Do meu livro, LUIZ, Felipe. O conceito de estratégia em Michel Foucault. S.l.: Clube de autores, 2024, pp. 268-320
Disponível para compra em: https://clubedeautores.com.br/livro/o-conceito-de-estrategia-em-michel-foucault
Uma
outra tradição francesa: sobre a estratégia como método
Felipe
Luiz
Doutorando
no PPGFIL-UFSCAR
gumapoldo51@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-6446-0810
Resumo:
O objetivo do presente trabalho é investigar a ideia da estratégia
como um método no pensamento de Michel Foucault tal qual exposta em
um texto de 1978, mas publicado somente há alguns anos. Empreendemos
discussões metodológicas com o pensamento foucaultiano, ao mesmo
tempo que, na sequência de outros trabalhos, buscamos aproximá-lo
de André Beaufre, contemporâneo seu e pensador francês da
estratégia. Dotados de tal aparato, elaboramos uma livre
interpretação da estratégia como método e propomos algum
vocabulário filosófico novo a fim de coadunar com as análises
prévias.
Palavras-chave:
Michel Foucault. André Beaufre. Estratégia. Estrategiosofia.
Método. Estruturalismo
Another
French tradition: about strategy as a method
Abstract:
The aim of the present paper é to investigate the idea of strategy
as a method in Michel Foucault’s thought as exposed in a text from
1978, but only recently published. We make methodological discussions
with Foucault thought, and, at the same time, in a continuation of
other works, we try to approach him with André Beaufre, his
contemporary and French thinker of strategy. With that apparatus, we
develop a free interpretation of strategy as a method, and we propose
some new philosophical vocabulary to cope with the previous analysis.
Keywords:
Michel
Foucault. Andreé Beaufre. Strategy. Strategiosophy.
Method, Structuralism.
De
dois se compõe
Esta
cidade a meu ver:
Um
furtar, outro foder
(Gregório
de Mattos)
Introdução
A
citação que abre nosso artigo parece-nos que soará polêmica para
alguns, até mesmo ofensiva. Mas, aos olhos despreparados, ela soa
ofensiva pelos motivos equivocados, a nosso ver: a palavra de baixo
calão que ela contém é causa da fúria. Em fato, o Boca do
Inferno, como ficou apodado Gregório de Mattos Guerra, quando
escreveu as linhas acimas, estava tratando de Salvador, então
capital do Brasil, uma dentre tantas possessões além-mar de
Portugal, em um período em que alguns poucos países da Europa
contavam com imensos impérios coloniais, lucrativos e, quase sempre,
submissos. Gregório é conhecido por sua verve ácida, por vezes
satírica, embora sua fortuna crítica, como assinala Wisnik, não
seja das melhores. Os versos assinalados podem muito bem ser
aplicados não só ao Brasil colônia e à sua autopercepção na
verve do poeta, mas ao modo pelo qual boa parte da sociedade
brasileira se enxerga. Claro, quando de então, pouco havia para se
orgulhar. Viviam-se tempos em que o Brasil era uma sociedade racista,
calcada em privilégios, onde uma elite, enriquecida através do
trabalho precário de muitos, impunha os rumos daquela formação
social às muitas almas empobrecidas, a corrupção grassava, os
homens e mulheres negros eram especiais vítimas da sanha do Estado,
indígenas eram assassinados e boa parte do destino do país estava
nas mãos de potências estrangeiras.
Que
nos perdoem a utilização de categorias posteriores e até mesmo
anacrônicas, as quais descarregamos sobre as costas de um Gregório
de Mattos, mas há algo de terrivelmente contemporâneo no quadro que
acima pintamos, como se os traços constitutivos de nossa sociedade
permanecessem com o tempo, como se, no fundo, tudo mudasse, mas
continuasse o mesmo. Triste Brasil, não só Bahia: ó quão
dessemelhante? Não, Gregório: as permanências são mais poderosas,
o Brasil se parece com o Brasil ao longo da história. Sopram-se as
areias do tempo, mas o gigante não tem pés de barro. É estável,
constante.
Assim
também que a ninguém surpreenda que, nos séculos sucessivos, a
autoimagem do país tenha permanecido, para boa parte de nossos
concidadãos, idêntica. Veja-se o que um Sylvio Romero, autor tão
preocupado em recuperar e preservar a memória popular, disse da
filosofia no Brasil, já no século XIX:
Na história do desenvolvimento
espiritual no Brasil há uma lacuna a considerar: a falta de seriação
nas ideias, a ausência de uma genética. Por outros termos, entre
nós, um autor não procede do outro, um sistema não é uma
consequência do que o precedeu. É uma verdade afirmar que não
temos tradições intelectuais no rigoroso sentido. Na história
espiritual das nações cultas, cada fenômeno [sic] de hoje é um
último elo de uma cadeia, a evolução é uma lei: seja a Alemanha o
exemplo (Romero, 1878, p. 35)
Para
um crítico do calibre de Romero, portanto, faltariam tradições no
Brasil, como se as ideias fossem descoladas de seu meio social, como
se não nos lêssemos, como se, afinal, a filosofia vivesse em sua
torre de marfim, enquanto o chicote estrala no lombo dos mortais
sublunares.
Um
diagnóstico com a mesma tonalidade crítica e pessimista é
fornecido no século seguinte por Leonel Franca, verdadeiro herói
dos conservadores católicos hodiernos nesta terra
brasilis.
