quinta-feira, 8 de junho de 2023

Uma resposta a três perguntas [ou sobre o trabalho do professor de filosofia]


O objetivo do presente texto é articular, em um todo coerente, a resposta a três questões pertinentes ao ensino de filosofia. As questões são: “O que faz o filósofo quando seu ofício é ser professor de filosofia?”; “O que significa aprender filosofia?”; e “O que significa ensinar filosofia?”. Para tanto, recorremos à fonte da história da filosofia, fazendo apelo ao momento do surgimento desta. Depois, estabelecidas nossas bases metodológicas, buscamos um nível lógico de análise, articulando nossas posições com alguns elementos típicos de uma filosofia da educação embrionária.


1. Que faz o filósofo quando seu ofício é ser professor de filosofia?


Não é porque há conflito que há diferenças. É porque há diferenças que há conflito. “Os iguais não fazem a guerra”, já dizia Sólon de Atenas. Claro, também não se segue das diferenças que haja conflito; pode haver a concórdia na diferença, o mais fraco pode aceitar sua inferioridade, por exemplo, mas os fatos históricos vêm demonstrando que da diferença seguem-se geralmente conflitos. O modelo do conflito como via de análise das coisas do mundo é muito antigo, remete aos textos mais pristinos da tradição ocidental, de onde vem se nutrindo a filosofia. Pensemos na Íliada, um relato da querela, do nekos de Agamenon e Aquiles e de tudo que se seguiu. O próprio background do poema, a guerra de Tróia, mostra como a guerra e seus entremeios servem como esteio do pensamento ocidental.

No primeiro fragmento filosófico que nos chegou, o de Anaximandro, não é na guerra que ele vai buscarsuas imagens mentais, mas nas disputas dos tribunais. É somente com Heráclito que a guerra ganha outros contornos e passa a nutrir uma linha de pensamento que foi dar em Deleuze e Foucault, e, mais recentemente, em Dardot, Laval, Onfray. As metáforas e instrumentos bélicos vem acalentando o pensamento ocidental, em suma.

Sendo de tão longa portada, não há motivos para que não pensemos também a filosofia como belicosa. Sua origem é a prova disso. A filosofia surge nas colônias da Jônia, e estas são o resultado de um conflito nas terras metropolitanas entre possessores antigos da terra e novas camadas, que disputavam a , escassa e de má qualidade. A fim de resolver os conflitos, optou-se pela fundação de colônias em toda a bacia do Mediterrâneo, inclusive no Egito, e até mesmo na longínqua terra scita. A filosofia é o resultado desses conflitos, traz a marca deles em si.

Outras diferenças conflituosas, como aquela de uma sociedade marcada pela escravidão permitir que alguns gozem da scholē necessária ao forjar de um pensamento conceitual ou entre tribos dóricas e áticas; enfim, tudo isso mostra que a filosofia se constituiu em meio a um embate e que esse embate se marcou nela.

Basta pensarmos como Platão quis estabelecer a harmonia na polis através de um sistema social rígido; ou as prescrições que faz Aristóteles para evitar a stasis na cidade; ou, ainda, a ataraxia recomendada, a fim de que as flutuações do mundo não nos entristeçam. Tudo isso mostra as diferentes formas através da qual, na Grécia Antiga, buscou-se dominar os conflitos sociais e cosmológicos em benefício da unidade.

Filosofar é um ato de guerra. O primeiro lektos filosófico foi tudo é água, não tudo é Zeus. Esse dito foi obtido através de um raciocínio, ou seja, inquiriu-se o mundo e chegou-se à conclusões. Não se foi à pítia pedir respostas, nem se esperou iluminação súbita, uma epifania religiosa. Ao contrário, é através do mundo encarado como objeto, como algo a ser prescrutado. Se tudo está repleto de deuses, é porque o mundo é cheio de vida, de movimento, de diferença — de conflito. A filosofia surge do mito, mas faz uma  epistrophē, um tournant, uma mudança brusca de rumo, da verdade enquanto inspirada pelos deuses e exposta em versos, à verdade enquanto inquirição do mundo, obtida através da razão. A filosofia é o ovo da serpente chocado pelo mito.

