípio existente em todas as sociedades. Para o marxismo, esse
princípio é a propriedade privada. Foucault não crê nisso. O
poder, existindo somente em ato, só pode ser decifrado com a análise
histórica de cada sociedade, na história, através de dados. Não
que ele ignore a questão da propriedade ou dos conflitos econômicos.
Ao contrário, sempre leva em conta dados econômicos, como fica
patente em livros como a História da loucura ou nos cursos no
Collége de France, isso sem
dizer de Vigiar e Punir.
Mas o poder não se reduz à economia. Os marxistas parecem sonhar
que, com o fim da propriedade privada, acabar-se-ão as relações de
poder. Ignoram o que se passou na URSS ou em outros países que
fizeram a revolução socialista? Os trotskistas tem a fórmula
pronta: Estado operário degenerado. A revolução não foi global, e
passou por um termidor, por um 18 Brumário.
Deixemos a crítica ao trotskismo para outro dia. Nos foquemos no
neoestalinismo de Losurdo. A verdade é que em sociedades sem
propriedade privada o poder não acabou, ao contrário, bastante ao
contrário. Foucault adota algumas precauções de método, como ele
chama, a fim de estudar o poder em algumas hipóteses, que ele lança.
Por exemplo, que o poder não se reduz à economia, mas sim que ele
visa estabelecer relações de força, e que a política é a guerra
continuada por outros meios. Trabalhemos, já com nosso toque, essas
teses.
Há muitas definições de
política. O termo nos reenvia para a polis, termo grosseiramente
traduzida como cidade-estado. Mas a polis não é isso, já que a
maior parte dos domínios de Atenas não era urbano, mas rural, por
exemplo. A polis indica a união das diferentes tribos, divididas em
famílias, que habitam o oikos,
e que guardam interesses comum, sejam econômicos, de defesa,
culturais, etc. A política é a ciência e a technē
que nos fornece os elementos capazes de contribuir com a gestão da
pólis. A política é a gestão da vida em sociedade. Onde há
sociedade, há política, porque há interesses em comum. Falar em fim
da política significa assinar o suicídio da comunidade. Do mesmo
modo Estado; não podemos cair no anacronismo e no
etnocentrismo de identificar como Estado somente aquelas formas que
se desenvolveram na Europa, cujo paroxismo é a ditadura. Estado é o
nome do âmbito onde os conflitos sociais são administrados.
Enquanto houver sociedade humana haverá Estado, já que haverá
conflitos. O Estado possui muitas forma históricas e não
necessariamente precisa guardar o caráter de administrar os bens
comuns, como estes não precisam ser públicos.
Assim, a política e o Estado não se ancoram na propriedade privada
somente. Pode existir Estado sem propriedade privada, como podem
existir sociedades sem a mesma. Como o marxismo crê que a
propriedade privada é a origem do Estado, defende que a chave
interpretativa da política é essa mesma propriedade, subsumindo os
conflitos aos seus assim ditos “interesses materiais”, como se
pudessem existir interesses não materiais.
Foucault afirma que quer adotar um modelo belicoso, da guerra civil.
Esse modelo ele retira de Nietzsche, que possua vez o retirou de
Heráclito. Marx trabalha seu modelo a partir de Hegel, que, por sua
vez, também o retirou de Heráclito. Este, conhecido como o obscuro
na Antiguidade, defendia a guerra como princípio supraempírico, nas
palavras do frei brasileiro Damião Berge, capaz de explicar até
mesmo os deuses, além de dar os esclarecimentos de porquê alguém
se torna rei ou escravo. Heráclito torna a guerra princípio cósmico
de explicação, princípio que, como se vê ressoa até o presente.
Ele por sua vez foi beber em fontes mais antigas, como Anaximandro e
a épica grega; afinal, a Ilíada e a Odisseia tem como background
uma guerra.