Veja-se:
O que para logo se nota na
generalidade dos escritos filosóficos brasileiros é a falta de
originalidade. Não podemos ainda pleitear, como as grandes nações
civilizadas, certa autonomia de pensamento. De novo e de nosso, bem
pouco e bem mesquinho é o que podemos reclamar. Refletimos, mais ou
menos passivamente, ideias alheias; navegamos lentamente e a reboque
nas grandes esteiras abertas por outros navegantes; reproduzimos, na
arena filosófica, lutas estranhas e nelas combatemos com armas
emprestadas. Não há, por isso, entre os pensadores que aqui se
sucedem, continuação lógica de ideias nem filiação genética de
sistemas. Não temos escolas, não temos iniciadores que houvessem
suscitado, ou por sequência de evolução ou por contraste de
reação, continuadores ou opositores" (Franca, 1962, p. 262)
De
uma forma ainda mais vigorosa que Sylvio, o qual enxergava mais
aquilo que Cruz Costa (1967) chamava de filoneismo
e transoceanismo,
Franca fustiga os filósofos da terrinha como meras máquinas
fotocopiadoras de ideias alheias, como simples reprodutores de
pensamentos forâneos e indiferentes às noções capilares a
qualquer escritor que se pretenda como tal: a originalidade. Franca,
como se sabe, era ele mesmo muito mais um divulgador de ideias
alienígenas, ademais extemporâneas, posto que tomistas, em um
momento em que o Brasil se esforçava para deixar para trás seu
passado de nação agrário-exportadora e escravista e adentrar no
rol luminoso da modernidade.
Cruz
Costa (1945; 1960; 1967), pouco depois de Franca, exporia um quadro
similar. Para ele, o Brasil, do ponto de vista filosófico, viveria
preso entre duas tendências, praticamente um apolíneo e dionisíaco
tupi: o sertão e o atlântico. De um lado, nossas raízes mais
profundas, de outro, a veia colonizadora, orientada rumo à Europa e,
com sorte, aos EUA. Normalmente, nos vemos carregados pela maré
atlântica e, destarte, esquecemos os problemas da terra, nosso
quinhão o mais próprio. Isto porque somos filoneístas, isto é,
sentimos a intensa necessidade de estarmos conectados às últimas
modas estrangeiras, ao que se passa no local mesmo onde os brilhantes
holofotes das luzes do mainstream
estão
focados. O diagnóstico de Cruz Costa faz lembrar as descrições de
um Lévi-Strauss (1955) sobre o panorama da elite paulistana dos anos
30, toda afrancesada e disposta a abandonar sua veia cabocla em
benefício de um modus
faciendi
europeu, logo provincial, uma vez que, para este escol, havia uma
Entfremdung
em relação a si próprio e sua gênese negra e indígena: nada mais
provinciano que se render às modas da capital por serem da capital.
Marcia
Tíburi (2021) trabalha bem esses temas na contemporaneidade ao
buscar definir o complexo de vira-latas. De modo geral, colônia por
toda sua história escrita, há no Brasil um mal-estar que nos induz
a desprezar a nós mesmos, como se, no fundo, buscássemos a
aprovação do Outro, o qual, por sua vez, nos despreza e nos quer
somente a fim de auferir lucros e dividendos. Tiburi introduz outras
noções, em uma mescla ousada, mas coeva, de disciplinas; assim, a
seu ver, outro complexo, desta vez de Colombo faria sentido para
explicar a mentalidade e, mais do que isso, o páthos
dos nascidos deste lado do imenso oceano. A ideia geral é,
precisamente, a exposta: espécie de Síndrome de Estocolmo de
massas, amamos nossos captores, odiamos aqueles dos quais somos
originários e tentamos deles nos afastar.
No
caso específico da filosofia, isto leva, por exemplo, a filósofos
nacionais de primeira linha, como Ivan Domingues (2017), a desprezar
boa parte da produção genuinamente filosófica da terrinha em
benefício de autores com, no máximo, interesse filosófico (como o
é, no geral, boa parte das produções intelectuais). Assim, em A
filosofia no Brasil,
Domingues opera um instrumental conceitual de cepa mista, mas com
forte componente weberiano e termina por desprezar como tipo-ideal de
intelectual filosófico do período de consolidação da filosofia
brasileira enquanto disciplina universitária um Álvaro Vieira
Pinto, o filósofo do desenvolvimentismo e fortemente ancorado nos
problemas brasileiros, ao mesmo tempo que filósofo de todo o
Terceiro mundo, como demonstrou Jorge Roux (1990) em estudo hoje
clássico.
Assim
como Vieira Pinto vem sendo redescoberto, com edições recentes de
algumas de suas obras, e seu legado reavaliado, também a filosofia
brasileira, disciplina com um papel todo especial em uma formação
social, ao menos segundo o próprio Vieira Pinto, vem passando por um
processo de mais justo aquilatar. Por décadas, Antônio Paim (1987;
1990) foi praticamente voz solitária na defesa e estudo da filosofia
brasileira. Talvez por se tratar de elemento ligado muito de perto a
setores conservadores em um momento de regime de exceção, ou até
mesmo setores francamente reacionários, como Miguel Reale, Reitor da
USP durante a Ditadura, os estudos de Paim encontraram pouco eco na
comunidade filosófica.
Margutti,
em sua recente História
da filosofia do Brasil
(2013), mostra as origens da rusga: os pensadores filosóficos
brasileiros, que um Cruz Costa, medalhão da tradição uspiana,
ainda chamava de filosofantes, com desprezo acentuado, eram
descartados por mal avaliados, considerados, como se viu, filoneístas
ou transoceânicos. A USP exerce enorme influência na vida
intelectual brasileira, embora, no último período, esta ascendência
venha esmaecendo. De todo modo, no campo da filosofia, isto
significou a predominância de um certo modo de fazer filosofia,
especialmente no que tange a um método específico de leitura e
produção de textos filosóficos, cuja história de implantação é
descrita em detalhes justamente por um dos filhos desta escola, no
clássico Departamento
francês de ultramar,
de Paulo Arantes (1994), hoje fora de edição.
