O fato de nos acostumarmos com aquilo que nos cerca ou, em outras palavras, de nos adaptarmos ao meio, parece ser uma constante na vida humana e, até mesmo e sobretudo, das demais espécies. Até mesmo as coisas inanimadas se adaptam, como bem mostrou Peirce (SANTAELLA, 2019) ao escrever sobre os cristais e que as estalactites e estalagmites comprovam. Afinal, até mesmo sobre as superfícies não viventes o pó se acumula, as horas deitam seu peso, e o fio dos dias encobre com uma massa de detritos o substrato ali jazente. Essa, talvez, seja uma das descobertas mais potentes da história das ciências, conhecida sobre o famoso nome de adaptação das espécies e descrita por vários autores, o mais famoso dos quais foi Charles Darwin, que causou verdadeiro furor à época, e continua reverberando até os dias atuais, noviça que é sua teoria de apenas pouco mais de 150 anos.
Como somos seres de vidas curtas, em comparação com os números do universo, que hoje conhecemos graças ao espetacular avanço nas ciências que a espécie presenciou nos últimos séculos, pouco nos recordamos de como era o passado, de como a sociedade se organizava, como tratava seus membros e, in extremis, como o próprio universo funcionava. Cabe à legião de profissionais, especialmente treinados em nos fazer recordar ou descobrir como o passado se dava, o papel de lançar lume sobre o pretérito, permitindo que ele não morra ou caia no olvido perpétuo que a própria estrutura do tempo parece atirar sobre o mundo.
Como as areias das horas são vorazes, deglutindo e digerindo tudo, o passado fica aterrado no sono, onde justos e injustos, mortos e desprovidos de traços de vida, se encontram. A História é, destarte, disciplina científica muito especial, junto com outras ciências auxiliares suas, como a arqueologia, a economia e tantas outras, no fazer aparecer a organização do mundo tal qual se dava nos intermináveis segundos que nos separam de nossos ancestrais. E não só. Quando estudantes do ensino médio, lembro-me de um jogo que um professor de educação física, em um dia de chuvas intensas, propôs à classe, um jogo no qual nos eram dirigidas perguntas e que um dos times, de garotos ou garotas, deveria responder. Fui escolhido, com orgulho juvenil, para responder uma pergunta, que era: “qual a ciência que estuda o passado, o presente e até mesmo o futuro?”. Sem pestanejar respondi: “ a História”. Estava certo. A História permite-nos entender não somente como fomos, mas como somos e entrever como seremos.
Que as coisas são históricas, ou seja, que o curso do tempo nos afeta, esta é uma visão que, com essa clareza é relativamente recente, embora a História, cujo pai fundador é Heródoto (1920), ao menos no Ocidente, já tivesse noções sobre o tema. Mas, na escala do tempo, em sociedades sem escrita, isso é novidade. A História nos salva do véu do sono prolongado, nos desperta para que descubramos o que nos afasta e o que nos aproxima daqueles que nos precederam, nos marca no tempo, assinalando um espaço de vida para que possamos, assim, ser mais autênticos com nós mesmo e, desta feita, nos projetar no mundo com maior certeza. Quem achata a história, quem desconsidera a História ou quem tenta se apropriar dela para fins escusos, somente pode ter interesses ocultos, que não podem se mostrar claramente na luz do dia, quem dirá dos debates.
Esquecemos por saúde, diz Nietzsche e também Freud. Imagine a tortura que seria lembrarmos de tudo que nos passou, imagine se cada menor fato, cada experiência viesse à mente o tempo todo, se fossemos incapazes de lançar às trevas o que quer que fosse: o que almoçamos no dia 13 de fevereiro de 1991, como fomos humilhados outro dia, o olhar desconfortável que tal pessoa nos lançou, etc. Certamente, uma forma de tortura., que dá asas à imaginação de Borges.
Mas, também esquecemos por doença. As distintas formas de demência, como Alzheimer, estão aí para provar que, se esquecer é necessário para que haja vida inteligente, também pode ser mórbido esquecer demais e, sobretudo, esquecer coisas que deveríamos nos lembrar. O sofrimento que isto acarreta a nós mesmos e, sobretudo, aos que nos cercam, não cabem nas páginas deste texto. Basta que se leia um pouco sobre o tema para que se nos afiguremos as agruras que o excesso de esquecimento causa.