O raciocínio filosófico, que é, ao mesmo tempo, o primeiro raciocínio cientifico, desencadeou o Esclarecimento sobre o mundo, Esclarecimento começado com o mito, mas que a filosofia radicaliza, ao laicizar o pensamento e colocar causas puramente naturais na archē´do kosmos. Esse Esclarecimento se dirigia à forma como o mundo era interpretado até então, ou seja, contra o mito, contra a religião. Não que os primeiros filósofos fossem ateus, mas eram adversários da forma como se explicava o mundo em termos míticos. Havia um fosso entre a religião popular e eles. No começo, como diz Hesíodo, o Chaos, o Abismo — a diferença.

Devido a essa diferença, surgiram, logo, conflitos. Tales e seus concidadãos, Pitágoras e os adversários de suas doutrinas, Heráclito e os efésios, os sofistas (mestres da discórdia), Sócrates e a cicuta, Platão e os siracusanos. E, mais adiante, ainda outras disputas, entre religiosos e as doutrinas professadas pelos filósofos. Por séculos, a filosofia foi ancilla da religião. Mas, com a redescoberta dos ensinamentos antigos, logo se libertou, dando seu quinhão na fundação da modernidade.

Quando a filosofia do Iluminismo ganhou as massas, o mundo se alterou — foi a revolução francesa. Mas as tarefas que o Iluminismo se dotou, como combater a superstição e o abuso, seguem vivas. São as tarefas clássicas da filosofia, algo que é constitutivo de suas formas de aparecimento históricas. Poder-se-ia escrever um livro: a história da filosofia, ou a luta contra o mito, e não estaríamos longe da verdade.

Compete ao filósofo seguir adiante essa tradição. Se a filosofia é um ato de guerra, quando o filósofo ensina filosofia ele está atuando nessa guerra como um soldado avançado, um condottieri da razão, lutando contra o mito e o pensamento mistificador, que quer manter o mundo no lethos do desconhecimento, na dependência de forças estranhas, em um mundo habitado por espíritos, demônios, deuses, livros sagrados. Somente como membro de uma grande fratria, que já dura dois mil e quinhentos anos, pode o filósofo se reconhecer no mundo.

Isso não quer dizer ser irreligioso, mas, sim, propor outra forma de religião. Há filosofias da religião que reconhecem a primazia da razão sobre a fé, e tentam explicar esta por aquela. Trata-se de combater a superstição. As formas modernas de superstição são, por exemplo, as teorias da conspiração e as notícias falsas, a pós-verdade, enfim. Valendo-se da mais moderna tecnologia, sequazes de determinadas posições políticas visam forjar fatos alternativos, e, a partir deles, orientar a ação, política ou não, de milhões. O filósofo deve combater isso ardentemente.

Talvez Gramsci esteja certo ao afirmar que todos os humanos são intelectuais. Dotados de razão, resta exercê-la. Mas a razão, ela mesma, é histórica, bem como seus inimigos. Queda de permanente no fazer filosófico a luta contra as veleidades do senso comum e a utilização não crítica que este faz da razão. As formas de misticismo sabem se apropriar de elementos racionais para se fundamentar, mas em uma direção contrária ao uso reto da razão. Não que creiamos em irracionalismo. Se a razão é mediação, e a intuição a experiência imediata do mundo, isto não quer dizer que ela seja irracional, mas, sim, uma fonte da razão, o material bruto a partir do qual a razão se forma e pode chegar em conclusões mais abstratas. Mas, como na Grécia, os perigos que rondam a sociedade são os do antiiluminismo, corrente forte, ancorada em preconceitos e tradições obscuras, ancorado, enfim, na fé utilizada sem o uso crítico da razão.