O
questionamento a esse modelo de se fazer filosofia não vinha só da
direita liberal ou reacionária, campo onde os estudos de autores
brasileiros grassavam, mas, também, de setores menos comprometidos
com essa polarização ou de setores mais progressistas. Tivemos que
esperar um estrangeiro como Armijo Palácios (1997; 2004), em dois
estudos clássicos e, também, fora de edição, vir nos chamar
atenção para o fato do domínio do método uspiano e seu desprezo
pelos filósofos brasileiros, autorais ou comentadores. Segundo ele,
esse método estaria a impedir a criação de uma autêntica cultura
filosófica e, mesmo, de voos mais altos no campo filosófico nesta
terra onde o branco vestiu o índio e não o contrário, graças à
chuva, como diz Oswald.
O
modus
operandi
uspiano, o estruturalismo francês de Guéroult e Goldschmidt, em
fato privilegia não somente um método de leitura, mas indica os
limites do que pode ser produzido, se trasladando no Brasil em um
eterno comentário de textos clássicos e impedindo a abordagem
autoral de questões filosóficas, ou seja, que não deixemos de
apenas glosar autores já consagrados, todos eles estrangeiros, e não
quaisquer estrangeiros, mas franceses, alemães, italianos e
ingleses, para encarar o trabalho do negativo: refletir e oferecer
soluções, segundo nossas inclinações, temperamento e cultura, aos
grandes problemas ou, até mesmo, explorar novas questões (Palácios,
1997).
O
fato do livro de Arantes (1994) se chamar Departamento
francês de ultramar
é muito significativo. Como se sabe, os habitantes do Hexágono
dividem seu quinhão de terra em departamentos, nossos estados. Como
herança do período colonial, eles possuem departamentos que não
são contíguos à França metropolitana, mas além-Atlântico, como
a Guiana Francesa ou Mayotte. Dissemos com clareza: herança do
período colonial. Ao contrário dos EUA, que fizeram sua revolução
e foram muito ciosos no sentido de se emancipar não só política,
mas econômica, social e culturalmente, ao Brasil somente veio a
independência política, restando todo resto por fazer.
O
objetivo do presente trabalho é apresentar um método alternativo
àquele estruturalista, a partir da interpretação daquilo que
chamamos de outra tradição francesa, com uma mescla de tempero
brasileiro e adaptado aos nossos próprios objetivos. Nesse sentido,
nos situamos em uma tradição francamente brasileira, a antropofagia
modernista, de Oswald et caterva.
Fomos
haurir esse método a partir de uma leitura certamente gauche
de Foucault, mas nem por isso equivocada. Além do mestre do Collége
de France,
fomos beber em outra fonte das mesmas paragens, o General André
Beaufre (1963; 1966), cuja ascendência sobre o pensamento militar
brasileiro é comparável a de Foucault nas humanidades. Por fim,
nosso toque de samba e caipirinha é justamente alguns textos
teóricos das Forças Armadas brasileiras e do próprio Vieira Pinto
(1960ª, 1960b), hoje em melhor lida com seu público leitor. Esse
método se inspira em alguns pensamentos de Foucault e no
desenvolvimento da noção de estratégia que ele opera, bem como da
brilhante exposição de Beaufre sobre tal temática. O chamamos de
estrategiosofia,
nome ao qual já demos outros significados em nossos escritos, mas
que buscamos ressignificar atualmente.
Digno
de nota é que buscamos apresentar os resultados desta pesquisa, a
qual já dura uns bons quinze anos, em congressos e simpósios de
filosofia no Brasil, um dos quais destinado exatamente a debater
método em filosofia, tudo em vão; por explicações diferentes e,
por vezes, mirabolantes, recusou-se nossa exposição. Coincidência
ou, como chama Teixeira, colonialidade e defesa do status
quo?
Quem sabe?
Outra
nota a se fazer é que alguns resultados parciais já foram expostos
em outros textos acadêmicos, a grande maioria publicados, outros a
publicar. Desta forma, não nos repetiremos, mas buscaremos indicar
novos resultados, a partir das leituras e reflexões mais recentes.
Por fim, é mister indicar que estamos a preparar um livro sobre a
temática, de modo que a recepção do presente artigo será
indicativa de mudanças a operar e precisões a serem feitas.
Expostos os acepipes, vamos ao banquete.
O
problema da estratégia na obra de Foucault
Muito
se falou sobre a fase política de Foucault, mas, ao mesmo tempo, nem
todo ainda foi dito, especialmente se levarmos em conta o fato de que
uma parte de sua obra continua a ser publicada no marco dos quarenta
anos do falecimento do autor. Pesquisas prévias de nossa lavra já
apontaram a importância dos motivos guerreiros em seu pensamento,
especialmente de algumas noções e, até mesmo, de um modelo bélico
de análise social. Mas, tal qual dito, algumas destas facetas, por
seu aspecto novidadeiro mesmo, estão sendo discutidos, de modo que o
estabelecimento de uma versão definitiva de determinados conceitos
queda tarefa a ser empreendida. Este não é nosso objetivo no
presente texto. Primeiro, por não sermos nem foucaultianos nem
foucaultistas. Ou, talvez, o somos, mas pelas linhas tortas através
das quais o dictum
popular diz que a mão de deus escreve. Explique-se.
Em
algumas ocasiões, Foucault (1994) expressou que seu desejo, ao
levantar uma miríade de problemáticas e campos de análise, era
fornecer caixas de ferramentas para que os questões fossem
trabalhados, retrabalhados ou modificados por outros pensadores.
Assim, um conceito, um insight,
um viés do dito pensador, tudo isto, enfim, deveria servir não para
que se constituísse uma polícia da verdade foucaultiana, mas, sim,
uma explosão de pesquisas em diferentes domínios. Neste sentido,
tampouco nós seremos os guardiões de uma ortodoxia, aliás
impossível, visto que Foucault altera seus posicionamentos
constantemente, mas intentaremos fazer um uso livre de alguns
conceitos e, assim, pensar problemas tipicamente brasileiros.