Desde o estalar da modernidade, esta encontrou seus críticos, mas, sobretudo nos últimos decênios, esta crítica se avolumou e, no Brasil, têm causado problemas. Um ensino deficiente, somado a certa preguiça mental, pessoas com intenções inconfessáveis, mau-caratismo, ignorância pura e simples e falta de amor à verdade, fizeram-se porta-vozes de autores e ideias de baixa extração e, sobretudo, equivocadas, até conseguir, por variadas manobras, adentrar nos lares das famílias brasileiras e se tornarem, até mesmo, depositários de confiança e respeito por parte daqueles que essa mesma visão de mundo pretende danar. Sem conseguir atingir o patamar de ciência para serem considerados, pelos pares, científicos, resolveram encontrar um atalho e adentrar a Academia, pela via torta do desprezo que a comunidade destina aos que não se adéquam às regras, muito bem estabelecidas, e que dão frutos novos todos os dias, da pesquisa séria, pública e verificável por qualquer pessoa treinada no manejo do instrumental.
Assim é que tornou-se uma espécie de modismo maligno questionar a ciência, a modernidade e todos os incontáveis benefícios civilizacionais alcançados nos últimos séculos, por vezes a custo de vidas humanas preciosas, contra os próceres e sequazes de uma sociedade violenta, opressora e sustentada sobre a base de privilégios insustentáveis, sofrimentos múltiplos e crenças equivocadas. O parto da modernidade foi doloroso e traumatizante. Talvez até mesmo para nos proteger tenhamos esquecido como era a sociedade que abandonamos. Mas, como um mundo defunto ameaça se levantar, talvez seja mister relembrar alguns tormentos que passamos até conseguirmos chegar aonde chegamos — uma sociedade muito longe das ideias, que o pensamento concebe, mas muito melhor, do ponto de vista das comodidades e possibilidades de realização pessoal e coletiva que as antigas sociedades já desvanecidas e engolidas pelo ritmo dos dias. O cadáver já está no caixão; quer levantar, tal qual um zumbi da ficção, para se apoderar do cérebro dos vivos. Cabe-nos enterrar de vez o morto e, assim, nos preocupar não tanto com fantasmas, mas com as novas gerações.
Pestilenta, dolorosa, sem liberdades, brutal, eivada de sofrimentos, injustiças e temores infantis, onde o único descanso pode ser a terra fria que tudo engole, de onde viemos e para onde voltaremos, como dizia Xenófanes (.KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 2005) Esta é descrição breve mas acurada das sociedades do passado. Mas havia consolo espiritual: esperava-se que, em um além-mundo, os malfeitos fossem aplacados, e a justiça universal, que preside a tudo, desde os tempos de Homero, fizesse valer sua pesada mão, destinando a cada qual o seu quinhão de gozo e castigo. Em uma sociedade onde nem todos são iguais juridicamente, onde alguns guardam regalias de nascença enquanto outros, também por nascença, têm seu destino selado, parece inaceitável aos olhos contemporâneos. E é assim: afinal, os mesmos movimentos da sociedade que deram cabo do Antigo regime, forjaram a modernidade. Estamos falando, claro, da revolução econômica que representou a industrialização, da revolução política que foi a Francesa e da Revolução intelectual que foi o Iluminismo.
Os três processos estão intimamente interligados. Desde a Renascença, onde, após um período onde as ciências estavam mais ocupadas em debater a alma dos anjos, que diminuir o sofrimento das carnes terrestres, por exemplo, com Tomás de Aquino, houve um movimento de retorno às fontes do saber da Antiguidade, que se centravam na reforma política da sociedade e na busca pela felicidade terrena. Os autores gregos e latinos foram recuperados e o estado de coisas medieval, com a teologia reinando, em uma verdadeira hierarquia das ciências, começou a ser questionado. Cassirer (1927) aponta que é no catolicíssimo Nicolau de Cusa, hoje muito injustamente olvidado, que encontramos o mais bem acabado exemplo de pensador renascentista. Cusa (2017) passou a admitir certas ideias que se tornaram lugar-comum séculos depois; por exemplo, o papel das matemáticas no saber científico ou o fato da indeterminação do universo incomensurável. Para ele, havia, ao contrário do admitido pela teologia medieval, uma douta ignorância, título de seu livro mais famoso, que era a chave do saber, uma lição socrática, retomada no período. Ou seja, a teologia não conhece tudo, se até mesmo os doutos são ignorantes; há necessidade de conhecer e espaço para tanto.
