Paul Veyne, historiador recém falecido, escreveu linhas duras contra a sociologia. Uma de suas frases mais marcantes, cito de cabeça, é que a sociologia nada mais é senão história do presente, como que não possuindo substância para se firmar por si própria. Aos sociólogos restaria o trabalho de fornecer ao historiador seu maior bem — o documento, pintando um quadro sincrônico que, depois, permitiria a reconstituição diacrônica de uma formação social em dado período.
Que trabalho hercúleo não tem os sociólogos de hoje para fornecer as pistas de decifração do presente aos historiadores do futuro. Isto porque chegamos em uma encruzilhada civilizacional. O que está em jogo no Brasil moderno, de 2022, pós eleições, que sagraram a socialdemocracia vencedora, por exígua vantagem, é o destino da civilização brasileira e, com ela, de todo o sul do globo.
Sou contra metáforas organicistas, como as de Spengler ou de certo marxismo. Sociedades não são organismos, nem contam com metabolismo e outras tiradas fáceis. A mistura entre História, a ciência, com a biologia geralmente nos forneceu tristes legados. Mas, poderíamos dizer que o Brasil está doente, e sua doença é seu passado. País enorme, se viu forjado na mais pura violência contra negros e indígenas. Sua modernização foi feita sempre a ferro e fogo, com as sevícias que esse tipo de processo comporta. Hoje, nos chega a fatura.
Nenhuma das três ditaduras pelas quais o país passou viu seus responsáveis serem punidos. Os militares, herdeiros de uma jabuticaba, o positivismo, se deram a si próprios a missão de guiar a nação, em um quadro redivivo da sociedade medieval, onde as castas se dividiam, guerreiros faziam a guerra, curas rezavam e, ao povo, cabia as migalhas. Assim, na última ditadura, torturaram, mataram, roubaram e endividaram o país, concentrando renda, para entregar muito pouco diante do alto preço.
Uma das principais diferenças entre a esquerda e a direita brasileiras é que esta pede ainda ao salvador nacional, os milicos, a entrega do pacote, e a constituição de uma nova soberania. Já a esquerda se volta ao povo como poder constituinte, de onde emana todo o poder, para inaugurar uma nova era no Brasil. A esquerda tem os sindicatos e os movimentos sociais; a direita possui as armas e uma classe média pronta para atirar.
O Brasil se fascistizou, eis o fato. Não vivemos em uma sociedade fascista por questão de oportunidade. Os fascistas já têm parcela importante das igrejas, já estão sobejamente infiltrados no poder militar, já possuem grande aporte de empresários. Só falta constituírem as milícias armadas e começarem a violência fascista de massas. Ou nem tanto.
Enquanto a esquerda pede para o Estado agir, a direita perigosamente vai às ruas e tenta estrangular economicamente o país, por ora sem sucesso. Turbinados por notícias falsas, messianismo e delírios, crentes de que estão imbuídos de um espírito redentor, já se preparam para não dar tréguas à socialdemocracia.
Em momentos de extrema polarização, com uma direita que avança rapidamente no imaginário e nas pautas públicas, a esquerda encontra-se acuada, pedindo ao Estado, este administrador dos negócios comuns da burguesia, que proteja esse mesmo Estado do monstro que ela chocou. Ingenuidade, no mínimo.
Umas das coisas que determinou o destino de Jango foi justamente a crença no dispositivo militar de oficiais legalistas que impediriam um golpe. Os golpistas, mais práticos, só empurraram. A democracia estava podre. Hoje ocorre o mesmo. A democracia está por um fio. Ao invés da socialdemocracia chamar o povo às ruas, para os embates certeiros que virão, ficam se fiando no aparato militar fascistizado para salvaguardar ao Estado.
Um dos livros mais conhecidos sobre a revolução espanhola se chama Metade da Espanha morreu. Acrescentemos: nas mãos da outra metade, como se disse à época. Essas proto milícias que estão na rua já têm as armas; falta se aglutinarem. Falta Bolsonero criar o partido fascista, já que o PL de Costa Neto dança conforme a música. Devemos nos reparar para os embates de rua, porque, do outro lado, elas já estão se preparando.
Diz o ditado futebolístico popular que a melhor defesa é o ataque. Realmente, é necessário um embate civilizacional com a extrema-direita, o que vai exigir tempo e recursos. Bancará a socialdemocracia essa luta? Desmantelará a quadrilha digital de Bolsonero? Enfim teremos uma Comissão da Verdade que apure os crimes desse período de trevas e puna os responsáveis? Fascismo não se destrói somente com informação ou com livros, uma ilusão platônica de que o mal é desconhecimento do bem. É necessária a violência, divina, como quis Benjamin. Do contrário, eles já estão prontos para nos engolir — e o farão. A esquerda precisa sair da defensiva, precisa fazer com que deixe de ser a extrema-direita anti-iluminista a pautar o debate nacional, com sua shitstorm.
Em um momento assim, só devemos dar apoio à socialdemocracia, se uma via revolucionária não se abrir, em troca de grandes conquistas. Mas a Frente ampla montada talvez não permita isso. Eis nosso dilema.
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