A relação da matemática (ou seriam matemáticas?) com a filosofia é bastante antiga, remontando a tempos imemoriais, dos quais nos restam senão pistas e fragmentos. Se a filosofia surge com o maravilhamento ou admiração, como pensavam Platão e Aristóteles, a matemática surgiu da filosofia. Já no caso de que a filosofia seja a reflexão extraordinária sobre o extraordinário, como propugnou Heidegger, então as duas disciplinas estão separadas. Ao gosto do freguês escolher? Talvez..
Diz-se que na entrada dos jardins de Academos, onde Platão ensinava, estava escrito: não entre aqui quem não for geômetra. Com isso ele dava informações sobre o tipo de ensino que ali seria ministrado e o que os neófitos poderiam esperar. Matemática e a filosofia partilham características, é fato ou, ao menos, partilhavam. Ambas almejam (ou almejavam) proferir juízos apodíticos, necessários e universais, sempre válidos, sempre verdadeiros, aplicáveis a todos os pontos do universo. Talvez essa característica comum tenha feito com que Platão se enamorasse da ciência dos números.
É de se notar, entretanto, que em boa parte dos diálogos platônicos os interlocutores de Sócrates, mestre de Platão e porta-voz deste, sejam os sofistas. Assim, geralmente Sócrates, através de um fino uso de paradoxos e questionamentos, mostra como os sofistas, pagos para ensinar a juventude grega temas do que viríamos a chamar ensino superior e, especialmente, retórica, na verdade não sabiam nada.
As escaramuças de um experimentado Sócrates contra alguns sofistas célebres, como um Trasímaco, Górgias ou Protágoras, em discussões talvez imaginadas por Platão, talvez realmente ocorridas, mas certamente embelezadas pelos dotes literários do escritor, não se resumem, no entanto, a bagatelas. Sobre elas paira um debate o qual se prolonga até os dias de hoje. Vejamos. Como se sabe, Protágoras, retratado na literatura como o mais sábio dos sofistas, tinha como principal lição a ideia de que o “homem é a medida de todas as coisas”. Ou seja, as coisas são relativas aos seres humanos, são deles dependentes. Valores que têm orientado a civilização, ao menos aquela ocidental, da qual nós, brasileiros, estamos na franja, como verdade, justiça, igualdade etc., são relativizados. Ao invés de um conceito de justiça, como os tantos que por aí há, Trasímaco, na República, oferece a noção de que a justiça é aquilo que convém ao mais forte, e se contrapõe, destarte, à própria noção que Sócrates oferece no final do livro, uma noção omnicompreensiva e positiva, realista, não relativista.
Platão, ao contrário dos sofistas, em alguns textos nos oferece um mundo todo ordenado, governado por princípios universais, apenas acessíveis através de um esforço mental. A ideia que preside o real, nos diz Platão, é o Bem, da qual todas as existências são dependentes. Platão é um realista e, como tal, um universalista. Trasímaco e Protágoras são relativistas.
Lembremos de Foucault, em A ordem do discurso, onde trata daquilo que ele chama de vontade de verdade, uma variação nietzscheana. Nietzsche se questiona, em Sobre a verdade e a mentira em um sentido extramoral, sobre o que teria levado esse animal que promete a se aficcionar com a busca pela verdade. O primeiro parágrafo do texto é deveras conhecido, talvez por seu tom poético: "em um universo sem fim de estrelas cintilantes animais inteligentes inventaram o conhecimento". Nietzsche descentra toda a história da filosofia e, com ela, as molas propulsoras da razão ocidental ou, como querem Adorno e Horkheimer, do Esclarecimento. Mas o faz relativizando, colocando em perspectiva, uma de suas ideias chave, as noções as mais caras ao conjunto da filosofia. Retornando a Foucault, este aponta, em um tema nietzscheano, que a vontade de verdade teria surgido com Platão, o qual, ao excluir os sofistas, impunha a busca pela verdade como valor maior.
Muitos nos perguntaram, quando militávamos no movimento estudantil, qual era nosso programa. Confesso que a pergunta me constrangeu por muito tempo. Enquanto os marxistas e até mesmo outros anarquistas contavam com centenas de programas e ideias feitas, eu, que me concentrara no estudo da psiquiatria em um viés foucaultiano, não possuia respostas prontas. Eram sempre programas de ocasião, mais reativos do que positivos. Isso se dava porque, enquanto Marx, Lenin, Bakunin e Malatesta propõem programas, Foucault se limita a descrever as forças em luta, somente respondendo à pergunta o que fazer? em ocasiões muito pontuais. No dizer dele próprio, Foucault é um positivista feliz.
