Nos Fragmentos dos Pré-socráticos, verdadeiro marco no estudo da filosofia dos primeiros filósofos gregos, Diels optou por não começar a obra, tal qual acontece na versão brasileira d’Os pensadores, com Thales, apontado justamente como o primeiro filósofo. Ao contrário, ele principia com Orfeu, uma figura semimítica, que teria descidos ao Hades, sua maior façanha. Orfeu deu origem a muitos mitos na antiga Grécia, e mesmo a um culto que lhe rendia homenagens.
Do mesmo modo, Kirk e Raven, quando vão tratar dos primeiros filósofos, fazem questão de apontar os desdobramentos mitológicos e o background que os mitos forneceram aos iniciados desta nossa profissão de pensadores. A ciência, nos dizem, teria se originado em elucubrações mitológicas; ou, como disseram Adorno e Horkheimer, no clássico Dialética do Esclarecimento, o mito já é esclarecimento.
Embora as ligações entre mentalidade racional e mentalidade mítica tenham sido esfumaçadas no século XX, por exemplo, com as críticas de um intelectual do status Lévi-Strauss; ou ainda, que muito helenistas, como Snell, apontem as similitudes e dependências entre a filosofia e a lírica, sem a qual as construções e explicações de Heráclito seriam impossíveis; ou até mesmo como Cornford, o qual indica que Thales somente teria laicizado o mito oriental; embora tudo isso, é difícil não concordar com Farrington: com os primeiros filósofos, algo aconteceu, algo de excepcionalmente novo. Se os gregos foram beber em outras tradições, como mostra Bernal, se os gregos herdaram de outras civilizações elementos fundamentais, como o alfabeto fenício ou a matemática egípcia, ou, até mesmo, existiram colônias semíticas na futura Hélade, como especula o mesmo Bernal, tudo isso não diminui o gênio helênico que, para usar um chavão, subiu no ombro de gigantes para ver mais longe.
Claro está, como se pode consultar em qualquer manual, que a filosofia surge como uma forma de se diferenciar do mito. Em vez de guerras de heróis ou de deuses interferindo em todas as etapas do conhecimento, uma explicação laica do universo. É a milenar luta contra o senso comum que orientou os filósofos do período.
Vejamos um exemplo. No De mundo, o pseudo-Aristóteles afirma que Orfeu, um pensador mítico, assim explicava o mundo: “Zeus cabeça, Zeus meio, de Zeus tudo foi criado [tétuktai]” (DK, fr. 6, 21). Tetuktai é o perfeito de teuchō, “modelar”, “criar”. É o que se diz de uma peça feita por um artesão, por exemplo. Por trás do mundo, a mente de Zeus, o pai dos deuses, o deus supremo.
Quando Thales, do qual nos resta poucos fragmentos, vai se expressar, ele já afirma uma coisa outra, completamente diferente. Segundo Diógenes Laércio Laércio (Vidas I 1, 35), Thales teria escrito o seguinte poema:
Mais velho dos seres [é] deus: ingerado, pois
Mais belo, [o] kosmos: obra de deus
Maior, [o] espaço: tudo, pois, contém
Mente, a mais rápida: através de tudo, pois corre
Mais forte, necessidade: domina, pois, tudo
Mais sábio, tempo: tudo, pois, revela
Aqui, Zeus já não aparece como uma ubiquidade que tudo abrange e tudo contém, que é o mesos, o “meio” do mundo. Outros elementos como espaço, mente e necessidade vem à baila. Se somarmos a isto a afirmação de Thales de que “tudo é água”, já teremos claro que uma nova mentalidade entrou em cena.
Opor-se à religião tradicional era a regra entre os primeiros filósofos, o que não significa, em hipótese nenhuma, de que se tratassem de ateus ou que deixassem de participar dos cultos públicos. Até por que, a religião grega era uma tal que cívica e os deuses, até pelo menos a fase helenística (quando da dominação dos grego por Filipe II, pai de Alexandre), eram os deuses da cidade, protetores de cada pólis. Mesmo na fase helenística, ao menos segundo Festugière, um estudioso francês do tema, um insuspeito Epicuro, para o qual os gregos deveriam se libertar do excessivo temor aos deuses e da superstição, rendia homenagem aos deuses da cidade e tomava parte nos cultos.