Nos séculos seguintes à Cusa, a mais fina-flor da intelectualidade ocidental, impulsionada por movimentos da sociedade fortíssimos, como o início da colonização das Américas, com o contato radical com o Outro que o processo comportou, a reforma protestante, e seu chamado à prevalência da consciência individual, em um mundo onde até então o indivíduo praticamente não existia, como defende Delumeau (1984) e Sevcenko (1994); o renascimento do comércio; enfim, o écroulement do mundo feudal em benefício das bases do mundo presente, base essas assentadas pela revolução científica dos séculos XVI e XVII, com Copérnico, Galileu, Descartes e Newton, dentre muitos outros, e que, com o Iluminismo, chega ao seu auge, estabelecendo de vez o que conhecemos como modernidade (ROSSI, 1997).
O mundo feudal era um mundo fechado, como diz Koyré (1957). Centrado sobre si, com a terra considerada como centro de um universo esférico, ponto focal do qual os demais astros dependiam, a formulação do saber se dava em universidades fortemente eclesiásticas, avessas à experimentação, e dependia do beneplácito da Igreja, movimento que a Contrarreforma acentuou. Quem contradissesse os dogmas religiosos corria sérios riscos. Por isso Copérnico, que mostrou, através das bases mesmas da cosmologia ptolomaica, que a Terra não era o centro do que viria a ser chamado de sistema solar, optou por publicação póstuma e, assim, se livrou dos destinos de Giordano Bruno, Campanella e Galileu — fogueira, prisão, e humilhação —, que ousaram questionar a autoridade eclesiástica (MONDOLFO, 1980).
Mas não só no campo das ideias tratava-se de um mundo fechado. O comércio era parco, ocorrendo sobretudo em certas feiras, algumas famosas; a mobilidade social, praticamente nula, reservada aos raros cavaleiros que conseguiam tornar-se reis, como bem defende Duby (2012) e a um ou outro camponês que enriquecia. Os tributos, pesados. e constantes. As mulheres, sem nenhum peso social. Divergências sociais caladas com ferro e fogo. Doenças grassavam. Higiene, inexistente. A produção, escassa. As comodidades da vida caras e raras. Uma aristocracia de sangue dominava a política, e qualquer traço de democracia era nulo.
Em um contexto de vida tão estreito, tão avesso às expressões de individualidade, não é de se admirar que os homens se sentissem realizados ao embarcar em aventuras, como as grandes navegações. Fugir de um mundo que só nos prometia realização no além-túmulo parecia uma boa pedida.
Com o movimento de ideias e realizações técnicas que marca o período, esse mundo foi posto em xeque. O universo se expandiu com o aperfeiçoamento do telescópio por Galileu. A autoridade eclesiástica, questionada pelos novos pensamentos que vinham romper as espessas nuvens de obscurantismo, assim como o sol se espraia após a tempestade furiosa. O desenvolvimento do comércio alargava as fronteiras do conhecido e colocava sob suspeita afirmações dogmáticas, que só possuem valor religioso. A tarefa de demolir o mundo mental medieval caiu sob as costas de um conjunto de autores que ficaram conhecidos como iluministas. Voltaire, com suas sátiras, Diderot e D’Alembert, com sua Enciclopédia, La Méttrie e D’Holbach com o materialismo filosófico, todos eles contribuíram no sentido de forjar o mundo contemporâneo e nos dotar de imensos progressos políticos e sociais, aos quais se soma os avanços científicos proporcionados pelas grandes mentes de Galileu e Newton (GAY, 1961, 1969; ISRAEL, 2001).
A revolução industrial, com a aplicação da técnica e do saber aos processos de produção permitiu uma imensa manufatura de produtos em escala nunca antes vista, rompendo de vez um universo de penúrias e de fome constante que era a marca dos séculos pregressos, facilitando a vida e livrando, especialmente as mulheres, de tarefas inglórias. Chegou-se ao ponto de produzir o supérfluo, de crises de superprodução ameaçarem mais que a falta crônica de bens que vivíamos (LUIZ, 2021).