Conforme
dito, as alusões bélicas no pensamento do mestre francês
proliferam, especialmente em sete formas distintas: quatro conceitos,
uma lógica de pesquisa, um método e um modelo de análise de uma
formação social. Os conceitos são estratégia,
tática,
dispositivo
e relações
de força;
enquanto a lógica de pesquisa é aquilo que Foucault chama de lógica
da estratégia;
por sua vez, o modelo
de guerra
ou de Nietzsche,
chamado ora de uma, ora de outra forma indistintamente; e, por fim, o
método é o da estratégia,
ao qual Foucault faz rápidas alusões. Guardam em comum o fato de
pertencerem, quase todos, ao período da assim chamada genealogia do
poder, embora tenham raízes e projeções que ultrapassem os limites
dos anos 70, marco temporal de tal abordagem.
Quanto
ao conceito de estratégia, ao qual já dedicamos amplo estudo, basta
que se retenha que Foucault dotou de cinco significados diferentes a
noção, em momentos díspares de sua vida, e que, neste estudo, nos
importa um em particular, fornecido por ele já nos anos finais de
sua curta vida, e que ocorreu, pela primeira vez no estudo sério e
profissional de Dreyfus e Rabinow (1982). Esse conceito é
reproduzido
ipsis litteris
no Vocabulário
Foucault,
de Edgardo Castro (2004), o que já lhe garantiu, por incompletude,
nossa reprovação, uma vez que peca por sinédoque. Nessa definição
de Foucault, o conceito de estratégia exposto é um tal que a pensa
fundamentalmente como um meio
de se lograr vencer uma disputa. A estratégia é, destarte, pensada
como os métodos, as artimanhas, os meandros de uma ação que visa
garantir “soluções vitoriosas” (Foucault, 1982, p. ) e,
notadamente, distinta das finalidades da dita ação.
Sigamos.
A lógica de pesquisa acima referida, lógica da estratégia, é
apresentada por Foucault uma única vez, no curso Nascimento
da biopolítica,
onde, assim, Foucault (2004) faz algumas precisões de método e
explanações concernentes às pesquisas que empreendia no momento.
Como sói ocorrer com o mestre francês, pode-se indagar se se tratou
de mera empolgação do momento, oriunda da tão comum alta
temperatura do debate, ou se, ao contrário, ele tinha algo de maior
monta em mente. A lógica da estratégia é definida em contraposição
à dialética, um vezo na carreira de Foucault, tal como a oposição
á fenomenologia; em uma palavra, sua desconfiança em relação a um
intelectual de primeira grandeza na França d’antanho como Sartre o
era. Para Foucault, tal lógica se constitui no fato dela não buscar
subsumir as diferenças a um nível único mais fundamental, mas de
deixar o diferente vicejar enquanto tal, buscando compreendê-lo,
para somente depois intentar uma ligação entre os diversos campos
de diferença presentes em certo nicho de análise. Ilustremos. Ao
invés de uma certa litania marxista ou de um certo marxismo, que
explica o conjunto da sociedade através de sua redução ao estrato
econômico de dita formação, o qual, nas palavras de Althusser,
sobredetermina os demais níveis, Foucault intenta escolher um campo
de análise, digamos, a prisão, e situá-lo em uma correlação de
forças, pesquisar os meios
através dos quais esse recorte se processa bem como sua história
para somente então encetar uma abordagem de pesquisa transversal, ao
buscar relacioná-lo com outros campo de dada formação. Em outros
termos, enquanto para o marxismo se trata de elaborar uma
suprassunção ― e, no esquema hegeliano, toda suprassunção é
uma subsunção ―, para Foucault se trata de fixar séries e
somente então estabelecer um quadro, isto é, séries de séries. Em
nossa interpretação, pois, essa lógica da estratégia domina
praticamente toda a produção de Foucault e pode ser situada nestes
marcos, especialmente a partir de 1969, ano em que ele publica A
arqueologia do saber
e o conceito de estratégia passa a ocorrer em seus escritos com um
ímpeto mais profundo
Quanto
ao modelo de guerra, Foucault dedicou-lhe um curso todo no Collége
de France.
Trata-se, claro, de Em
defesa da sociedade,
onde o francês faz uma espécie de balanço de seu trajeto,
inclusive de seu método de ocasião, a genealogia, e busca preencher
algumas lacunas e precisar certas abordagens e parâmetros. Destarte,
Foucault (1997) busca elaborar uma espécie de genealogia de uma
perspectiva dos fatos socais desde um ponto de vista bélico. Para
sermos claro, tratava-se de localizar quando a guerra deixou de ser
mero fenômeno de luta entre duas unidades políticas para se tornar
um princípio de análise social. Este curso destaca-se ainda pois,
nele, Foucault introduz a noção de biopolítica, que teria grande
fortuna crítica em sua e em outras penas.
Por
fim, nosso objetivo neste texto: a ideia de estratégia como método.
Tradicionalmente, se considera que Foucault fez uso de dois métodos
sobretudo, a arqueologia, exposta em um livro próprio e de cepa
kantiana, e a genealogia, cuja genética é também alemã, mas,
desta vez, nietzscheana. Ora, que espanto não deve ter causado ao
auditório quando Foucault (2015) em uma conferência diante da
Sociedade Francesa de Filosofia pareceu introduzir um terceiro
método, o da estratégia. Em fato, a conferência tratava da
conceitualização das Luzes, embora Foucault, a princípio, como
destaca Lorenzini na recente primeira edição do texto, se recusasse
a dar um título como este, em clara alusão ao opúsculo kantiano, o
qual o próprio Foucault ajudou a recuperar do olvido e dotar-lhe de
celebridade. A conferência, de 1978 (mas somente publicada em meados
dos anos 2010) faz, ela também, um balanço do percurso
foucaultiano, especialmente nos entremeios do texto, onde o mestre du
Paname
expõe três conjuntos críticos, focados no método, este tema tão
central no pensamento moderno, ao menos desde que um outro francês
ainda mais célebre publicou um famoso discurso sobre o mesmo. Ora,
Foucault é cronológico: começa com a arqueologia, passa pela
genealogia e, subitamente trata da estratégia enquanto um domínio
próprio de objetos, uma forma de abordá-los. Mas a menção é
breve e desconhecemos outra ocorrência do termo nessa acepção na
obra de Foucault.
