Do meu livro, LUIZ, Felipe. O conceito de estratégia em Michel Foucault. S.l.: Clube de autores, 2024, pp. 268-320
Disponível para compra em: https://clubedeautores.com.br/livro/o-conceito-de-estrategia-em-michel-foucault
Uma outra tradição francesa: sobre a estratégia como método1
Felipe Luiz
Doutorando no PPGFIL-UFSCAR
gumapoldo51@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-6446-0810
Resumo: O objetivo do presente trabalho é investigar a ideia da estratégia como um método no pensamento de Michel Foucault tal qual exposta em um texto de 1978, mas publicado somente há alguns anos. Empreendemos discussões metodológicas com o pensamento foucaultiano, ao mesmo tempo que, na sequência de outros trabalhos, buscamos aproximá-lo de André Beaufre, contemporâneo seu e pensador francês da estratégia. Dotados de tal aparato, elaboramos uma livre interpretação da estratégia como método e propomos algum vocabulário filosófico novo a fim de coadunar com as análises prévias.
Palavras-chave: Michel Foucault. André Beaufre. Estratégia. Estrategiosofia. Método. Estruturalismo
Another French tradition: about strategy as a method
Abstract: The aim of the present paper é to investigate the idea of strategy as a method in Michel Foucault’s thought as exposed in a text from 1978, but only recently published. We make methodological discussions with Foucault thought, and, at the same time, in a continuation of other works, we try to approach him with André Beaufre, his contemporary and French thinker of strategy. With that apparatus, we develop a free interpretation of strategy as a method, and we propose some new philosophical vocabulary to cope with the previous analysis.
Keywords: Michel Foucault. Andreé Beaufre. Strategy. Strategiosophy. Method, Structuralism.
De dois se compõe
Esta cidade a meu ver:
Um furtar, outro foder
(Gregório de Mattos)
Introdução
A citação que abre nosso artigo parece-nos que soará polêmica para alguns, até mesmo ofensiva. Mas, aos olhos despreparados, ela soa ofensiva pelos motivos equivocados, a nosso ver: a palavra de baixo calão que ela contém é causa da fúria. Em fato, o Boca do Inferno, como ficou apodado Gregório de Mattos Guerra, quando escreveu as linhas acimas, estava tratando de Salvador, então capital do Brasil, uma dentre tantas possessões além-mar de Portugal, em um período em que alguns poucos países da Europa contavam com imensos impérios coloniais, lucrativos e, quase sempre, submissos. Gregório é conhecido por sua verve ácida, por vezes satírica, embora sua fortuna crítica, como assinala Wisnik, não seja das melhores. Os versos assinalados podem muito bem ser aplicados não só ao Brasil colônia e à sua autopercepção na verve do poeta, mas ao modo pelo qual boa parte da sociedade brasileira se enxerga. Claro, quando de então, pouco havia para se orgulhar. Viviam-se tempos em que o Brasil era uma sociedade racista, calcada em privilégios, onde uma elite, enriquecida através do trabalho precário de muitos, impunha os rumos daquela formação social às muitas almas empobrecidas, a corrupção grassava, os homens e mulheres negros eram especiais vítimas da sanha do Estado, indígenas eram assassinados e boa parte do destino do país estava nas mãos de potências estrangeiras.
Que nos perdoem a utilização de categorias posteriores e até mesmo anacrônicas, as quais descarregamos sobre as costas de um Gregório de Mattos, mas há algo de terrivelmente contemporâneo no quadro que acima pintamos, como se os traços constitutivos de nossa sociedade permanecessem com o tempo, como se, no fundo, tudo mudasse, mas continuasse o mesmo. Triste Brasil, não só Bahia: ó quão dessemelhante? Não, Gregório: as permanências são mais poderosas, o Brasil se parece com o Brasil ao longo da história. Sopram-se as areias do tempo, mas o gigante não tem pés de barro. É estável, constante.