Ao mesmo tempo, os avanços sociais, que os séculos vêm colhendo, só dão mostras da força das ideias do século decisivo na história da humanidade. Mulheres enfim reconhecidas como sujeitos de direito, com participação política forte e direitos até então negados. Vítimas ainda dos horrores do patriarcado, mas em situação muito mais vantajosa que em boa parte da história do mundo. Negros, vítimas da infâmia da escravidão, libertos de suas correntes e com a possibilidade de construir um futuro melhor que os grilhões que os atavam ao trabalho físico extenuante; herdamos, desse passado sombrio, o desafio da luta contra o racismo, mas, cada vez mais, ela se torna pauta pública e vem ganhando adeptos de maneira flagrante, assim como os direitos indígenas, reconhecidos, atualmente, pelas constituições de várias nações, direitos que buscam se expressar em um contexto onde massacres do passado teimam em reviver. Homoafetivos, antes tratados como doentes, hoje buscam os meios de expressar sua cidadania.
Os avanços em medicina, que não cansam de se acentuar no último período, dão mostras do progresso atingido. Uma vida brutal, onde o menor corte podia custar a vida, ficou no passado para boa parte da civilização, que hoje se beneficia de transplantes de órgãos, tratamentos para prolongamento da vida e medidas sanitárias que minimizaram os efeitos de pandemias e endemias.
A liberdade de imprensa e de opinião, de culto, enfim, se tornou uma realidade em boa parte do mundo, juntamente com a expressão da vontade popular em eleições crescentemente limpas, com a diminuição de golpes de Estado e de ditaduras e perseguições.
Embora essas muitas conquistas civilizacionais, o Iluminismo têm inimigos ferozes, justamente aqueles que defendem valores que perderam razão de ser na modernidade, valores como união entre Estado e Igreja, prevalência da tradição em detrimento da experiência e supremacia da teologia contra a ciência. Enfim, defensores do misticismo que, com muito custo, conseguimos nos livrar. O misticismo contemporâneo, que pensa que a terra é plana, cigarros fazem bem à saúde e homossexuais são uma espécie de maçonaria voltada à destruição das crenças religiosas, se propaga sobretudo através das assim chamadas, em um anglicismo que poderíamos evitar, fake news ou notícias falsas.
Notícias falsas não designam somente uma mentira, mas uma pós-verdade. Por esse termo se indica uma informação destinada a convencer menos através da razão do que através do sentimento que uma pretensa notícia pode suscitar. Assim, o que uma parcela da população, propensa a posturas geralmente identificadas com a extrema-direita, gostaria que acontecesse se vê realizada em notícias completamente inverídicas, mas que materializam os desejos dos sujeitos. Trata-se de manipulação social, geralmente acompanhada de fortes teorias conspiratórias, enxergando o mundo moderno como uma conspiração de setores progressistas. Ao mesmo tempo, a difusão tão rápida de fake news, em verdadeiros centros de desinformação, financiados por pessoas muito poderosas e com interesses escusos, não seria possível sem os avanços técnicos que essa mesma modernidade atacada de maneira vil, possibilitou. Assim, os defensores de um passado idealizado cometem uma contradição performativa insolúvel: se valem dos meios mais modernos para atacar a modernidade.
Olavo de Carvalho (1998), o principal representante intelectual das trevas nacionais contemporâneas, calcado em notícias falsas, meias interpretações e arremedos de leitura, escolhe justamente Nicolau de Cusa como um dos alvos principais para seus ataques, juntamente com Epicuro, Maquiavel e toda um séquito de grandes pensadores, supostamente refutados por argumentos de baixo calão, pouca inventividade e ideias reacionárias. Não à toa: Cusa é um dos déclencheurs do Renascimento, conforme dito. Já em Epicuro (1972) encontramos um chamado contra o excessivo medo que se tinha dos deuses e de qualquer fenômeno que não se encaixasse nos rígidos limites da vida cotidiana, como cometas ou outros fenômenos celestes. Epicuro faz um chamado à fruição da vida terrena e que deixemos de pensar em uma vida futura pós-tumba, para nos atermos à vida terrestre, visto que os deuses, do alto de sua magnanimidade, não estão interessados nos afazeres humanos. Tratava-se da luta contra a superstição, luta essa ainda muito atual, especialmente se considerarmos a legião de coaches, gurus e astrólogos — como o próprio Olavo, uma mistura indigesta dos três — que grassam no mundo moderno, malgrado ideias parcas de conteúdo. No lugar da superstição Epicuro oferecia uma canônica e o ideal de pertencer a uma comunidade de pesquisadores. Maquiavel (2012), a seu turno, coloca o interesse público, materializado no Estado, como interesse superior do governante, ajudando a separar definitivamente Igreja e Estado.