Não
estamos só ao apontar que isso poderia ser índice de um terceiro
método no pensamento do autor. Comentadores de renome, como
Veiga-Netto (2007), pensam da mesma forma, ao dividir a obra de
Foucault segundo uma abordagem ontológica e pensar que o último
quinhão de reflexão, que ele chama de ser-consigo,
distinto do ser-saber
e do ser-poder,
se valeria do tal método da estratégia. Mas as lacônicas
referências ao ponto por parte de Foucault deixam abertas as portas
para questionamentos. Ele é confuso, por vezes contraditório,
certamente não explícito o suficiente, como o fora em relação à
arqueologia e à genealogia.
Mas,
pensamos, conceber a estratégia como um método é condizente com
algumas definições hodiernas da Estratégia (com E maiúsculo posto
indicar um ramo de saber). Pensamos e já o dissemos em trabalhos
precedentes que as definições foucaultianas se adequam àquelas do
General André Beaufre (1963). Como já abordamos parte da temática
em outros trabalhos e estamos a preparar um texto de maior fôlego
sobre o tema, indicaremos a seguir o que viria a ser o conceito de
estratégia de Beaufre e das Forças Armadas brasileiras e,
posteriormente, veremos quais relações se pode traçar com a
filosofia, na continuidade de produções prévias de nossa lavra.
Estratégia
e filosofia dos meios
Beaufre
não é um pensador muito conhecido fora dos meios militares e, até
mesmo nestes, padece de certo olvido. Creveld (200), por exemplo, ou
Luttwak (2001), pensadores contemporâneos da Estratégia, ou o citam
pouco ou nem mesmo o fazem. Mas eles são de matriz estadunidense e
bem se sabe que, dado o gigantismo do país e sua tendência a se
autocentrar como umbigo deste planeta, tendem a criar uma tradição
de comentários mútuos, ignorando, por vezes, autores de outras
origens em benefício de seus concidadãos.
Fenômeno
inverso ocorre no Brasil. Como já se disse, consumada a
Independência, trocamos Portugal pela França como farol de nossa
mui humilde, mas plena de potencial, civilização. Na outrora Gália
fomos haurir muitas de nossas fontes, tanto na filosofia, como o
domínio espiritualista, depois positivista testemunha, e essa
influência alcançou o arco das ideias militares. Assim, em alguns
materiais de preparação de seus futuros alto chefes, as FA traçam
um quadro da história da Estratégia como possuindo seus ápices em
quatro autores distintos: Clausewitz (2003), Liddel Hart (1991), Mao
Tsé Tung (por exemplo, 1968) e, no píncaro, Beaufre (1963). Este
seria como o fecho de uma tradição, não só por ser a conclusão
de um debate que envolve os demais pensadores apontados, como ademais
pela justeza de suas ideias (ESCOLA DE COMANDO E ESTADO-MAIOR DO
EXÉRCITO, 2011).
Há
algo de verdadeiro nesse panorama. Os autores arrolados compõem um
escol de pensadores militares e tomaram parte em grandes conflitos;
suas reflexões são obras-primas do pensamento estratégico, ainda
que sejam celebrados de formas distintas, como já se notou. O
conceituar de Mao, por exemplo, experiencia um verdadeiro interesse
renovado em suas ideias, pela pujança do Império do Meio, ao passo
que a França, já mais impotente que potência, engolida pelo leque
de alianças dos EUA que foi, vê sua ascendência no campo dos
estudos militares diminuída, se pensarmos que um Jomini, por
exemplo, suíço mas de carreira e língua francesas, já foi até
mesmo o carro-chefe do pensamento militar em muitos países,
inclusive nos próprios EUA então nascentes (Paret, 1987).
Fato
é que, malgrado sua posição não seja comparável àquela de
outrora, a França ainda exerce profunda atração intelectual sobre
o Brasil, ainda que esteja perdendo espaço, como nota Domingues
(2017). Beaufre, contudo, é pensador original de primeira ordem e
oferece saídas interessantes para os nós górdios da Estratégia
tal qual ela se desenhava em seu tempo de vida. Seu pensamento
estratégico está exposto em variados livros, mas uma trilogia se
salienta, seja por condensar sua exposição, seja pelo fato de os
livros dialogarem entre si. Introdução
à estratégia
(com edição recente e tradução coeva para o português
disponíveis), Dissuasão
e estratégia
e Estratégia
da ação.
Tríptico de verve, escritos em um francês tão claro quanto são
profundos seus pensamentos, é sobre algumas dessas obras que
volveremos.
Na
Introdução
(Beaufre, 1963) o prefaciador, o próprio Liddel Hart, que Beaufre
combate no livro, argumenta que a despretensão do título é
enganosa. Ao invés de se tratar de modesta introdução, o livro
contém um tratado de estratégia, ao abordar as temáticas
principais do tema. O coronel inglês tem razão: até mesmo uma
breve história da estratégia é escrita e os grandes nomes do
passado, que sobreviveram à passagem do tempo, são recuperados nas
proposições de Beaufre. Ele pode elaborar uma espécie de
suprassunção das demais correntes e autores (e o termo suprassunção
não é vão, uma vez que dialoga com o frequente e importante uso
que o general francês faz do termo dialética) justamente por seu
conceito de estratégia.
