segunda-feira, 31 de julho de 2023

O conceito de filosofia da guerra

 O conceito de filosofia da guerra

Felipe Luiz

UNESP-Marília

2015


Nosso objetivo é elaborar um pensamento que seja uma arma de guerra, intentando permitir-nos acabar com o governo em beneficio do autogoverno. Para tanto, é mister descobrir de que há governo, de que se diz que há governo e também como se governa. Tradicionalmente se aponta que há governo de um estado, quer dizer, de um conjunto de instituições e leis, mas, mais recentemente, pesquisas alargam a noção de governo, para nele incluir também outras formas de condução de condutas. Assim, para além de entender o governo como mero ato de coação, também seriam pensáveis enquanto formas de governo diferentes formas de condução de condutas e estabelecimento de sentido.


Governar seria, neste acepção, estrategiar, quer dizer, enquadrar o vir-a-ser de certo objeto ao constituí-lo. Ora, sendo nosso fito precisamente elaborar um pensamento máquina-de-guerra contra as formas de governo, ser-nos-ia forçoso analisar de saída as formas mais gerais de enquadramento, na medida em que as estratégias menos gerais estão inclusas nas que são as mais gerais, ou, por assim dizer, a relação entre estratégia e tática é de determinação dinâmica. Quais os enquadramentos os mais gerais? — a filosofia, a religião, a poesia, a história; neste rol de disciplinas, sem dúvida a filosofia tem a primazia, posto que é nela que os demais vão para se fundar, seja enquanto teologia, seja enquanto poesia, seja enquanto filosofia da história.


Portanto, afirmamos que a filosofia é a estratégia suprema, ela é técnica de totalidade, intenta tomar de assalto o próprio ser e, seu surgimento, é já marca da dominação. O fato de sob o guarda-chuva do nome distintos pensamentos, muitas vezes contraditórios, se abrigarem, poderia levar muitos a querer refutar este ponto; ora, o caráter aporético da filosofia ou, por assim dizer, dela surgir de uma incompreensão do estatuto da linguagem talvez indique exatamente o contrário: que a filosofia é uma metaestratégia, e que diferentes filosofias e disciplinas seriam estratégias tributárias ou, por assim dizer, vias diferentes para um objetivo similar, segundo a resposta que se dê ao problema. As dizimas filosóficas seria, assim, não a estrada sem saída, mas o solo do qual ela brotaria.


Entender qual seria este objetivo, ou, de outro modo, a que intentaria a filosofia, implica traçar sua história, ou seja, entender as condições de surgimento da filosofia, na Grécia. A filosofia, quer dizer, esta forma de grega de pensamento — posto que variadas outras civilizações formularam princípios basilares similares aos filosóficos, ou seja, metaestratégicos. A filosofia é pensamento de dominação, seja porque surge já pela existência de uma dominação (de tribos sobre outras, de ociosos sobre escravos, etc.) seja porque coloca estes elementos de enquandramento de sentido no objeto ao constituí-lo. 


Há, de um lado, uma tática — a ciência, ou seja, por assim dizer, ministrar os entes para dos entes ser ministro. Há outra — enquadramentos lógico-ontológicos dos quais se extraíram princípios reguladores de modos de vida, quer dizer, ético-políticos, ou seja, modos de vida da necessidade. Por fim, ainda outro, relativo mais propriamente à organização do modo de vida a ser regulado: afinal de contas, o liberalismo não está contido no tratado Da Interpretação? Não foi Porfírio o primeiro a formulá-lo? Na foi Abelardo e a disputatio que lhe determinaram o vir-a-ser na medida em que aconteceram? 


