sábado, 4 de junho de 2022

O Iluminismo radical

 ISRAEL, J.I. Radical Enlightenment. Philosophy and the Making of Modernity 1650-1750. USA: Oxford University Press, 2001


Se todas as coisas fossem iguais, seria impossível a vida. Notar as diferenças, treinar os sentidos e a razão a fim de percebê-las é um traço distintivo de uma mente arguta. Não que notar as semelhanças também não o seja, mas “não entramos duas vezes no mesmo rio”, de modo que, a rigor, nada é igual a nada, nem mesmo o leitor ou o escritor dessas palavras. As coisas ocorrem no tempo e no espaço, de modo que todos somos diferentes a cada instante. Uma das coisas mais interessantes da História é justamente o lançar de luzes sobre as diferenças, sobre como os humanos de outrora pensavam, agiam, se organizam, se rebelavam. Confiar na memória, esse autêntico Judas, que nos trai por muito menos do que trinta moedas, é vão: de vidas curtas, relativamente à grandeza do universo, não poderíamos experienciar o passado senão pela mediação do presente. Assim, nos acostumamos, criamos um ethos de apreciação das coisas profundamente ancorado em nossa vivência histórica, nas forças que nos moldam.

Eu havia parado de escrever textos sobre livros aqui no blog, espécies de pequenas resenhas, já que, pelos metadados, não eram muito lidos. Escreve-se para os leitores e, se estes não gostam daquilo que a pena verte, mais vale trocar de tópico ou de meios. Mas o livro de Jonathan Israel merece uma exceção.

O tema é interessante: o Iluminismo radical. Lemos em clássicos como Cassirer, Peter Gay ou, no caso dos autores da terrinha, de Salinas Fortes, uma visão do Iluminismo focada em seus grandes nomes: Voltaire, Rousseau, Diderot, D’Alembert, Montesquieu. Quando muito, chega-se a Kant, cita-se Locke de passagem e um ou outro autor. Referências ao Despotismo Esclarecido também são recorrentes. O mérito de Israel é lançar luzes sobre um setor do movimento altamente importante e desconhecido do grande público: os iluministas radicais, ancorados, sobremaneira, em Espinosa, o filósofo judeu renegado que criou um dos grandes sistemas de pensamento da filosofia. Do ponto de vista técnico, o livro é impecável, assim como é grande: quase 900 páginas, onde nem mesmo Portugal é esquecido. Sim, Verney é citado em algumas passagens lembrando-nos dos atrasos de Portugal, e da colônia, em relação aos debates do restante da Europa. Utilização de fontes originais e uma vasta gama de comentadores tornam o livro um trabalho primoroso de crítica e de filosofia, que cobre toda a Europa (ou quase toda) no período de 1650-1750, alargando um pouco o Século das Luzes, mas com uma precisão invejável

Quando lemos Cassirer estamos lendo, nos diz Israel, a história do Iluminismo moderado, do Iluminismo courtois, que encontrava espaço na anturragem de certos reis e rainhas. Para Cassirer, por exemplo, não seria La Mettrie, um radical materialista, do tipo que Marx chamou de vulgar; não seria D’Holbach ou mesmo Diderot os píncaros do movimento, mas sim, um moderado D’Alembert, o qual, diante das primeiras dificuldades com as autoridades na publicação da Enciclopédia, abandonou Diderot, e terminou seus dias acolhido na Academia Francesa, posto de prestígio. Não, nos diz Cassirer, o Iluminismo foi um movimento moderado, pautado na luta não contra a religião e seus delírios, não contra o Absolutismo e seus arbítrios, mas contra as fraquezas no uso da razão, por exemplo. O Iluminismo seria um movimento reformista, em suma, não revolucionário.