Como
apontado em outros trabalhos oriundos de nossa pena, Clausewitz
(2003) propõe um tipo de estratégia como a correta, a partir de
suas experiências nas guerras napoleônicas e do diálogo
estabelecido com outros pensadores militares de seu tempo. Liddel
Hart (1991) procede da mesma forma, alcançando, evidentemente,
outros resultados; mas ele ainda pensa que há uma
estratégia correta. Mao procede da mesma forma e seu pensamento
influenciou variadas matizes de guerrilha e movimentos populares: há
um jeito de se fazer guerrilha e derrubar o domínio da burguesia; o
resto, as demais proposições ― e são muitas, como se pode ver em
um texto influente como Revolução
na revolução,
de Debray (1967) ― são errôneas. Beaufre inova ao pensar que a
estratégia não é um modelo que se aplica mecanicamente. Ao
contrário, a estratégia é um método de pensamento, que deve
considerar as circunstâncias, os meios de que dispomos e as
finalidades almejadas, a fim de ser bem-sucedido nosso esforço.
Outra inovação de Beaufre, na esteira, desta vez, de Liddel Hart, é
tomar que a estratégia não é redutível ao seu aspecto militar.
Mais ampla, ela abarca outros níveis do real, e o strategos
deve saber conjugar os distintos planos de ação, como diplomático
ou econômico, a fim de lograr seus resultados. A estratégia é um
meio, ela é a ciência que viabiliza os resultados colocados pela
política.
Beaufre
termina o primeiro capítulo da Introdução
com as seguintes palavras:
Mas a estratégia não é senão
um meio. A definição das finalidades que ela deve procurar alcançar
é do domínio da política e ela trata essencialmente da filosofia
que desejamos ver dominar. O destino do homem depende da filosofia
que ele escolherá e da estratégia através da qual ele buscará
fazê-la prevalecer (Beaufre, 1965, p. 44)
Anteriormente
ele havia oferecido outros conceitos de estratégia, como arte de
lograr impor sua posição em uma dialética de vontades. Mas o que
mais importa que retenhamos é sua noção da estratégia como um
meio. Essa posição implica algumas consequências: a estratégia é
definida como a arte ou ciência dos meios, enquanto os fins são
postos pela política, e a política deriva de uma filosofia, a qual
medita sobre a mesma nos níveis os mais elevados. Reflitamos sobre
estes pontos.
Meira
Mattos (1986), general do Exército brasileiro, parece coadunar com a
posição de Beaufre, quando este aponta que há uma espécie de
hierarquia entre os campos de saber. Uma formação social possui
valores e estes valores estão coadunados com alguma corrente
filosófica. Por exemplo, em um documento da Escola Superior de
Guerra, think
tank
brasileiro voltado à análise e à proposição de saídas para as
questões nacionais, sugere-se que os valores, as finalidades do
Brasil enquanto formação são, precisamente, Liberdade, Igualdade e
Fraternidade. Esses são objetivos de Estado, aos quais, talvez,
nossos pensadores militares admitam que se adicione meia dúzia de
artigos da Constituição. Em um nível inferior, há os objetivos de
Governo, mais mutáveis, mas que devem se adequar àqueles de Estado
(Escola Superior de Guerra, 2019). O papel da Estratégia é definir
as maneiras através dos quais se operam esses meios (Estado Maior do
Exército Brasileiro, 2001). Podemos, pois, afirmar, como já o
fizemos em outros trabalhos, seguindo Beaufre e Meira Mattos, que a
filosofia (secundada por valores religiosos talvez) pensa os
objetivos de Estado, ao passo que a Ciência Política trabalha no
nível mais restritos de compreender as forças em disputa, as
origens dos partidos, como se portarão etc. A Estratégia, a seu
turno, é operacional: ela investiga quais condições devem ser
preenchidas, quais ações tomadas e quais meios adotados a fim de
superar os óbices á concretização de nossa vontade, de forma a
que esta se realize (Estado Maior do Exército Brasileiro, 2001;
Beaufre, 1963, 1966; Meira Mattos, 1986).
Esse
papel que interpretamos Beaufre conceder à filosofia pode ser
aproximado de variados autores, como Gramsci e suas reflexões ao
papel do intelectual na construção e manutenção da hegemonia de
uma classe sobre as demais (Portelli, 1973). Por ora, nos
contentaremos em salientar o vínculo que une o pensamento de Beaufre
e de seu discípulo brasileiro Meira Mattos com a função arrolada
por Vieira Pinto, insigne filósofo do desenvolvimentismo,
intelectual de ponta do ISEB, do qual foi diretor, instituição de
triste fim (fechada que foi pela força das baionetas logo nos
primeiros dias do golpe cívico-militar de 1964), para a filosofia.
Em seu clássico, Ideologia
e desenvolvimento nacional
(1960) Vieira Pinto indica a filosofia como a responsável por
formular no nível mais abstrato não somente uma axiologia, como,
ademais, uma metodologia que balize as demais ciências sociais em
seu fazer. A filosofia, assim, ganha poderes inauditos e se eleva ao
nível de mais elevado interesse frente à aspirações de um país.
Mas, ela lidaria com fins, com objetivos, não com meios. Este seriam
do âmbito das demais ciências; Vieira Pinto cita História e
Sociologia, mas podemos acrescentar a Estratégia sem dúvidas. Vê-se
como os pensamentos coadunam: a filosofia aparece como uma espécie
de estratégia, se pensarmos esta como a colocação de meios para
determinados objetivos.
Então,
filosofia pensaria os fins, ao passo que a estratégia lida com os
meios. Constata-se que essa lição de Beaufre coaduna também com a
posição de Foucault (1982), o qual pensa a estratégia, ao menos em
uma das definições que dela oferece, como os meios para se obter
uma solução vitoriosa. Então, o método da estratégia de Foucault
trataria dos meios? E qual seria a finalidade apontada por Foucault
em seus escritos? E a genealogia e a arqueologia, seus outros dois
métodos, qual seria seu papel?
Ainda
Beaufre: os três níveis da estratégia
Não
abordaremos aqui um dos livros do tríptico beaufreano, Dissuasão
e estratégia.
Mas há um outro livro de sua autoria que talvez nos auxilie na
resolução dessas questões. Trata-se de Estratégia
da ação.