Olavo elaborou uma espécie de filosofia da História (com H maiúsculo) onde, nos diz, esta se resolve no conflito entre Igreja Católica e poder civil. Para ele, teríamos saído de um período de adoração de deuses para outro, onde o Estado se coloca acima das religiões, preterindo a verdade revelada por verdades de fato. Tudo isso orquestrado pela maçonaria e Illuminattis, que operam nas sombras de todos os governos. Segundo ele, ou se é da maçonaria ou se está contra ela. Os maçons, que, desde o abade Barruel, que lançou a hipótese de forma mais acabada (MCMAHON, 2001), teriam sido os responsáveis pela Revolução francesa, seriam os verdadeiros mestres de todos os títeres que somos nós, à exceção de Guénon, Schuon, Evola, Scruton e uma porção de outros escritores de extrema-direita. Para Olavo, a luta contra a Maçonaria se afigura como central a fim de preservarmos o Ocidente e o mundo do terrível materialismo abortista, gayzista feminista. As conquistas dos últimos séculos, que já tratamos acima, não valem de nada se esquecerrmos as verdades fundamentais por trás de todas as religiões.
Sedgwick (2004) traça um retrato agudo, preciso e bem informado das fontes de Olavo,como Guénon e Evola. Este último era considerado radical demais mesmo pelos fascistas. Já Guenon acreditava que somente uma elite bem formada em suas tradições perenialistas (corrente que defende a existência de uma verdade fundamental por trás de todas as religiões) poderia evitar o colapso iminente do Ocidente nas mãos de civilizações tradicionais. O tradicionalismo, ao qual se filia Olavo, vê a história sob o ponto de vista da decadência, tema muito velho na história do mundo, e acredita que somente a retomada da verdadeira ciência, a metafísica, pode salvar os homens do écroulement certo. Diz Guénon que o maior mal da contemporaneidade pode ser resumido em seu individualismo, na livre interpretação das Escrituras e no desprezo das tradições, sobremaneira orais, que nos transmitiriam verdade imemoriais (GUÉNON, 2013).
A vida de Guénon, cercado de ocultistas e de ferozes disputas de poder em torno de sociedades secretas, nos indica bem uma de suas principais conclusões: a necessidade de se constituir um escol que dirija a humanidade ou, pelo menos, o Ocidente, no sentido de uma renovação espiritual (SEDGWICK, 2004). Na modernidade, além dos países autocráticos, a única teoria política que defendia uma elite como governante foi o fascismo. Não à toa as biografias de Guénon, Evola e Olavo se cruzam: são pensadores extremistas, de uma extrema-direita que não se conforma com direitos das mulheres, fim da servidão e da escravidão e, mais fundamentalmente, a laicização da sociedade, permitindo que cada qual escolha sua fé como lhe convier e pregando a convivência harmoniosa de todos os credos em sociedades harmônicas, inclusive de ateus, onde ninguém tenha de ser perseguido por suas crenças.
Olavo, destarte, se filia ao que de pior a modernidade produziu do ponto de vista político: o fascismo. Não à toa, foi o mesmo movimento social que produziu Bolsonaro e Olavo. A antipolítica que os orienta, no sentido de negar o convívio de pensamentos diversos, e os constantes ataques às instituições democráticas, fazendo apelo não ao povo, enquanto poder constituinte, do qual emana a soberania e, como tal, pode alterá-la, mas às elites, especialmente militares e financeiras, a fim de que adentre na aventura de um golpe de Estado e faça “o trabalho que a Ditadura não fez, matando trinta mil”, dão mostras das verdadeiras convicções de Olavo.