Assim também que a ninguém surpreenda que, nos séculos sucessivos, a autoimagem do país tenha permanecido, para boa parte de nossos concidadãos, idêntica. Veja-se o que um Sylvio Romero, autor tão preocupado em recuperar e preservar a memória popular, disse da filosofia no Brasil, já no século XIX:
Na história do desenvolvimento espiritual no Brasil há uma lacuna a considerar: a falta de seriação nas ideias, a ausência de uma genética. Por outros termos, entre nós, um autor não procede do outro, um sistema não é uma consequência do que o precedeu. É uma verdade afirmar que não temos tradições intelectuais no rigoroso sentido. Na história espiritual das nações cultas, cada fenômeno [sic] de hoje é um último elo de uma cadeia, a evolução é uma lei: seja a Alemanha o exemplo (Romero, 1878, p. 35)
Para um crítico do calibre de Romero, portanto, faltariam tradições no Brasil, como se as ideias fossem descoladas de seu meio social, como se não nos lêssemos, como se, afinal, a filosofia vivesse em sua torre de marfim, enquanto o chicote estrala no lombo dos mortais sublunares.
Um diagnóstico com a mesma tonalidade crítica e pessimista é fornecido no século seguinte por Leonel Franca, verdadeiro herói dos conservadores católicos hodiernos nesta terra brasilis. Veja-se:
O que para logo se nota na generalidade dos escritos filosóficos brasileiros é a falta de originalidade. Não podemos ainda pleitear, como as grandes nações civilizadas, certa autonomia de pensamento. De novo e de nosso, bem pouco e bem mesquinho é o que podemos reclamar. Refletimos, mais ou menos passivamente, ideias alheias; navegamos lentamente e a reboque nas grandes esteiras abertas por outros navegantes; reproduzimos, na arena filosófica, lutas estranhas e nelas combatemos com armas emprestadas. Não há, por isso, entre os pensadores que aqui se sucedem, continuação lógica de ideias nem filiação genética de sistemas. Não temos escolas, não temos iniciadores que houvessem suscitado, ou por sequência de evolução ou por contraste de reação, continuadores ou opositores" (Franca, 1962, p. 262)
De uma forma ainda mais vigorosa que Sylvio, o qual enxergava mais aquilo que Cruz Costa (1967) chamava de filoneismo e transoceanismo, Franca fustiga os filósofos da terrinha como meras máquinas fotocopiadoras de ideias alheias, como simples reprodutores de pensamentos forâneos e indiferentes às noções capilares a qualquer escritor que se pretenda como tal: a originalidade. Franca, como se sabe, era ele mesmo muito mais um divulgador de ideias alienígenas, ademais extemporâneas, posto que tomistas, em um momento em que o Brasil se esforçava para deixar para trás seu passado de nação agrário-exportadora e escravista e adentrar no rol luminoso da modernidade.
Cruz Costa (1945; 1960; 1967), pouco depois de Franca, exporia um quadro similar. Para ele, o Brasil, do ponto de vista filosófico, viveria preso entre duas tendências, praticamente um apolíneo e dionisíaco tupi: o sertão e o atlântico. De um lado, nossas raízes mais profundas, de outro, a veia colonizadora, orientada rumo à Europa e, com sorte, aos EUA. Normalmente, nos vemos carregados pela maré atlântica e, destarte, esquecemos os problemas da terra, nosso quinhão o mais próprio. Isto porque somos filoneístas, isto é, sentimos a intensa necessidade de estarmos conectados às últimas modas estrangeiras, ao que se passa no local mesmo onde os brilhantes holofotes das luzes do mainstream estão focados. O diagnóstico de Cruz Costa faz lembrar as descrições de um Lévi-Strauss (1955) sobre o panorama da elite paulistana dos anos 30, toda afrancesada e disposta a abandonar sua veia cabocla em benefício de um modus faciendi europeu, logo provincial, uma vez que, para este escol, havia uma Entfremdung em relação a si próprio e sua gênese negra e indígena: nada mais provinciano que se render às modas da capital por serem da capital.