Beaufre (1966) divide neste livro, o qual encerra uma série, que na
Introdução
ele forneceu um quadro geral do tema. Em Dissuasão,
ele tratou, como o nome indica, especialmente de uma das estratégias
a se adotar, a dissuasiva. Já em Estratégia
ela adota não o ponto de vista passivo que a dissuasão parece
indicar, mas, sim, o da ação. Ele divide o rumo a se tomar em uma
dialética
de vontades
em dissuasão e ação. Ora, quando se trata desta última, do
emprego dos meios de que dispomos, adequados à uma correlação de
forças a fim de exercer no inimigo um efeito psicológico que o leve
à rendição, Beaufre aponta três etapas de um plano de ação, o
qual deve indicar os meandros a se seguir a fim de obter um resultado
favorável: a preparação, a execução e a exploração. Podemos
dizer, ainda, começo, meio e fim, que se interconectam de modo
dinâmico, com o fito de fazer prevalecer nossos interesses.
Esse
esquema geral, abstrato como não poderia deixar de ser, parece-nos
que pode dialogar com algumas concepções de Foucault e nossas.
Veja-se. Ora, Foucault utilizou, como dito, de forma autoral, três
métodos: a arqueologia, a genealogia e deu pistas de um terceiro, a
estratégia. Arqueologia, como se sabe, tem em seu étimo o termo
archē,
que indica, ao mesmo tempo, começo, princípio e comando (já
abordamos esses elementos em uma série de trabalhos; não nos
repetiremos). Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, Foucault
não a pensou como método destinado a explicar princípios, na
acepção geralmente dada a esse termo em filosofia. Ao contrário,
trata-se de um método que não opera nem com um esquema linear de
história, como o de Bossuet ou Condorcet, muito menos com um
espiralado, como o de Hegel e, por extensão, dos marxismos; ao
contrário: é um esquema que explode os primeiros princípios, como
o autor francês explica bem na Arqueologia
(Foucault, 1996).
Já
no texto Nietzsche,
a genealogia e a história,
Foucault (1994) delineia este método de cepa nietzschiana como
focado em mostrar o conflito no seio do mundo, em um duplo movimento
de proveniência, mostrando como distintas forças coadunaram visando
a formação de nosso objeto de estudo, e a emergência, que mostra o
mesmo, mas em um momento específico. Podemos pensar que se trata, em
um estilo saussuriano, em uma análise diacrônica e em outra
sincrônica, uma influência plausível, visto a proximidade de
Foucault com o movimento estruturalista.
Veja-se
que, no esquema de Beaufre esses métodos poderiam corresponder às
fases de preparação (arqueologia e genealogia) e execução
(genealogia). Mas e quanto à exploração? O que seria uma
exploração? Beaufre é lacônico, mas a resposta parece evidente:
após prepararmos nossa ação, agimos. Feita a ação, derrotados ou
vencedores (Beaufre insiste na necessidade de pensar a derrota como
resultado passível de ocorrer como resultado de nossas ações),
temos que explorar os efeitos de nossa forma de proceder. A
exploração, destarte, lida com os efeitos e, assim, com o quanto
nos aproximamos de nossos objetivos, conforme tenhamos sucedido em
escala maior ou menor. Ora, vimos que estratégia se relaciona
somente com os meios, como também com os fins, neste caso
conjuntamente com a filosofia.
Propomos,
assim, e Foucault não guarda responsabilidade sobre isso, que o
método da estratégia seja pensado como o método do corolário:
indagar ao nosso objeto quais são seus efeitos, quais suas
consequências. Por exemplo, à uma proposição filosófica, quais
sujeitos constituem, quais relações funda, qual sua situação na
correlação de forças, qual seu papel nos múltiplos níveis de
conflito existentes em nossa sociedade. Destarte, exploramos, para
reutilizar o termo de Beaufre, os resultados de uma filosofia ou
proposição. Elaboremos mais estas proposições.
Estratégia
como método: archelogia, mesologia, escopologia
Praticamente
tudo que há no universo, inclusive ele mesmo, pode ser dividido em
três níveis: começo, meio e fim. Em outros termos, de onde viemos,
onde estamos, para onde vamos: genitivo, dativo, acusativo (grego),
unde,
ubi, quo,
woher, wie, wohin (alemão), etc. À esta divisão básica, podemos
correlacionar três disciplinas, às quais já propusemos em outro
trabalho: archelogia
(não arqueologia, com significado já bem estabelecido), mesologia
e escopologia.
Como já trabalhamos estes termos em outros artigos, os quais
indicamos, não retomaremos o já dito; avançaremos rumo ao novo.
Propomos
que haja, pois, três formas de abordar um objeto: suas origens
(preparação, archelogia, arqueologia), a forma como ele se dá no
presente ou no período-local estudado (execução, mesologia,
genealogia) e, por fim, seu corolário (exploração, escopologia,
estrategiosofia).
Este último termo também já ocorreu com outros significados em
nossa produção prévia. Expliquemos sua nova acepção.
O
termo estratégia, como se vê, já está carregado neste texto e na
produção intelectual de humanidades como um todo, com uma pletora
de significados: disciplina, meios, fins. Foucault, ele mesmo,
dotou-lhe de cinco acepções diferentes. Nós já utilizamos outros
termos a fim de distinguir estratégia em dois ramos: o estrategion
e a estratégia histórica. Propomos, deste modo, uma nova
terminologia: estrategiosofia como método ou procedimento de
extração de consequências, de estabelecimento de corolário. Toda
ciência busca estabelecer os meios a fim de prever o que ocorrerá
ou, ao menos, nos casos das ciências ideográficas, de descobrir as
linhas de força de dado objeto, como um período histórico, uma
sociedade, uma etnia etc. A estrategiosofia está bem próxima dessa
perspectiva, mas ao mesmo tempo é distinta.