É por isso que as ciências e as artes são tão atacadas por Olavo e seus asseclas. Não necessariamente porque são contra as benesses técnicas (ao contrário, defendem a indústria do petróleo) ou porque a maioria dos artistas e cientistas são pessoas progressistas; mas porque Olavo é antimoderno. Assim, se opõem às vacinas e, provavelmente, morreu por suas crenças, já que não se vacinou contra uma doença que matou quase setecentos mil brasileiros e que atingiu a todos nós, mas da qual felizmente já profilaxia. Da mesma forma, consideram que o aquecimento global não existe, ainda que não tenham provas. Cortam verbas da educação e da ciência em um momento em que estas se constituem o verdadeiro passaporte para o futuro de todas as sociedades. Perseguem outras crenças que não as calcadas no mais absurdo misticismo, crenças que prometem milagres e falam a língua dos anjos, ainda que não haja provas palpáveis, claras e incontestáveis de nada disso.
Ao contrário de fatos, sobre os quais possamos racionar, explicar, julgar, Olavo propõe que creiamos em mistérios de uma suposta origem comum de todas as religiões, tomando como parâmetro a religião hindu. Não à toa, já que, para ele, ainda vivemos em uma sociedade de castas e seria inútil negá-lo. A defesa que Olavo faz das castas é, realmente, inacreditável, peça de ficção política, digna do Ignobel, como aliás, quase todos os seus livros.
Mas Olavo não conseguiu alcançar a fama que alcançou à toa. Nenhuma sociedade produz monstros senão tiver olhado para o abismo. O precipício brasileiro é, precisamente, sua história. Diz-nos o senhor Freud que o conflito não resolvido não desaparece simplesmente, mas volta como sintoma, como neurose. A política brasileira está cheia de neuroses, de traumatismos e de descontinuidades, dado, exatamente, o fato de que não resolveu seus conflitos, embora possua todas as condições de fazê-lo. O mais profundo conflito de nossa história, verdadeiro fundador do Estado brasileiro, este grande capitão do mato, é o conflito racial. Surgido da luta contra indígenas, no objetivo de massacrá-los, catequizá-los ou torná-los escravos, o Estado brasileiro seguiu sua sanha organizando a escravidão de negros. Se a escravidão acabou legalmente, se a democracia chegou do ponto de vista eleitoral, o mesmo não se pode dizer do ponto de vista político e social. As periferias, lotadas de pessoas da pele escura; os piores empregos, destinados aos moradores dessas periferias; os cargos políticos, fortemente dependentes de apadrinhamentos e poder econômico; enfim, os cargos de chefia e intelectuais, cercados de uma aura racista que impede que negros e negras os alcancem. Para completar, um período de trevas, onde o país foi governado autocraticamente, se outorgando a prerrogativa de matar e torturar a fim de tocar adiante uma modernização conservadora, sem mexer nas mazelas do país.
Tudo isso é traumático para uma sociedade e, sem tratamento, volta como sintoma. O sintoma é a legião de viúvas da ditadura, o “bandido bom é bandido morto”, o “direito dos manos”, e todo o corolário que essa situação gera. Olavo é o teórico dessa sociedade, seu arauto e defensor, e via no governo obscurantista de Bolsonaro sua realização.
A terapêutica dessa sociedade é simples: democracia. Mais democracia. E não só jurídica, como política e social. Democratizar a sociedade brasileira, inclusive e, sobretudo, as esferas sociais, raciais e de gênero. Democratizar as polícias e as Forças Armadas, que operam na lógica de extermínio do inimigo interno: o próprio povo, sobretudo o negro. Tudo isso não são devaneios de uma mente indignada tanto quanto insone; mas a colocação em prática daquilo que está escrito na Constituição Federal.
A cura para o Brasil passa, como não poderia deixar de passar, pelo seu povo. Somente com a inclusão do povo, com todas suas matizes e credos, em um jogo limpo, sem fake news ou apelo ao misticsmo contemporâneo. Passa por acertar contas com seu passado. Caso venha da esquerda ou da direita do espectro político, tanto faz. O importante é passar a limpo um passado de violência, para que construamos um futuro digno desse nome.
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