domingo, 4 de dezembro de 2022

Bolsonaro: populismo iliberal ou neofascismo?

 PRADO, M. Bolsonarismo: a alt-right e o populismo iliberal no Brasil. São Paulo: Lux, 2021

O bolsonarismo é um fenômeno recente na política e sociedade brasileiras e sua interpretação tem dado azo a múltiplas perspectivas. Os livros se acumulam com todos os vieses que as diferentes correntes de pensamento permitem. A grande mídia parece já ter encontrado o seu nicho: Bolsonaro seria um populista e, diferentemente de Lula, outro populista, um tal que de direita ou extrema-direita, um perigo para a estabilidade das instituições.

Embora isto tudo, haveria novidades no tipo de populismo que Bolsonaro encarnaria. O uso constante das novas mídias, o fato de as instituições serem erodidas, o apelo aos sentimentos mais reacionários da população e, especialmente, o uso indiscriminado de fake news seriam novidadeiros.


O livro Tempestade ideológica, de Michele Prado, trabalha com toda as táticas do bolsonarismo, conta sua história, mostra o papel funesto que Olavo prestou ao surgimento de tudo e desnuda algumas facetas da direita contemporânea, a assim chamada alt-right, diferente da velha direita liberal, e também distintas dos antigos nazifascismos. A conclusão de Prado é que Bolsonaro seria uma direita iliberal.

Apesar da tese, da qual nós, comprometidos com o surgimento de outro mundo, nos opomos, o livro tem muitos méritos e a autora, uma liberal, se mostra arguta e bem informada, especialmente nos entremeios do bolsonarismo, o qual ela vivenciou por dentro. Há também inventividade no uso dos conceitos. A autora afirma que Bolsonaro não é liberal, o que implica, se pensarmos na história do termo, uma conjunção de progressismo com defesa das instituições capitalistas. O liberal do século XVIII era uma pessoa, sobremaneira, progressista e o termo se firmou de tal modo, que nos EUA, um liberal é sinônimo de indivíduo de esquerda, em contraposição a um conservador. Ela trabalha com o termo liberista, para dar conta do famoso “liberal na economia, conservador nos costumes”. Assim, conclui, Bolsonaro trabalharia em um sentido antiliberal, e tudo que vivenciamos no país no último período seria a antítese do liberalismo, mas de um populismo iliberal.

Não me apetece o conceito de populismo, tão ao gosto da mídia. O populismo, ou seja, a recorrência às massas contra a elite e o “sistema”, seria uma forma que englobaria tanto socialismo e fascismo, em contraposição ao liberalismo, o qual trabalharia com “técnicos” e saberia operar uma política limpa, em detrimento dos populistas, que querem correr a democracia e as instituições liberais. Assim, qualquer revolução seria “populista”, já que é o povo se insurgindo contra os meandros da política institucional e profissional e seu lento processo. Vê-se, pois, que o termo é uma armadilha, que nos condena ao jugo eterno do liberalismo e a política bem comportada.

Assim, Bolsonaro não é um populista. Mas tampouco é um fascista no sentido clássico, já que elementos claros de um movimento fascista, como o partido e as milícias do partido não estão presentes. Claro, pode-se argumentar a respeito das ligações de Bolsonaro com as milícias cariocas; mas estas são anteriores à sua ascensão e hão de continuar depois de sua queda, caso nada seja feito. Um partido com milícias políticas da própria organização, isto Bolsonaro não possui. O partido atual de Bolsonaro é só um meio para ele, sem nenhum compromisso ideológico. Bolsonaro busca o poder e o enriquecimento familiar, nada mais. Para viabilizar isto, adotou uma postura de crítica ao encaminhamento do país no último período. Podemos imaginar que, caso fosse Aécio o vencedor, Bolsonaro não se valeria de um discurso estatizante a fim de viabilizar sua ida ao Planalto.