Anaximandro buscou no jargão dos tribunais um vocabulário para
descrever o mundo. Segundo ele, os contrários se enfrentam e pagam
pena pelos seus atos, retornando, no final, ao princípio, à mesma
archē de onde advieram. Trata-se de uma asserção do cosmo como, ao
mesmo tempo, belicoso e cíclico. Heráclito pensa o mesmo, mas
acrescenta que, por trás dos conflitos, há uma unidade. Essa
unidade, cujo nome é ser, ressoa em Hegel; os contrários lutam, mas
em um eixo espiralado que conduz adiante, rumo à realização do
Absoluto. Ou seja, não se trata de um conflito que vai até as
últimas consequências. Pensemos em uma guerra; há adversários,
mas há, também, o campo de batalha, que possibilita a guerra, sem a
qual esta não é possível. Essa conceitualização se marcou em
Marx, que vê as lutas de classe se desenrolarem nos marcos do
desenvolvimento das forças produtivas.
Nietzsche, embora também seja herdeiro de Heráclito, radicaliza
suas posições. Isso porque Nietzsche não parte de uma ontologia do
trabalho, mas de uma ontologia do saber. Assim, ele se pergunta sobre
o valor de todos os valores e vê no ato mesmo de aquilatar algo um
valor. Dar sentido a algo, para Nietzsche, em um momento de
neokantismo na Alemanha, é já impor uma certa ordenação à coisa.
Foucault é herdeiro dessa posição nominalista.
Assim temos duas visões sobre o
poder político, uma orientada à uma ontologia do trabalho, que
reintegra os conflitos no interior de uma sociedade, a outra que os
radicaliza e pensa que o próprio pensar sobre o conflito já é
conflituoso. Podemos abstrair ainda mais esta última posição
(contra os desejos de Foucault). Para sermos consequentes, pensemos
que força é um fenômeno da natureza; as moléculas, as partículas
têm força, são capazes de agir e mudar o rumo umas das outras.
Força, em sociedade, se torna poder. Como as relações sociais são
geohistóricas, nada é natural ou vão; ao contrário, tudo pode ser
politizado: a forma da família, a relação com o corpo, o que se
ingere, como nos comportamos, como nos relacionamos uns com os
outros. A pergunta pelo quid,
já dissemos, é uma pergunta pelo situs,
quer dizer, a pergunta pela essência deve ser situada: só existe
essência em uma forma geohistórica.
Por isso Foucault afirma que é nas
microrrelações de poder (e na sua alteração) que podemos
encontrara chave para a mudança social. Como um corpo, que todos
somos, pode mudar uma sociedade se não for um corpo rebelde? Daí
que se possa aproximar Foucault do anarquismo, como faz Losurdo. Os
anarquistas tinham uma preocupação com questões como
vegetarianismo, educação, sexismo, etc., ou seja, uma preocupação
com ser você mesmo a mudança. Favor não confundir com slogans
de autoajuda. Para os
anarquistas, o meio contem os fins: a mudança social só vai
acontecer se adotarmos meios condizentes com ela. Para os marxistas
ou, antes, para os leninistas, os fins justificam os meios,
id est, a fim de que tomemos o
Estado, qualquer meio é válido, inclusive dizer todo poder aos
soviets para depois se desfazer
deles.
Os marxistas esperam organizar o ethos, a organização da sociedade através de uma ação que venha de cima; os anarquistas
(e Foucault, que não era propriamente falando anarquista) pensam que
se deve organizar por baixo: um rebelde é um corpo rebelde. Mudar a
sociedade a partir do centro ou da periferia, de cima ou de baixo;
depende das preferências de cada um, que devem ser baseadas na
análise histórica, na casuística dos processos históricos, tendo
em vista os fins almejados. Os marxistas tendem a se focar nas
questões econômicas salientadas, que são muito importantes. Os
foucaultianos tendem a ter uma visão libertária de política, o que
também é muito importante.
É possível unir as duas visões, em uma estratégia que dê conta
dos dois campos de ação? Alguns, como Bidet, Dardot e Laval, Negri
e Hardt, creem que sim. Mas a resposta a essa pergunta só teremos ao
cabo de uma nova pesquisa, a ser feita.