quinta-feira, 13 de outubro de 2022

De Parmênides a Bolsonaro: obscurantismo e decadência

 

Muitos indicam Parmênides de Eleia como o inventor da lógica, visto que este teria identificado um dos princípios basilares desta: o princípio da não contradição. Ou seja, uma mesma proposição não pode ser verdadeira e falsa de uma mesma coisa sob um mesmo aspecto. Parmênides, em seu longo poema, nos fragmentos extantes nos indica, por exemplo, que o ser é e que o não ser não é, o que pode soar como tautologia, mas, em fato, não se configura como tal. No poema, Parmênides é conduzido em uma carruagem da deusa da justiça e lhe são apresentados duas vias, a da verdade e a da opinião, uma distinção que se tonaria clássica com Platão sob a forma da oposição entre episteme (que podemos traduzir como ciência) e doxa (isto é, opinião.


O que mais nos toca é que o caminho do ser, da verdade, é apresentado por Parmênides justamente como uma revelação da deusa da justiça, não como fruto de um método de pesquisa. Somente com Sócrates, várias décadas depois, é que se delinerá o primeiro método filosófico, ou seja, um caminho (odos) para se alcançar a verdade, a maiêutica. Trata-se de duas concepções contraditórias de acesso a verdade, uma, a verdade revelada, a outra a verdade raciocinada. Pela via da primeira, um poder superior se nos indica um proposição a ser tomada como verdadeira. Pelo caminho da segunda, utilizamos instrumentos a fim de chegar à verdade.


O instrumento por excelência da busca pela verdade ainda na Antiguidade era a logica. Parmênides, assim, mesclava em seu raciocínio os dois métodos de se alcançar a verdade, o lógico e o sobrenatural. O método lógico foi sistematizado, pela primeira vez, por Aristóteles, na série de livros que vieram a ser compilados como Organon, ou seja, instrumento, apontado como o primeiro livro a ser lido de seu sistema, justamente porque nele são apresentados os modos através dos quais se chegou às conclusões que o Estagirita chegou.


Quanto às verdades reveladas, elas estão expostas em toda uma série de livros, geralmente religiosos. O Apocalipse, por exemplo, nada mais é senão uma revelação, tradução literal do termo, direto do grego.


Não se pense que os dois métodos necessariamente se opõem. Por séculos, o método lógico foi justamente utilizado para fundamentar e dar ares de verdades ás noções reveladas. Seu ápice foi o tomismo durante a Idade Média, onde, na Suma Teológica, Tomás de Aquino provava o mundo e o fundo do universo, deduzindo, da união entre Bíblia e Aristóteles, tudo aquilo que se cria importante para uma pessoa alcançar sua salvação. O livro divide-se em artigos, onde , geralmente, as posições da Bíblia e de Aristóteles são expostas, de modo a se extrair as conclusões lógicas, que fundamentem a verdade assim pensada.


Essa mixórdia entre os dois tipos de verdade começou a ser questionada na Renascença, com a entrada em jogo de uma terceira dama, além da revelação e da indução: a experiência. Muitos autores concorreram para esta aparição, religiosos e leigos, nem sempre com a intenção de descreditar a posição dominante da Igreja Católica. Cabe notar que, Francis Bacon chamou seu livro, onde propunha uma nova forma de se abordar os fenômenos da natureza, de Novum Organum, ou seja, novo instrumento.


Não se trata, simplesmente, de opor razão e experiência, visto que a maturidade do método científico combina os dois, como bem notou Mondolfo. No esquema de Galileu, o experimento é pensado pela razão, verificado pela prática, e estendido ao conjunto da natureza novamente através da razão. Neste equema, não há espaço para a verdade revelada, somente para aquela refletida.


A verdade-método mostrou-se particularmente fecunda. Conquanto em séculos de domínio da verdade-revelada pouco se avançou no sentido de utilizar as forças da razão ara compreender o universo ou aprimorar a vida dos humanos na Europa medieval, com pouco mais de quatro séculos de aplicação do método científico, as mudanças são profundas, mas não irreversíveis, como hoje sabemos.

Um dos principais antagonistas do método científico foi, exatamente, as crenças arraigadas na população,, nas instituições e nos próprios cientistas que se fiavam em preconceitos e em noções tidas como verdadeiras a fim de impedir novas pesquisas. Em “O experimentador” Galileu deixa claro que, entre a tradição e a experiência, ele escolhe esta. Quase foi parar na fogueira, ao evitar por muito pouco o destino de Giordano Bruno ou amargar décadas na prisão, como Campanella.


E qual ideia errônea a ciência moderna não destruiu, a começar pelas ideias tidas por verdadeira pela própria ciência pregressa, pré-moderna? Não fiquemos no lugar-comum da terra plana; desde séculos já se sabia da esfericidade da terra (na verdade um geoide). Mas, por exemplo, que plantas são animais de ponta-cabeça, que os animais são gerados naturalmente na natureza (cria-se que, por exemplo, sementes de trigo davam vida á ratos), que pragas são frutos da ira divina, que cometas são mau presságio, etc. A lista é longuíssima Basta ler um estudo científico anterior ao século XVI para que o acumulado de erros logo transpareça.