Podemos assim distinguir dois usos da razão, a qual todos os humanos são dotados geneticamente: um uso crítico e um uso místico. O uso crítico se pauta na busca por uma verdade encarada não como iluminação, como epifania, mas, sim, na verdade entendida como algo a ser buscado, que devemos inquirir da natureza, do kosmos. Já o uso místico se baseia em dados desconexos e faz apelo às tradições sociais indiscriminadamente, mesmo que, para tanto, se valha das últimas conquistas da técnica. É um uso conservador da razão, que termina por tolhê-la de suas potencialidades plenas. 

O filósofo, quando ensina filosofia, ao se emaranhar em uma longa tradição de luta contra o mito, faz um uso crítico da razão. Ele reconhece que para todo fenômeno há uma causa; que substâncias de qualidades diferentes, como espírito e matéria, não tem como interagir e de que, como tudo que recebemos pelos sentidos é material, também o espírito, se houver, é material; além disso, sendo material, deveria poder ser mensurado como todo o resto; se não o é, e buscou-se mensurá-lo, é porque ele não existe. O uso crítico da razão reconhece que a diversidade de religiões indica que nem todas estão corretas, visto os preceitos contraditórios, de modo que, na dúvida, é melhor suspender o juízo, por falta de explicações claras, do que se tornar acólito de uma religião que bem pode estar errada. O uso crítico da razão submete a fé, que todos temos, se a entendermos como sinônimo de esperança e de acreditar em um skopos, à razão e crê mais nas provas dos sentidos que no sentido das provas. A ciência moderna conseguiu um salto espetacular quando parou de indagar fins (telos) e princípios (archē) na natureza, e passou a perguntar-se pelo mesos, pelo meio, pelo logos do mundo. Da mesma forma, o uso crítico da razão reconhece que as pessoas necessitam de um skopos, uma finalidade para suas vidas, mas que este não deve ser fornecido através da mentira e do misticismo, mas buscado no grande repositório da razão, sendo a fonte máxima desse repositório a própria filosofia, com suas inúmeras correntes e possibilidades.

O uso crítico da razão é, portanto, laico, e pode ser haurido na própria utilização da razão. O mundo não possui nem telos nem archē. O sentido da vida é o próprio caminho que se traça ao viver. Viver, isto é, dotar-se de sentido. Isto não quer dizer viver à toa; pode-se e deve-se traçar estratégias de viver, mas estas não precisam estar ancoradas em princípios metafísicos, na raiz mesma do mundo, no plano secreto d natureza à estirpe humana. Ao contrário, é fruto da liberdade do sujeito e, livre, encontra seu fundamento em si próprio, na própria relação que estabelece com o mundo.

2. O que significa ensinar filosofia?

Em uma sociedade marcada por conflitos aquele que se mantém neutro já escolheu um lado. Não sejamos marxistas e reduzamos os conflitos ao seu viés econômico. As dissensões são muito mais amplas, bem como as diferenças. Tampouco pensemos que bastaria, com um ato administrativo, rasurar as diferenças, porque ser diferente é se humano. Somos partidários da Escola histórico-econômica alemã e cremos que uma teoria da sociedade enquanto tal é impossível, a menos que se induza, de todos os casos particulares, as permanências e constâncias, o que é, a bem da verdade, impossível. A história não é uma ciência nomotética, mas ideográfica, trabalha com casuísticas, não com legislaturas. Cada período, como já foi dito, tem o seu contato com deus, ou seja, todos os períodos são especiais e merecem ser estudados. Assim, em todas as sociedades que estudamos até a presente data existiam diferenças e, é provável, em qualquer sociedade que o gênio humano fundar elas continuaram existindo. Não se trata do cretinismo de louvar as desigualdades sociais ou as diferentes opressões, para invertermos a tirada daquele famoso marxista tupiniquim. Ao contrário: diferença não quer dizer desigualdade, quer, sim, dizer, ser humano, traçar uma história própria, escolher o próprio devir, ou seja, lidar com sua própria liberdade. As desigualdades e as opressões devem ser combatidas para que possamos chegar em uma sociedade enfim mais humana, que valorize esses percursos díspares ao invés de criminalizá-los ou condená-los à pobreza.