Para Israel há elefantes na sala. Ele descortina o mundo dos autores proibidos, daqueles dos quais não se editam mais as obras, dos proscritos, dos malditos, de quem nunca ouvimos falar. Segundo ele, quatro correntes teriam disputado o movimento: os Newtoniamos-Lockeanos, os partidários do sistema Leibniz-Wollf, os cartesianos-malebranchianos e, por fim , os espinosistas. Diz o autor que é uma crença comum de que Newton e Locke seriam as fontes primeiras do Século das Luzes, impulsionados pela anglomania que varreu os meios cultos da Europa em meados do XVIII. Mas, baseado em extensa documentação, ele nos mostra como foram as teses espinosistas que lastrearam o Iluminismo.

Em vida, Espinosa foi bastante perseguido, tendo seus textos sido censurados e ele mesmo expulso da Sinagoga, este último fato muito conhecido. Mas a anturragem espinosista, aqueles que compartilhavam suas preocupações filosóficas, o são muito menos. Espinosa não era ateu, mas negava postulados fundamentais das religiões abraâmicas, como os milagres. Opunha-se também a dualidade corpo-espírito e outras mirabolices do gênero, que atentam contra o bom uso da razão. Por estes motivos seus pensamentos foram perseguidos. Vivia-se tempos de absolutismo, censura e privilégios; não à toa, um filósofo que defendeu a democracia, ainda que limitada, e a noção de que deus e natureza são o mesmo fosse tão escanteado e perseguido. Não fossem seus amigos, discípulos e admiradores, a obra de Espinosa, queimada publicamente, teria sido toda destruída.

Segundo Israel, não foram os ingleses a maior inspiração do Iluminismo, mas os holandeses. Os Países Baixos eram o centro da vida intelectual clandestina da Europa, para onde convergiam todos os philosophes, todos os livre-pensadores que buscam ares frescos para filosofar, debater e publicar. De lá afluíam livros que inundavam o continente com materialismo, em um momento de extrema-crendice da população. Lembremo-nos: o feudalismo, com toda gama de privilégios que o rondam, ainda vivia, e era em uma Europa repressiva, onde o tráfico de seres humanos era feito à luz do dia, que estes filósofos se posicionavam. No centro das polêmicas, a religião. O combate à superstição, à queima de pessoas na fogueira, ao rei ungido por deus, à censura, ao despotismo estava na ordem do dia.

Israel acompanha o período mais tenso dessa dura luta que nos permitiu e que gerou coisas que hoje, no Ocidente expandido, são tomados como pilares. Inclusive acompanha as execuções, as prisões, as fugas, as proibições, enfim, o destino trágico de campeões das causas hoje novamente at stake. Ler o livro de Israel, disponível no libgen somente pode nos fazer valorizar as liberdades que hoje usufruíamos e dar o gosto de um mundo onde essas liberdades valham para todas e todos e onde novas liberdades, que hoje sonhamos, como anteriormente sonharam os iluministas radicais, sejam realidade.

Curiosamente, ele termina o livro com Rousseau, assim como Salinas Fortes termina o seu. Coincidência? Ou será que o idealismo de Rousseau e sua defesa da igualdade, com as consequências na Revolução francesa, não são um chamado à ação e uma lembrança de que a filosofia ajuda a mudar o mundo, mas o combate essencial se dá fora dos livros?

O livro é grande, mas vale a pena cada página. Informativo, rico, documentado, enfim, uma leitura incontornável nos dias de hoje, especialmente quando a herança do Iluminismo está no centro de todas as polêmicas, com seus inimigos a frente do Planalto. Compreender melhor o Iluminismo em suas cepas que, afinal de contas, o impulsionaram correndo risco de vida, já que era contra os espinosistas que se voltaram as garras mais duras da repressão, constitui uma das tarefas de qualquer pessoa honesta, que valorize efetivamente a liberdade, a igualdade e a fraternidade. A libertas philosophandi custou vidas. Saibamos valorizá-la e expandi-la. Saibamos ver as diferenças que guardamos com aquele período e perceber que expandir as liberdades, socialmente referenciadas, é pauta do dia. Lutar contra o misticismo, especialmente contra o novo misticismo, que quer nos manter nas trevas de um mundo caduco, é urgente. Leiamos Israel, aprendamos a história daquilo que gerou a modernidade, mas com os olhos em nosso presente e no autêntico herdeiro do Iluminismo: o socialismo.

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