segunda-feira, 27 de junho de 2022

A felicidade

 

    Uma das ramas mais vendáveis da literatura atual é a autoajuda. Basta entrar em uma livraria para encontrar os livros desse segmento em primeiro plano. Por trás da autoajuda, toda uma série de concepções que nos informam sobre as perspectivas de uma sociedade. Toda uma filosofia social poderia ser pensada em torno das noções que uma formação social se impõe. Invariavelmente, os títulos trazem noções sobre deus, riqueza, sucesso, a lida com os filhos, etc. As expectativas de um mundo em transformação.

É um tropo da historiografia dividir a história da filosofia antiga entre pré-socrática e socrática e, depois desta, nos compêndios mais requintados, precisar a filosofia helenística, época, injustamente, considerada menor. Aos grandes sistemas de Platão e Aristóteles, se opõe as filosofia menores de Epicuro e Zenão, como se fossem filosofias de menor valor. Dizemos injustamente, não só porque o estoicismo e o epicurismo exerceram muita influência, como, ademais, por serem filosofias muito ricas. Mas, enquanto os mestres sistemáticos estavam preocupados com as grande questões da filosofia, Epicuro e Zenão eram filosofias mais dedicadas á busca pela felicidade, questão mais comezinha, como se quis, mas nem por isso, a nosso ver, menos importante.

É claro, Aristóteles também colocava como o fim da ética a felicidade e mesmo do Estado. Não à toa é chamado de eudaimonista. O termo eudaimoia, é composto de prefixo e raiz. “Eu” significa “bem”: “eu legeis, ō phile”, “bem dizeis”, ó amigo; “eu mathes, ō pais”, “bem aprendes, criança”. Já daimonia é um derivado de daimon, vocábulo que está na origem donosso termo “demônio”, visto as mudanças etimológicas pelas quais passou. Daimon, quando Aristóteles escreve significa divino; é esse termo que Sócrates usa para indicar a voz que conversa com ele e que, no dia de sua execução, lhe ordenou que escrevesse poesia, fato notado por Nietzsche, ao indicar o temível espírito inquisidor doo mestre de Platão. Assim, o termo eudaimonia estaria ligado com o ser segundo a dividida, de estar alinhado com os desígnios do mundo. Para o grego, de acordo com nossa bamba filologia, não deveríamos sofrer, nem mesmo na Idade decaída de nossa era, em comparação com a mítica idade do ouro, que nos conta Hesíodo. Até mesmo o Estado deveria se preocupar com nossa felicidade, diz o Estagirita; afinal, se tudo tem um fim, o fim da comunidade é assegurar o bem viver de seus membros.

Mas com as filosofias do helenismo a preocupação com a felicidade é muito mais acentuada. Das obras extantes de Epicuro, uma delas é a Carta a Meneceu, onde o filósofo aborda a questão da felicidade. Os estoicos, como Sêneca e Epicteto, á no período romano, trataram abundantemente do tema. Epicteto chegou a escrever um texto, o famoso Egcheiridion, o Manual, onde a questão da felicidade é o fio condutor do texto. Para Epicteto, a chave da felicidade consiste em não se preocupar com as coisas que não estão a nosso alcance, mas, sim, de se ocupar com aquilo que nós mesmos podemos alcançar por nosso esforço.

A própria ideia de felicidade, na filologia que esboçamos, já dá algumas indicações de como pode ser pensada. Se a felicidade envolve certa consonância, para o grego, com a divindade, isso implica certo acordo com a religião, ao que parece. Isto para os primórdios da língua. A filosofia parece ter contribuído para mudar essa concepção.

Na Antiguidade clássica foram introduzidos os ditos dos setes sábios, que já tratei em outros textos. Um desses sábios, Tales de Mileto, afirmou o famoso “conhece-te a ti mesmo”, depois gravado no templo de Delfos e, por fim, eternizado por Platão na boca de Sócrates. Uma sociedade que expressa esse dito já indica que a noção de felicidade envolta passa pelo indivíduo, já desligado ou mais independente das aspirações sociais. Como fora gravado no templo de Delfos, a própria divindade parecia indicar que a felicidade somente seria possível para alguém com certa independência, alguém dotado de julgamento.