Em todas as searas onde verdade-revelada e verdade-método se enfrentaram, esta se provou, por fatos, acertada, e aquela, pela ausência de provas, insuficiente, errônea ou tão somente mentirosa. Esse acúmulo de noções e práticas benfazejas levou muitos a acreditar, no que ficou conhecido como iluminismo, que a sociedade marchava para um a liberdade, a igualdade, direitos, abundância, etc.


Mas, ao mesmo tempo que o Iluminismo progredia, também seus inimigos se acumulavam, e isto no seio do próprio movimento, uma vez que é Rousseau, precedido por um número grande de apologistas do cristianismo, ou seja, das verdades reveladas (e apologistas de peso, como Pascal), que via na história não progresso, mas decadência. A noção de que o mundo se deteriorava conforme os homens aprendiam a conhecê-lo encontrou especial eco na cabeça dos pensadores e artistas que vieram a ser conhecidos como românticos, pensadores de primeira linha como Schlegel, Hamann, etc. Louvando a Idade Média, cavaleiros, mulheres submissas, o sentimento e o domínio da teologia sobre toda a vida social, esses pensadores iriam desembocar no fascismo, cujo triste legado, nós, brasileiros, conhecemos hoje mais do que nunca.


A ideia de decadência é muito antiga e muito difundida por todo o mundo. Encontramo-la em Hesíodo, em Platão, em toda uma literatura hindu, em outros povos indígenas, na Bíblia. O paraíso perdido, a Idade de ouro que se foi, etc.


Na modernidade, ela ganha contornos claramente racistas, com Gobineau, um burguês enobrecido que se dizia descendente de Guilherme Normando. Para Gobineau, a humanidade estaria dividida em raças completamente diferentes e, sobre todas, o único vetor de civilização seria a raça ariana, que se concentrara, modernamente, no norte da Europa. Os arianos, com seu vigor, sua força, sua potência, estariam desaparecendo, tragados por raças inferiores. Por isso, o mundo estaria condenado, já que sua força civilizatória motriz estara enfraquecendo inevitavelmente.


Gobineau, que era francês, foi apropriado por setores nacionalistas alemães e acabou muito utilizado por um senhorzinho de bigode esquisito, o qual ajudou a conduzir o mundo a uma carnificina terrível. Os judeus, apresentados como inimigos dos verdadeiros valores nacionalistas por pensadores que vieram na esteira de Gobineau, foram perseguido, junto com outras minorias.


Outro pensador que enxergava, a partir de uma tese de doutorado que não foi aceita pela Sorbonne (por ser insuficiente e fraudada) foi um tal de René Guénon. Para Guénon, a modernidade traz a marca do declínio, já que se opõe à tradição. Estaríamos em um ciclo de decadência, o qual somente pode ser quebrado através de uma elite vigorosa, que se lhe oponha e estabeleça as condições de uma nova civilização. O Ocidente, com sua modernidade, estaria fadado a ser engolido pelas nações que ainda guardavam sua superioridade espiritual: países muçulmanos, hindus, confucionistas, etc. Para Guénon, todas as religiões do mundo teriam sido reveladas à humanidade na aurora dos tempos, e guardariam a mesmas verdades perenes. Guénon era adepto de sociedades ocultistas, foi maçom, católico e terminou muçulmano sufi. Na esteira de Guénon uma série de sociedades secretas e seitas foram fundadas, muitas das quais envoltas em abusos e má-fé. O próprio Guénon foi terminar seus dias no Egito muçulmano, crendo que, assim, mantinha acessa a chama do sagrado.


Um dos seguidores mais fiéis de Guénon foi Julius Evola, um escritor e político fascista, que foi divulgar suas ideias junto às SS e terminou sendo considerado muito radical pelos nazistas. Evola, que também enxergava um declínio do Ocidente, passou das palavras às ações e foi pôr em prática aquilo que aprendera com Guénon. Após a derrota do Eixo, tornou-se ideólogo da extrema-direita italiana, ajudando a organizar e pensar suas ações, como assassinatos e ataques armados, no pós-guerra.


No Brasil, Guénon e Evola encontraram vivos adeptos, o mais famoso dos quais, que também enxergava na modernidade uma decadência, Olavo de Carvalho. Olavo viu em Bolsonaro a possibilidade de regeneração da sociedade brasileira. 700 mil mortos pela pandemia, que terminaria por vitimá-lo também, não foram suficientes para fazê-lo mudar de ideia. Como se diz, falador passa mal...


Monod mostra como Pascal tentou provar as escrituras como verdadeira pela única prova que resta: a interior. Ou seja, a fé pura e simples. Em todos os confrontos entre fé e razão, esta última se mostrou vitoriosa. Não á toa: a fé somente oferece palavras e a crença em mistérios. Em séculos de domínio da fé sobre a razão, aquela ofereceu dores, sofrimento, miséria, etc. A ciência, desde o Iluminismo, nos oferece feitos e respostas. Se males persistem no mundo, a razão nos permite projetar um outro mundo, onde as mazelas atuais tenham desaparecido. Este mundo é possível, e está ao alcance das mãos. O maior impedimento para sua concretização vem justamente daqueles que se apoiam em verdades-reveladas, outro nome para balela. As condições estão dadas, falta vontade política.

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