  • então, o capitalismo não seria um universal, mas uma estratégia, a forma de dominação especifica de um povo sobre os demais; daí também que não haja crise, mas recuo ou avanço, na medida em que acontece. Daí as razões do subdesenvolvimento filosófico da terra brasilis: a colônia não pode estrategiar; é só tático, só administrar (por isso as idéias de um obscuro professor de província grassam na província além-mar). Daí que sejamos colonizados, e Fanon já demonstra o papel da violência teórica na dominação. Daí também que nos momentos onde a questão do desenvolvimento nacional se põe, o movimento pela filosofia brasileira tome corpo; por isso há de ser filosofia terra-a-terra e ter de ser pensada precisamente agora; daí que tenha de ter havido por tanto tempo uma acumulação primitiva de capital filosófico: para que se tornassem possíveis os investimentos. Por isso também, quis o conluio das forças, que uma das formas da filosofia brasileira seja esta forma plebéia, esta aqui mesma, de pensamento: porque tem de ser na colônia, e nesta colônia da miscigenação, que o mundo novo se expresse: soa a hora da civilização brasileira —


Que a filosofia possa ser pensada como estratégia, isto depende de Kant. Em Kant, a pergunta pelas condições, a fórmula da autonomia. Com Kant aparece a questão da dominação, quer dizer, a questão geográfica, porque uma resistência tem ser sobretudo geografia, visto que se é histórica, liga-se à consciência, logo ao instante — portanto, trata-se de um problema de governo, quer dizer, de como constituir uma consciência-a-governar. 


No pós-Kant, há uma reorientação: como neutralizar seu explosivo poder geográfico? De um lado, o domínio tático avançava: a ciência, o estado e o capitalismo modernos. Kant é neutralizado pelas formas de metafísica da história: da ciência, da consciência, da economia política, da vida, do dizível e do ser, por fim. Todas, anunciando o fim da filosofia, tinham como objetivo impedir novas estratégias; o crescendum de abrangência é exatamente isto: como dominar Kant? A tática adonou-se da estratégia, no fim das contas: a filosofia é estati-privatizada, e aparece a história da filosofia: a dominação pensa se eternizar, ao instaurar o meramente tático.


Mas houve Foucault, o qual torna possível que se diga que o mundo não é nem a totalidade das coisas nem dos fatos, mas das estratégias. De um lado, ele percebeu a “falha” heraclítico-anaxagórica: a elisão do discurso, isto é, não há a verdade do objeto, posto que a verdade é um nome, isto é, autorreferente; ao mesmo tempo, Foucault é comunista, no sentido de Kropotkin: o sentido é social. Ele entrevê que para perceber a formação das estratégias é necessário conceber o mundo como espaço de imanência contigente, espaço este composto de campos recortáveis, traçáveis, criáveis . Ele formula um método filosófico, a genealogia, a qual nos permite ter vertigem, como diz o professor Bruni, quer dizer, estranhar, maravilhar-se — então a história deixa de ser um problema de consciência e sua formação; mas um problema de forças e de sua correlação; e a questão política já não é o governo e sua condução, mas o corpo e sua organização — tal porque a consciência é um corpo que se sente. A genealogia ademais é o método que permite a organização da periferia. 


Contudo, há limites claros de Foucault, porque ele contenta-se em mostrar a formação das estratégias, deixando para cada qual a tarefa de fazer o que bem quiser com a demonstração da estratégia.


Para nós trata-se de elaborar a formação desta metaestratégia de governo de totalidade — é a filosofia, a qual serve, como se vê, antes de mais nada para fazer a guerra. Fazendo emergir a formação das distintas estratégias, entenderemos como o mundo veio-a-ser o que veio-a-ser. E assim, nos será possível precisar: 1. Análise do terreno: Como a metaestratégica filosófica se constituiu historicamente em detrimento de tantas outras metaestratégias — para dizer de outro modo, trata-se de levantar o que Aristóteles sussurava nos ouvidos de Alexandre; 2. Análise do inimigo:  qual o objetivo da metaestratégia — a maquinidade, quer dizer, o aparecimento das condições para o controle completo do ser. 3. A guerrilha: contraestratégia — chamemo-la de anarquismo, ou seja, o método para a anarquia — a fim de dobrar a tessitura do devir no sentido do autogoverno? 

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