Outro sábio da Grécia, Sólon de Atenas, poeta e legislador, também parece ter uma lição para nos dar sobre a felicidade. Heródoto é que nos narra o episódio do encontro de Sólon, o qual estudara no Egito, e Creso, rei dos lídios, povo famoso por ter inventado o dinheiro, e cujo reino se situava na atual Turquia, com capital em Sardes, cidade famoso por sua opulência. Em visita à Sardes, Sólon foi indagado pelo grande rei quem seria o homem mais bem-aventurado, olbios, quer dizer, rico, benquisto pelos deuses ou, se quisermos, feliz, do mundo. Com a pergunta, Creso esperava que Sólon, após ver todo o poder e magnificência de seu reinado e de sua corte, lhe indicasse como tal homem. Para sua surpresa, não e a resposta de Sólon, que lhe responde que somente quando uma vida termina se pode dar o veredito se foi uma vida feliz.

Anos depois, Creso se preocupava com o crescimento do império persa em suas fronteiras. Manda a Delfos um emissário, que lhe responde que, caso ele cruzasse o rio Halys, na marca entre o Império persa e seus domínios, um império cairia. Creso, animado, invade o reino persa, somente para ser derrotado fragorosamente. Ciro, imperador dos persas, decide queimá-lo vivo. Já na fogueira, Creso se lembra das palavras de Sólon somente para dar-lhe razão. O final dessa história se encontra em Heródoto.

A ideia de que o indivíduo deve buscar a felicidade é, assim, antiga. Dentre os hebreus e em Platão compete ao líder do rebanho ajudá-lo a alcançá-la, de todos os membros e de cada um. Em Aristóteles a própria razão de ser da comunidade política é a felicidade de seus membros. Mas também para o judaísmo e, assim, para o cristianismo, dado que a marca do homem é o pecado, ele deve sofrer; a vida é sofrimento. O homem é indigno da felicidade nesta vida. Disse o papa Inocêncio III: “andas pesquisando ervas e árvores; mas estas produzem flores, folhas e frutos, e tu produz lêndeas, piolhos e vermes; elas emitem de seu interior azeite, vinho e bálsamo, e você de seu corpo, escarro, urina e excrementos”. Caberá ao Renascimento recuperar a antiga dignidade do homem e, assim, dotar-lhe novamente de acesso possível à felicidade, à sua dignidade.

Com os desenvolvimentos do Estado absolutista, da estatística (ciência do Estado) e da biopolítica, além da economia capitalista e do socialismo, a busca pela felicidade volta á ordem do dia. Os filósofos malditos desembocam nos libertinos, não sem antes redescobrir os epicuristas e estoicos. Já Condillac, no século das Luzes, aponta para uma economia política sensualista, que há de desembocar o próprio utilitarismo, o qual divide as coisas entre aquelas que nos causam prazer e nas que causam desprazer.

Assim, o capitalismo, com a profusão de imagens, sons, e, hodiernamente, curtidas, reduzem a busca pela felicidade ao possuir bens materiais, exatamente o que Epicteto nos vetava enquanto via da felicidade, uma vez que não dependem de nós a aquisição e preservação dessas coisas materiais. Não se trata, pois, de felicidade, mas de mero prazer, efêmero.

Com o liberalismo, a felicidade dos membros da comunidade deixa de ser uma preocupação do Estado enquanto meta primeira, mas, sim, algo com o qual os indivíduos devem se ocupar em seus negócios privados. Para Aristóteles, o fim de toda ação é a felicidade, já que é a única coisa que vale como fim por si mesma, não como meio para outra coisa. Que diferença entre a ética antiga e a moderna, entre uma ética eudemonística e a utilitária. A própria ideia de comunidade se desfaz a cada dia, e o Estado, dominado por interesses alheios aos desta, se deixa consumir na oferta de prazeres efêmeros, em vez de possibilitar a fruição da felicidade perene. Esta não pode vir das religiões abraâmicas, para as quais o homem foi feito para sofrer.

Somente encontraremos a via da felicidade, em nossa tradições, nos caminhos das filosofias antigas, que assim a pensaram e a desejara. De resto, seremos instrumentos de interesses escusos, não fruidores, mas clientes; ou meros pecadores pagando pena. Quando nos libertamos dessas éticas do útil e do sofrimento estaremos um passo mais perto de um autêntico gozo. E mais próximos da felicidade

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