segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Empédocles de Agrigento

 

É fato que, quanto mais se estuda, mais cônscio dos próprios limites se queda. Escrevendo um texto, quer-se fazer afirmações peremptórias, cravar uma proposição certa; mas as dúvidas advém e deitam por terra, de forma violenta, nossas pequenas certezas.


No último período tenho me dedicado a escrever um livro sobre Olavo enquanto guru do bolsonarismo. A pesquisa avança bem, mas a dúvidas se amontoam, expondo as lacunas de formação, especialmente as minhas, bom filho da escola pública neoliberal. Ademais, Olavo se imiscui nas ciências naturais e eu, herdeiro de uma tradição humanista, bacharelesca, por assim dizer, que tanto grassou na terra do sabiás, me vejo em maus lençóis. Escrever qualquer livro implica pesquisa e, assim, pesquisando, surgem mais dúvida, que só podem ser sanadas com mais pesquisa, a qual nos conduzirá a mais dúvidas ad infinitum, ou ao finito de nossas carnes e possibilidades. Por isso a ciência moderna fez bem em especializar, já que, em áreas diminutas, podemos ter mais certezas, ao contrário de um sábio como Aristóteles, que pesquisou em praticamente todas as ramas e está errado em quase tudo que disse. Por isso o riso, que não posso deixar de proferir, ao ver Hegel formular uma filosofia do todo e chamar isso de ciência. Quando muito, teologia, que, de ciência só tem o nome.


Interesso-me particularmente pelos pré-socráticos. Não à moda de Heidegger, que cria neles um encaminhamento ontológico, depois pervertido pelos socráticos e pós-socráticos. Isto é de um nível de besteira sem fim. Gosto dos pré-socráticos porque, lendo-os com carinho, se encontram as reflexões de praticamente todos os filósofos posteriores. Tudo está neles, tudo já pensaram, em tudo tiveram intuições fantásticas, gozadores do ócio que eram, em um tempo onde florescia a imaginação e a reflexão, tão contrário ao mundo moderno onde estamos sempre ocupados com nossas vidas capitalistas, a qual convida muito pouco ao pensamento e mais ao deleite.


Dentre os pré-socráticos, dois sempre me chamaram a atenção, e meu pensamento se filia diretamente a eles: Anaximandro e Heráclito, os jônicos do conflito. Anaximandro forja um pensamento que busca traduzir em termos cosmológicos ideias provenientes dos tribunais. Seu vocabulário é todo próprio ao ofício de juízes e advogados, suas metáforas, suas ideias: tudo retirado das práticas judiciárias gregas. Para Anaximandro o princípio do kosmos seria o apeiron, do qual tudo se gerou e para o qual tudo tornará, em um ciclo. Apeiron é um termo de difícil tradução: indeterminado, infinito, ilimitado etc. Nele entram as raízes peras, limite, mas que podemos aproximar de peiria, experiência; à elas se junta o alfa privativo. O apeiron seria aquilo tanto sem limites, quanto do qual não podemos ter experiência. É lógico: o infinito, se for divido, segue infinito; nunca podemos experienciá-lo. Se contar até dez sextilhões, podemos acrescentar dez sextilhões e um, e dois, e três...Sempre há espaço para mais um. Desse infinito indeterminado ilimitado, o universo se gerou e nele impera a luta entre os contrários. Nietzsche vê em Anaximandro a expressão trágica de um espírito que antropormofiza o kosmos, transmutando pare este os conflitos terrenos. O mais certo é que Anaximandro tinha um discurso de múltiplos registros, inclusive físico e utilizou o vocabulário à mão para expressar seus pensamentos.


Outro grego que também pensa o cosmos em termos de conflito é Heráclito. Mas em Heráclito esse conflito é elevado à categoria de supra divindidade, que determina a própria existência das divindades. Ele se refere à guerra como pater, pai, título normalmente reservado a Zeus. Com ele o conflito é cósmico, e foi assim que Kirk se referiu a seus fragmentos.