A filosofia entra no currículo com a justificativa de formar para a cidadania. Olhando para sua própria história, para o conflito de filosofia, insolúvel para Porchat Pereira — e insolúvel ao ponto de nos conduzir ao mais completo ceticismo —, já temos uma pista de que a filosofia deve ensinar para a diferença, para o convívio democrático de ponto de vista dissimilares. Não à toa, regimes autoritários, ainda que democráticos, já que pode haver um autoritarismo econômico, costumam desprezar a filosofia. É que, com o uso crítico da razão, com a luta obrigatória da filosofia contra o mito, a política deixa de ser apelo a valores tradicionais, para se tornar maquiavélica: o frio jogo de interesses. Interesses estes formados a partir de nossa posição no campo de batalha social. Como nós, os bestializados, os condenados da terra somos a maioria, só nos restaria uma política, enquanto arte de conduzir os negócios da pólis, que se concentrasse em desfazer essa condição de perdidos na selva do mundo. Assim, pretere-se a filosofia, que se orientou em benefício da pesquisa do mesos, em benefício de outras formas de doação de sentido, pautada em uma archē e em um telos. Essas formas de doação de sentido ensinam a passividade; a filosofia só pode ensinar a revolta, a insubmissão, o alçar de voz, o tornar-se senhor de seu próprio destino: non ducor, duco.

Como alguém dedicado a formar as novas gerações, a filosofia ensina o uso crítico da razão. Não havendo archē, muito menos telos, reina a liberdade. Esta se mostra no fato de que o professor de filosofia pode ensinar uma ou outra posição, mas que os alunos também podem questioná-lo e aceitar, ou não, as posições defendidas pelo professor. Além disso, há a figura do Estado, na forma do corpo administrativo da escola, que zela pela manutenção do status quo: são pagos para tanto e sua função ali é exatamente esta. 

Ou seja, temos um conflito instalado, a dialética do professor e do aluno, para parodiarmos Hegel: o mestre quer ensinar, mas ele depende do estudante (e aqui o termo estudante é importante, já que denota atividade, enquanto que aluno, do latim alunare, indica passividade), que tem que querer aprender. Entre a vontade de ensinar e a vontade de aprender há o casamento perfeito; mas, nem sempre é assim; o estudante pode ser mero aluno, mero receptáculo ou, se for estudante, pode sê-lo em um sentido contrário ao necessário ao aprendizado, o que já dá mostras de como as coisas podem se encaminhar. Porque, na verdade, não se trata de uma dialética, mas de uma polialética, já que há vários sujeitos envolvidos além do mestre e de um estudante: há vários estudantes, há as condições de ensino, há os representantes do Estado ou, talvez pior, da escola particular, enfim, a burocracia. E aquele que se espera que seja parteiro do conhecimento que deve ser produzido em sala de aula é o professor. Trata-se de uma poliaética desigual, os termos não ocupam a mesma posição. Além disso, para sermos coerentes, essa poliaética é histórica e contingente: cada aula é de uma maneira. A vida do professor é uma caixa de surpresas; um dia, os alunos podem se tornar estudantes; noutro, podem ser meros alunos; em outros, ainda, podem simplesmente se tornar desestudantes e só bagunçar o coreto. O professor de filosofia precisa cativar a sala de aula, ele precisa de uma estratégia, do contrário, o mito ganha, e a filosofia perece, como a bruma diante do sol da manhã