Se bem Bolsonaro não seja um fascistas no sentido clássico, ele se aproxima muito disso. Alguns apontam a novidade que seria a utilização em massa de uma rede de desinformação como se a desinformação e as fake news não tivessem sido armas já muito bem utilizadas pelos fascistas de outrora. Basta pensar nos Protocolos dos sábios de Sião, uma peça de propaganda antissemita, que exporia uma intentona de busca pela dominação mundial organizada pelos judeus, e que teve carreira tão vitoriosa quanto funesta no engendrar do nazismo. Ou nas distintas teorias raciais, como as de Gobineau e Chamberlain. Além disso, os fascistas se valeram de tecnologia de ponta, para o período, a fim de disseminar suas ideias políticas, como filmes e rádio.

Outro elemento que poderia entrar nessa conta é o antiluminismo. Bolsonaro adotou como ideólogo Olavo, todos sabemos. E este nada mais fazia além de criar supostas teorias, não validadas pela comunidade científica, que esbravejavam contra a esquerda mil e um impropérios, e enxergava uma grande teoria da conspiração em todos os lados, envolvendo artistas, intelectuais, jornalistas e, até mesmo, os famosos bilionários comunistas (sic). Na visão psiquiatrizável de Olavo, haveria uma grande conspiração contra o cristianismo e usa forças religiosas, organizada pela esquerda, com ramificações em todas as esferas do governo e da sociedade. Ele, Olavo, seria uma vítima da esquerda já que, dizia, a direita estava sendo varrida do mapa pelas forças da esquerda e censurada pelo sistema, uma organização de bilionários e intelectuais em prol do comunismo. Olavo era um antimoderno. Só não fazia loas aos cavaleiros e dragões porque o Brasil não viveu o feudalismo. Mas defendia uma sociedade decididamente coordenada pela religião. Disto decorre tudo. Todas as conquistas oriundas da revolução francesa e russa, coisas como separação do Estado e da Igreja ou direito de votos das mulheres, abolição da escravidão e laicização da sociedade, mereciam acabar, pensava ele. Olavo era um antifilósofo.

Assim, o romantismo político de Olavo, enquanto reação ao Iluminismo e seus corolários políticos, o socialismo e o liberalismo clássicos, também seria outro traço que aproxima Bolsonaro do fascismo tal qual este se deu em meados do século XX.

Além disso, a militarização da vida cotidiana, com escolas militares e milhares de fardados nos postos chave do governo, incluindo o vice-presidente e o próprio presidente ex-militar, deixam claro que Bolsonaro é um neofascista. Chamemos as coisas pelos seus nomes. Enquanto tal, pregava uma revolução dentro da ordem, a fim não de avançar, mas de regredir. Bolsonaro somente não conseguiu consumar um golpe de Estado, que o tornasse um autocrata, por falta de condições externas, na comunidade internacional, e internas, como falta de apoio de um setor da burguesia, especialmente o agroexportador, temeroso de ver seus lucros tombarem com possíveis boicotes, como aqueles que já se organizam, dada a política de desmatamento do atual governo. Bolsonaro é o ditador certo na hora errada. Faltou-lhe a oportunidade, o kairós para que, assim como na medicina antiga, a verdade da doença se manifestasse.

Em fato, Bolsonaro é ainda mais fascista que o próprio Mussolini, já que o fascismo, enquanto romantismo político, se opunha ao classicismo, ou seja, ao Iluminismo. Mas faltava-lhe opor-se completamente e negar até mesmo as bases científicas. Ao contrário, baseavam-se em uma ciência específica, que indicaria a superioridade de arianos sobre o restante do globo. Com a derrocada dessas pseudociências, e com boa parte da comunidade científica composta por pessoas progressistas, ao menos no Brasil, restou a Bolsonaro e Olavo negarem a ciência, o que se sentiu em todos os departamentos, com corte de verbas et caterva.

Bolsonaro é um neofascista sem oportunidade de exercê-lo. Ou seja,pior que fascista, fascista fracassado.

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