Nisso tudo eu me repito. Quem acompanha meus textos está careca de saber esses argumentos. Mas há um outro pre-socrático, não jônico, mas siciliano, que também opera com ideias de conflito, o qual tem me chamado a atenção no último período. Trata-se de Empédocles de Agrigento, menos famoso que Heráclito (ou Parmênides), mas cujas teorias reinaram no Ocidente por milênios. Empédocles foi responsável por introduzir a ideias de que a realidade é composta de 4 elementos, ar, água, terra e fogo, que Aristóteles adota e que, através da pena do Estagirita, ganha ampla repercussão. Empédocles é também famoso no anedotário filosófico já que, segundo a lenda, teria se atirado no vulcão Etna; maneira interessante de acabar com a própria vida e, assim, começar uma lenda.


Mas é outra ideia de Empédocles que mais me atrai. Para ele, há duas forças fundamentais na realidade, o Neikos e a Phile. Neikos significa disputa, querela, ódio, contrariedade. Já Phile é o amor, mas também está na raíz de beijo e de amigo, bem como da palavra filósofo. As coisas se uniriam pela phile e se separariam pelo neikos, em um conflito eterno. É assim que ele explica como as coisas são coesas e dessemelhantes, como se atraem e se repelem, como a água apaga o fogo e o fogo transforma a água em ar.


Empédocles representa, em um aspecto, uma regressão em relação aos outros pré-socráticos, já que ele escreve em versos, não em prosa. É um Filósofo poeta, como também Xenófanes e, até mesmo, Heráclito, se considerarmos que seus apotegmas podem ser aproximados da poesia gnômica.


Por que Empedócles, em um pensamento um tanto quanto místico, próximo à assim dita magia que será praticada no Ocidente por séculoS, interessa a mim, materialista e ateu? Veja-se: em um texto muito famoso, É preciso defender a sociedade, Foucault introduz a ideias de que a origem do poder político é a guerra, invertendo o aforismo de Clausewitz. Não mais explica a guerra pela paz, mas a paz pela guerra. Por baixo da paz civil, os efeitos e as forças em luta na guerra seguem atuando em uma disputa que ha de se perpetuar enquanto houver sociedade humana. Pode parecer idêntico à ideia de luta de classes, mas as diferenças são abundantes. Para os marxistas, a luta de classes pode encontrar termo quando o proletariado, classe universal, botar fim aos conflitos. Já Foucault parece acreditar que o poder é coextensivo à sociedade, de forma que enquanto houver sociedade, haverá poder, logo disputa talvez de outra sorte, mas sempre disputas. Podemos imaginar um futuro onde, extintas as lutas de classes, lutemos contra outras espécies inteligentes, contra máquinas, etc. Foucault parece ser mais realista que os marxistas.


Foucault escreveu muito pouco sobre seus posicionamentos relativos ao conteúdo dos posicionamentos das ciências naturais. Claro, ele analisou, por exemplo, a biologia e a medicina, bem como a psiquiatria. Mas ele não expressou diretamente o que ele pensava, somente descreveu o que outros pensavam e suas consequências e alterações. Tampouco escreveu, diretamente, uma ontologia m sentido forte. Sustentamos, em artigo já publicado, que, por influência de Wittgenstein do Tractatus, Foucault se abstém de tratar daquilo que Wittgenstein chamava de “místico” e se considerava um “positivista feliz”.

O que aconteceria se cosmologizarmos esse pensamento de Foucault, em um recuo heraclitiano e buscarmos extrair dele uma ontologia bélica? Já publicamos algo a respeito. Seria Foucault um heraclitiano malgre lui? Ou será que, ao mero paradigma belicoso de guerra como decifrador das relações sociais, devemos acrescentar modelo de Empédocles e, além da guerra, pensar também a paz, e o binômio guerra-paz, movimento-quietude, a esse esquema? Questões a serem resolvidas no próximo período

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