O professor de filosofia necessita de estratégia. Retomemos essa imagem mental. Na teoria militar, quem traça a estratégia é o comandante, o general, ou um conjunto de generais, o estado-maior. A estrategia é a ciência dos meios, ele serve para concretizar os fins traçados pela política, ou seja, é uma ciência que liga o interesse à sua realização, uma ciência das operações. No nosso caso também os objetivos são traçados pela política; são os burocratas de Brasília e do Bandeirantes que determinam o que será ensinado. O professor serve como general já que, para ele, trata-se de executar essas determinações da forma que melhor lhe aprouver. O inimigo, em um primeiro momento, é o uso místico da razão e, por isso, também os próprios estudantes, na medida em que, na sala de aula, são eles os representantes desse uso místico; é sobre eles que recai a mira do professor e são eles que devem ser montados, como um quebra-cabeças volitivo e praxiológico. Ao mesmo tempo que os estudantes são os inimigos, no final do período letivo eles devem ter se tornados aliados, já que, experimentados que estarão no uso crítico da razão, saberão combater o uso místico e não se deixarão se seduzir pelo misticismo moderno, as fake news e o mito de forma geral. Como bom general, o professor forma suas tropas para o combate contra a mitologia contemporânea.

Assim como Clausewitz descreve a guerra absoluta como fundamentalmente irreal, visto que a política serve como pelego para o choque de forças, pode-se dizer que descrevemos a sala de aula ideal, desconsiderando os pelegos que servirão para amortecer o combate. Esses pelegos podem ser alguns estudantes mas, com mais probabilidade, há de ser o próprio Estado. Afinal, uma escola lotada de estudantes com pensamento crítico que, desta feita, não aceitam as injunções do poder político tão facilmente nem as misérias da vida que aguarda a maioria, é o pesadelo de qualquer gestor e de qualquer patrão. Seria uma democracia direta, contrária, portanto, ao próprio fundamento do Estado  moderno, representativo.

Sim, a filosofia é perigosa, assim como a educação. Já disse o sábio o quanto seria ingênuo esperar que as classes dominantes permitissem à massa de estudantes que fossem educados para alterar a própria sociedade que os gerou. É até antipedagógico, em sentido próprio, uma vez que a educação  existe para transmitir valores e perpetuar uma formação social. Sim, a filosofia é perigosa. Foi perigosa em Atenas, foi perigosa na Idade Média, que o diga Abelardo, foi perigosa na Renascença e, não é porque a multidão conquistou a democracia representativa, que ela deixou de ser perigosa.

Ser professor de filosofia significa entrar na jaula dos leões, ensinar para a liberdade, quando toda a sociedade ensina para o conformismo. O professor de filosofia deve ser contra a educação, já que a educação serve para reproduzir valores, e este profissional ensina antivalores, valores que se opõem frontalmente à Igreja, à mídia, às redes sociais, aos patrões. Mais perigoso que domador de leões, eis a sina do  filósofo que se atreve a ensinar.


3. O que significa aprender filosofia?


O educando em filosofia pode ser estudante, desestudante ou aluno. Se for este último, não há de entender a filosofia, que nos convida não à bios theoretikos mas à vita activa ciceroniana. Refletir é já uma ação, que o mundo desconfia. Fala-se em ser ativo, mas é uma atividade conformada, não uma atividade que transforma. O aluno, nesse caso, pode ser um mero passivo pedagógico que, até mesmo, impossibilite as aulas. O desestudante, por sua vez, já tem um papel mais próximo do ideal filosófico, uma vez que ele já atua: é um rebelde, se opõe ao professor, não vê sentido naquilo. Mas tem o mérito de buscar tomar voz, de se expressar, ao contrário do aluno, o peso morto que só serve para embrutecer a profissão. Muito elementos podem concorrer na feitura de um aluno ou de um estudante. O aluno é o mais fácil de se explicar: animal domado, se contentou com seu destino e não ousa questionar uma autoridade. Já o desestudante pode estar em várias situações diferentes: família desestruturada, irreverência, vontade de aparecer, de se destacarda massa. O bom professor de filosofia será aquele que conseguir transformar o desestudante em um estudante, id est, direcionar sua rebeldia não contra o baixo clero da escola, mas contra os alto mandatários do país, contra os grandes conglomerados, os verdadeiros culpados de sua situação.