O importante aqui é que os filósofos já não tratavam de mythos, mas de logos. Snell, em A descoberta do espírito, mostra uma diferença grandiosa que ocorreu ao longo de um período de tempo curto em padrões históricos: a poesia era entendida, no período homérico, como narrando fatos, como portadora da verdade histórica. Já Aristóteles, quando escreve a Poética, a considera fantasiosa e a opõe à História. História, como se sabe, é um termo de origem grega que significa “investigação”. Assim, se poderia muito bem escrever histórias que narrassem investigações em distintos campos. A investigação se opõe à poesia; esta não investiga, mas tira da fantasia do poeta, o epos. O próprio termo logos se opõe à noção de mythos, como já bem mostrou o frei Damião Berge.
Para sermos claros: os filósofos se opunham ao senso comum da época, que se manifestava na crença na mitologia, na religião tradicional. Não importa que considerassem a escravidão como natural, como faz Aristóteles. Ao racionalizar o mundo, abriam espaço para a inevitável descoberta, feita séculos depois, que todo os humanos são iguais.
Por isso vimos insistindo que a filosofia é uma estratégia histórica. Enquanto tal, suas proposições, como qualquer outra, ocorrem em um campo de exterioridade, cujos efeito vão muito além daquilo desejado pelos sujeitos que filosofam. O discurso reverbera.
Nesse sentido, quem defende o senso comum e o que está estabelecido como norma não é filósofo, se opõe à sua própria tradição. A filosofia ou é questionadora da ordem, ou se trata de palavras ao vento, letra morta, escrever na água, como diziam os antigos gregos.
Ao longo de sua história, a filosofia despertou mais ira que amor, justamente por se opor à parvice e à papagaiada, hoje institucionalizada na mídia. Quem se reivindica filósofo — que é menos um título acadêmico, e mais um título ganho da comunidade por uma contribuição primorosa à difícil arte de questionar (já que a filosofia trata de saber colocar a pergunta, como defendem Deleuze e Guattari) — reivindica a morte de Pitágoras, a cicuta de Sócrates, o linchamento de Hipatia, o suicídio forçado de Sêneca, a perseguição a Abelardo, a luta contra o imprimatur, o desespero de Benjamin, a miséria forçada de Marx, etc.
Filósofo de direita é uma contradição lógica. Para isso, existe outro termo, consagrado pela tradição, e ao qual Masseau consagrou um livro estupendo: antifilosofia. Olavo, Pondé, Jordan, filósofos? Não, jamais. O que fazem é uma mistura de autocomiseração e pirotecnia. Filosofia existe para questionar a ordem. O filósofo é o perigoso por excelência, especialmente quando escuta o apelo de Marx e busca pela prática e o palanque. Filosofia é uma arte de como ser perigoso. Fora disso, há monotonia e repetição. Quem é filósofo: Marx ou Olavo, Foucault ou Pondé (para citar os carecas)? A resposta é óbvia, e as consequências alegram a mente daqueles que pertencem à confraria dos questionadores.
Bibliografia
BERGE, Damião. O logos heraclítico. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969
BERNAL, Martin. Black Athena. The afroasiatic roots of Classical civilization. Volume i: The fabrication of Ancient Greece 1785-1985. New Brunswick: Rutgers University Press, 1987
CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae: the Origins of Greek Philosophical Thought. London: Cambridge University Press, 1952
DIELS, Hermann. Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1960
DIOGENES LAÉRCIO. Lives of eminent Philosophers. Cambridge/London: Harvard University Press/William Heinemann, 1959
FESTUGIÈRE, A.J. Epicurus and his gods. Translated by C.W. Chilton. Cambridge: Harvard University Press, 1956
KIRK, Geoffrey. S.; RAVEN, John. E.; SCHOFIELD, Malcom. Os filósofos pré-socráticos. 5. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005
MASSEAU, D. Les ennemis des philosophes. L'antiphilosophie au temps des Lumiéres. Paris: Albin Michel, 2000
SNELL, B. Die Entdeckung des Geistes. Studien zur Entstehung des europäischen Denkens bei den Griechen. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2011, 9ª ed.
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