domingo, 9 de outubro de 2022

Carta de um vivo para uma amiga que virou poema

 

Já fazem quatro anos. Fico pensando o quanto o clima político da época não interferiu em sua decisão e o quanto esta decisão poderia ser revista hoje. Afinal, saímos de um pessimismo completo para o vislumbre de alguma luz no fim do túnel. Daquela onda de loucura que tomou o país, a uma ligeira melhora de situação.

Você abandonou um país que morria, talvez para não acompanhar sua dolorosa expiação. Como ele, você também morreu. Mas, ao contrário dele, que pode renascer, você não pode. Já é história — como o curso que fizeste e onde nos conhecemos, no seio do sertão de São Paulo, a Vila Franca do Imperador. E você abandonou o mundo no momento em que ele mais precisava de gente como você, com suas inúmeras qualidades, como sensibilidade e seriedade. Hoje são suas palavras que ressoam entre os vivos que ainda lembram de ti com ternura, palavra que, mero bardo inferior, dou eco e venho fazer brilhar na tessitura fina deste texto.

Lembro de Pessoa: “fazes falta?”. Faz, respondo eu. Era especial. Tinha um trato delicado com as pessoas e um jeito todo seu de lidar com as palavras. Não à toa, adorava Lorca, este poeta maricas da Hespanha. Eu também gosto muito de Lorca e guardo com caminho um dos livros, já destroçados pela leitura, dele que me deste. “Teu ventre é uma luta de raízes” é um de meus poemas preferidos. Guardo-o de cor na memória. Junto a ele, “Perdi-me muitas vezes pelo mar”. Grandes obras.

Em troca de teu Lorca, te dei meu A peste, de Camus. Li Camus a primeira fez em Franca, com Nádia. Você não gostava dela, talvez porque eu gostei dela. Ele tinha um quê blasé que me atraia. Menina de classe média alta, aficionada em literatura. Com ela descobri Dickson. Com você descobri o mundo. Não havia razões para ciúmes. Nádia foi como a brisa da manhã. Você era meu sol encarnado, você era minha Marcelinha. Nádia era nadinha de nada. Também, com 1, 49 m e meio. Não se ofenda, Nádia, mas Marcela era um farol em mar bravio.

Nunca li esse livro de Camus. Li outros tantos, mas não este. Nem mesmo durante a pandemia, quando se tornou moda. Li A queda dele, em português, primeiro, depois em franc~es, anos depois. Camus não era muito melhor que Sartre, mas este era superior em matéria pensada, trabalhava melhor os temas. Camus era corajoso e belo, Sartre era louche e farouche, intelectual de ponta.

Acho que nunca te disse, mas Nádia me mandou um extrato de Camus, o qual, infelizmente perdi. Nunca mais a vi. O que será que aconteceu com ela? Às vezes me pego pensando, imaginando se algum dia a reencontrarei. Mas Nádia era de direita, filha de gerente de banco. Li Bakunin para ela, e ela ria. Você nunca riu de meus arroubos anarquistas, apesar de tender ao marxismo.

Da última vez que te vi você me apresentou uma literatura que nunca tinha visto. Devorei sua Akhmatova e sua Szymborska. Achei Akhmatova meio parada, monótona. Já Szymborska tem grande verve. Quem sabe eu não aprenda polonês para lê-la, como estou aprendendo russo. Língua difícil, Marcelinha, mas vale a pena. Afinal, “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.

Valeu a pena, então? Já que sua alma era enorme? Não sei. Segredo de além-túmulo. Para nós, nos vermos privados de sua companhia não valeu a pena. O que será que aconteceu com seu gato, Garcia? Bicho danado, furou seu colchão de ar e quis me colocar a culpa. Ah, se eu pego ele.

Publiquei meu primeiro livro, Marcelinha. Profecias. Exigência do editor. O título original era profesia, mas ele disse que era não comercial. Quase não vendeu. Me queixo da editora e de mim mesmo. Já vai fazer um ano e ainda não tive um exemplar nas mãos. E você sabe o quanto nós, de alma historiadora, valorizamos o documento físico, tangível, palpável Estou escrevendo outros livros. Um, sobre coprofagia, onde cito uma aula do Gigante. Não sou adepto da prática coprofágica, você sabe, mas é um tipo de literatura que ofende e tem um quê atrativo nela para mim. O outro livro é sobre Olavo, essa perda de tempo de duas pernas. Uma besta, Marcelinha, uma besta completa. Uma ofensa a toda criatura pensante. Mas que encontrou, justamente, criaturas não pensantes, onde suas fracas ideias tiveram eco. No oco das cabeças, só há eco. Eca! Miserere nobis.

Também comecei um blog, onde publico textos variados, de poemas a trechos literários, de traduções a excertos filosóficos. Vai bem, muitas visualizações, mas quase nenhuma discussão. Também não me queixo. Filosofia é para raio de maluco, você sabe. O bom é que vai para o Latttes, ajudando a este pobre vivo a turbinar seu currículo. Não, não pense que é fraude. Publico artigos revisados também. Da mesma forma, geram poucas discussões. Mas geram alguma. O bom são os pareceres, que te orientam no porvir.

Acho que são estas as novidades. Gostaria de ouvir as suas, mas creio que não as há. Infelizmente, é um diálogo onde um interlocutor está surdo e mudo. Resta a lembrança. De noitinha, me lembro de você. Às vezes choro de saudade, como chorei no dia em que soube de seu triste destino. Aí, fumo um cigarro e bebo um trago, dou uma volta. É o que resta para os mortais. Porque, sem um auxílio, eu já teria enlouquecido. Sem perspectivas, sem futuro, sem tudo, com nada. Sem você. É, Marcelinha. Sem você. E você sem.

Resta a esperança em um futuro melhor, baseada no passado de dias felizes. Como aqueles que vivemos juntos, em meio a girassóis, cigarrilhas e poemas, além de nossos amigos, os quais, aliás vão muito bem, na medida em que é possível estar bem sem você por perto...

Me despeço com um pedido: me visite em sonhos, deixe eu ouvir sua voz novamente, ver sua figura toda vida, saltitante, enquanto debatemos Oswald e Apollinaire. Faça poesia nas minhas noites, enquanto eu tento fazer poesia nos meus dias. Pois você não morreu: virou poema. Um lindo poema que eu recito todo dia.


Ribeirão Preto, primavera de 2022

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