Conforme
dito, propomo-la seja como método de análise de textos filosóficos,
tanto como método de pesquisa filosófica. No primeiro caso, uma boa
aplicação dela é A
destruição da razão,
de
Lukács (1962). O magiar opera com uma fina análise de proposições
filosóficas e de suas consequências em dada formação, a Alemanha
da década de 30. Farias (1998) opera da mesma forma em Heidegger
e o nazismo,
mostrando como um pensamento que parecia inocente ou meramente
envolto em questões existenciais, de fato está imbricado em
concepções e resultados desastrosos. Isto, claro, é um método que
o próprio Foucault opera, por exemplo, em um texto como A
ordem do discurso,
quando ele trata de mostrar as consequências do platonismo na
história do Ocidente. Estrategiosofia como método de pesquisa em
história da filosofia, bem como as duas outras disciplinas,
arqueologia e genealogia, como compreendidas neste texto, se opõem,
no Brasil, ao estruturalismo de Guéroult e Goldschmidt, o qual tenta
ensimesmar o texto (talvez como Foucault intentasse fazê-lo com a
própria arqueologia em um texto como As
palavras e as coisas
(Foucault, 1966)) a fim de mostrar sua independência de fatores e
influências não textuais. São disciplinas auxiliares e
instrumentais da filosofia para este gênero de estudo que ora
propomos a sociologia, a história, a antropologia, a economia, a
geografia, a linguística, a filologia, etc. Até mesmo disciplinas
de ciências exatas podem ser utilizadas com tal intento. Pensamos na
climatologia, por exemplo, e a influência que um fenômeno climático
pode ter na feitura de uma obra filosófica (como ocorre atualmente)
ou na epidemiologia (com exemplo também candente). Situar o texto:
mostrar-lhe as linhas de força, articular argumentos com fatos e
posições políticas, indicar as consequências de um posicionamento
e para onde o texto aponta. Não o tomar como monumento, mas como
instrumento de relações, o que não significa minorizá-lo ou
retirar sua ossatura. Ao contrário, um texto assim abordado se torna
mais rico, com mais significações e relações estabelecidas. O
texto explode em interpretações, enfim.
Por
outro lado, enquanto método de pesquisa filosófico, a
estrategiosofia se aproxima, de certo modo, seja do marxismo, seja do
pragmatismo como entendido por um Cornel West (1989), especialmente.
Mas há diferenças importantes. No primeiro caso, se se trata de
fazer uma espécie de prova do pudim, ao mesmo tempo a
estrategiosofia não opera em um campo teleológico e dialético como
como faz o marxismo, mas em um escopológico (que compreende as
coisas taticamente em um marco de seu desdobramento estratégico) e
belicoso (assentado não em uma ontologia do ser social ou do
trabalho ou das relações de produção, mas em um campo de forças
aberto, aleatório, cuja única lógica é aquela do enfrentamento);
isto implica que a estrategiosofia não seja um método para o
estabelecimento de disciplinas nomotéticas, mas ideográficas. Em
relação ao pragmatismo, West faz uma exposição de Dewey,
especialmente, como encarcerado entre seu desejo de ser um bon
bourgeois,
hegelianismo e os trabalhos de James e Peirce; Dewey seria uma
espécie de pragmatista de esquerda e nele, a nosso ver, à exceção
do próprio West, a tradição pode render frutos. Mas, ao passo que
o pragmatismo vai indagar uma proposição dos marcos de sua
utilidade, nós propomos indagá-la não em termos de uma teoria da
verdade, mas, sim, de seus corolários, efeitos, consequências.
Ora,
um método de pesquisa filosófica deve servir para que obtenhamos
proposições filosóficas. Normalmente estas eram entendidas como
apodíticas, por exemplo. Para nós, este gênero de indagação
filosófica não faz mais sentido. Se a pretensão do filósofo era
esta, isto diz mais do tipo de relação que o filósofo intentava
estabelecer com outras disciplinas, campos de atuação e formações
sociais do que a proposição ela mesma, como acima destacamos.
Assim, nos situamos em uma tradição que busca colocar as coisas em
relação e descobrir como essa teia colateral de relações atua no
sentido de estabelecer o sentido. As proposições e ideias serão
questionadas e pensadas nos termos de seus efeitos. Foucault (1972)
nos fornece um exemplo desta aplicação, por exemplo, em seu famoso
comentário sobre Descartes, na História
da loucura.
Outros tantos exemplos podem ser encontrados. Em suma, mais
formalizamos e sistematizamos que propomos algo exatamente novo.
Conclusões
Nossa
exposição é forçosamente lacônica. Tal qual dito, estamos
trabalhando em um livro, cujo acabamento esperamos conseguir operar
em breve, a fim de colocar as coisas em ordem e dar uma apresentação
mais bem esmerada do tema, por exemplo, concernente ás diferenças
com o marxismo e o pragmatismo, bem como trabalhar alguns exemplos de
aplicação do método. Este artigo deve servir tanto para que
meçamos a receptividade da comunidade em relação ás nossas
ideias, quanto para colocarmos nossos próprios pensamentos de forma
sistematizada: organizar as ideias para desorganizar o mundo.
Nosso
percurso passou pela ideia de complexo de vira-latas, com o
consequente desprezo pelas proposições brasileiras. Abordamos em
passadas rápidas alguns conceitos belicosos de Foucault, somente
para desaguar em Beaufre e comparar os dois franceses. A partir
disso, propusemos alguns conceitos e esboçamos um método de
pesquisa em história da filosofia e em filosofia. O caráter gnômico
do texto não deve espantar: boa parte das ideias apresentadas já
foram expostas por nós em outros artigos e teses. Assim, a fim de
não nos repetirmos, indicamos a bibliografia a fim de que o leitor e
crítico possa aprofundar-se, caso queira.
Em
todo caso, podemos adotar como mote da estrategiosofia o seguinte
dito latino: facta,
non uerba!
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