Tarefa inglória e difícil. Além disso, tarefa para a qual o professor não é pago, nem poderia ser, como se percebe logo à primeira vista. Como despertar a curiosidade filosófica em desestudantes, como transformar o ódio difuso por tudo que está aí em um saudável ódio não contra a diferença, mas contra a desigualdade? Não temos a resposta, mas educadores de mais longa portada certamente sabem melhor. Nesse caso, vale mais a sabedoria que a erudição. Como possuímos mais esta última que a primeira, até por nossa juventude, preferimos nos abster do debate. Algo, entretanto, queda claro: o desestudante deve querer se tornar estudante, do contrário, não há diálogo.

Aprender filosofia é se tornar estudante. Como a filosofia perpassa nossas crenças mais elevadas, está permeada em nossas ações, escolhas e destinos, toda pessoa possui uma filosofia pessoal, que podemos chamar, com Hegel, de filosofema. Cada modo de vida comporta seus filosofemas próprios, suas crenças, até mesmo o uso místico da razão. Como transformar filosofemas em filosofias, como ganhar pessoas para a luta civilizacional contra o mito, eis outra ação que exige mais sabedoria, mais ginga de sala de aula do que erudição.

Em outros termos: como pode o general professor transformar seus inimigos em aliados na luta contra o misticismo contemporâneo? Como transformar alunos e desestudantes em estudantes? Como aliar não só a feitura de um uso crítico da razão em mentes neófitas em algo prazeroso, habilitando os sujeitos do processo educativo a se lidarem não só com os gozos do pensamento crítico, mas com a angústia de  viver em um mundo todo por fazer?

Aprender filosofia é se tornar parte de uma longa tradição, de um vasto exército que vem alterando o mundo, junto com outras forças. Como sustentar esse fardo se, por toda parte, os alunos, desestudantes e estudantes encontrarão o chamado para uma vida onde outros pensam por eles e eles só executam. Um outro fascismozinho ordinário: o prazer em ser mandado: non duco, ducor. E não se trata só de um mero chamado: pressões reais, que anulam a capacidade e o gozo filosófico.  

Outra questão para qual, ao não termos resposta, já damos a resposta. Afinal, não estamos escrevendo um manual da vida docente, tanto mais que só exercemos a docência em breves períodos. Mas, nossa ausência de resposta implica que os professores e estudantes criem suas próprias respostas, ou seja, que, ao invés de se deixarem guiar, sejam senhores de seu destino, lidando com as pressões da vida cotidiana, ao mesmo tempo em que seguem firmes na defesa dos interesses da copia philosophorum. Ou seja, é em exercendo a filosofia que se filosofa mais radicalmente. 


Conclusões

A maioria talvez não se deixe seduzir pelo chamado da velha dama, indene aos seu canto e seus traços; a maioria talvez nunca deixe de ser aluno ou desestudante; mas sabemos o que minorias decididas podem fazer, e a história está cheia de exemplo. Compete a essa minoria filosofante atuar na luta contra o mito, na propagação do uso crítico da razão, a fim de alterar a sociedade gerada e mantida pelo mito, que persegue as diferenças e gera desigualdades, em benefício de uma sociedade verdadeiramente democrática, onde ser diferente seja valorizado e os males do pensamento único banidos.

Três questões, uma resposta: O que faz o filósofo quando seu ofício é ser professor de filosofia?; ele faz a guerra; o que significa ensinar filosofia?; fazer a guerra; o que significa aprender filosofia? Entrar em guerra. 


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