Os marxistas possuem uma ontologia e uma tal que realista: acreditam que existe um mundo objetivo, governado por leis objetivas e das quais podemos extrair conhecimento objetivo. Já para Foucault, partindo de Nietzsche, não se trata de elaborar uma ontologia em sentido estrito, mas de questionar os valores, de observá-los de soslaio. A verdade, nesta tradição, é um valor, não uma propriedade das coisas. A verdade é, diz Foucault citando Nietzsche, "um erro que tem a seu favor o fato de ainda não ter sido refutada".
Foucault elabora, assim, uma ontologia política do saber, ao situar este em uma correlação de forças e mostrar como, na origem de todo saber, quer dizer, de toda valoração, há uma vontade de potência. Nietzsche puro. Assim, seus livros tratam sempre de partir do pressuposto de que não há universal, de que este é mero nome, e questionar antes as práticas que originam esses valores, do que se interrogar sobre a veracidade ou falsidade dos mesmos. Em um de seus últimos textos, Foucault afirma que elaborou uma redução nominalista da filosofia, ou seja, em um ambiente marcado pela fenomenologia e o marxismo, duas tendências fortemente iluministas e realistas, ele foi estocar com uma lança de caos, vociferando o que muitos tomam como antiiluminismo e nominalismo.
Um exemplo pode ser encontrado na ideia de a priori. Kant a introduziu a fim de pensar justamente os conhecimentos que se mostravam como apodíticos, ao menos segundo ele pensava. Assim, a matemática, a física ou a lógica produziriam saber universalmente válido, que independe de qualquer experiência para serem provados como verdadeiros. Foucault pensa o contrário; enquanto demolidor de uma civilização, ele toma que o a priori é histórico, ou seja, que esse tipo de conhecimento ordenador da experiência varia com o tempo e com o espaço.
Sejamos claros: Foucault é um relativista. E não só ele, como boa parte da experiência intelectual contemporãnea o é, talvez influenciada por Einstein e Heisenberg, ou ainda pelas provas de um Gödel ou pela antrpologia de Levi-Strauss. Esse é o caldo cultural de Foucault.
Mas há um porém. Se a prova do pudim é comê-lo, como explicar que essa verdade, que seria relativa à vontade de potência e que as ciências duras dizem se aproximar ou formulam em leis, possa ter contribuído para alterar tão radicalmente o mundo? A noção de dominação parece se ligar àquela de arbitrio, de poder discricionário. Foucault admite que seu alvo foram ciências frágeis, como a psiquiatria ou a psicologia; mas, e quanto à física ou matemática, que nos brindam com resultados palpáveis? Como explicar a ciência moderna?
Em outros termos, se a ciência está ligada a um projeto de poder, como pode ela conhecer o mundo objetivamente? Afinal, se ela o conhece, é porque, ao contrário do que diz Foucault, o saber não violenta as coisas e nem há uma separação brutal entre sujeito e objeto, tampouco o saber seria uma invenção: haveria um fio de continuidade que liga os juízos com o mundo, não uma vontade de saber, mas uma pertinência e adequação entre aparato cognitivo e coisas a conhecer.
Para Foucault, tanto o sujeito quanto o objeto não são dados naturais, mas constituídos historicamente através de variegadas práticas, ao passo que estas estão imbricadas em relações de poder, ou seja, exteriores ao conhecimento. Assim, é como se o conhecimento fosse dependente de um extra-conhecimento, de um conteúdo irracional ou pré-reflexivo que o determina.
Na luta entre aplicações que parecem indicar um conhecimento do mundo e teorias que relativizam a historicidade do mundo, como ficamos nós, meros estudiosos? Como resolver a charada? Como se orientar, como diz Porchat, no conflito das filosofias? Uma saída hegealiana, que nega a via niilista foucaultiana? Ou simplesmente nos aproximar da história das ciências, a qual, ela mesma, termina por relativizar a mesma? Ou, quem sabe, propor uma trégua, uma espécie de transcendental histórico, como quis Foucault?
Questões nas quais estamos trabalhando.
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