Marcia Tíburi (2021) trabalha bem esses temas na contemporaneidade ao buscar definir o complexo de vira-latas. De modo geral, colônia por toda sua história escrita, há no Brasil um mal-estar que nos induz a desprezar a nós mesmos, como se, no fundo, buscássemos a aprovação do Outro, o qual, por sua vez, nos despreza e nos quer somente a fim de auferir lucros e dividendos. Tiburi introduz outras noções, em uma mescla ousada, mas coeva, de disciplinas; assim, a seu ver, outro complexo, desta vez de Colombo faria sentido para explicar a mentalidade e, mais do que isso, o páthos dos nascidos deste lado do imenso oceano. A ideia geral é, precisamente, a exposta: espécie de Síndrome de Estocolmo de massas, amamos nossos captores, odiamos aqueles dos quais somos originários e tentamos deles nos afastar.
No caso específico da filosofia, isto leva, por exemplo, a filósofos nacionais de primeira linha, como Ivan Domingues (2017), a desprezar boa parte da produção genuinamente filosófica da terrinha em benefício de autores com, no máximo, interesse filosófico (como o é, no geral, boa parte das produções intelectuais). Assim, em A filosofia no Brasil, Domingues opera um instrumental conceitual de cepa mista, mas com forte componente weberiano e termina por desprezar como tipo-ideal de intelectual filosófico do período de consolidação da filosofia brasileira enquanto disciplina universitária um Álvaro Vieira Pinto, o filósofo do desenvolvimentismo e fortemente ancorado nos problemas brasileiros, ao mesmo tempo que filósofo de todo o Terceiro mundo, como demonstrou Jorge Roux (1990) em estudo hoje clássico.
Assim como Vieira Pinto vem sendo redescoberto, com edições recentes de algumas de suas obras, e seu legado reavaliado, também a filosofia brasileira, disciplina com um papel todo especial em uma formação social, ao menos segundo o próprio Vieira Pinto, vem passando por um processo de mais justo aquilatar. Por décadas, Antônio Paim (1987; 1990) foi praticamente voz solitária na defesa e estudo da filosofia brasileira. Talvez por se tratar de elemento ligado muito de perto a setores conservadores em um momento de regime de exceção, ou até mesmo setores francamente reacionários, como Miguel Reale, Reitor da USP durante a Ditadura, os estudos de Paim encontraram pouco eco na comunidade filosófica.
Margutti, em sua recente História da filosofia do Brasil (2013), mostra as origens da rusga: os pensadores filosóficos brasileiros, que um Cruz Costa, medalhão da tradição uspiana, ainda chamava de filosofantes, com desprezo acentuado, eram descartados por mal avaliados, considerados, como se viu, filoneístas ou transoceânicos. A USP exerce enorme influência na vida intelectual brasileira, embora, no último período, esta ascendência venha esmaecendo. De todo modo, no campo da filosofia, isto significou a predominância de um certo modo de fazer filosofia, especialmente no que tange a um método específico de leitura e produção de textos filosóficos, cuja história de implantação é descrita em detalhes justamente por um dos filhos desta escola, no clássico Departamento francês de ultramar, de Paulo Arantes (1994), hoje fora de edição.
O questionamento a esse modelo de se fazer filosofia não vinha só da direita liberal ou reacionária, campo onde os estudos de autores brasileiros grassavam, mas, também, de setores menos comprometidos com essa polarização ou de setores mais progressistas. Tivemos que esperar um estrangeiro como Armijo Palácios (1997; 2004), em dois estudos clássicos e, também, fora de edição, vir nos chamar atenção para o fato do domínio do método uspiano e seu desprezo pelos filósofos brasileiros, autorais ou comentadores. Segundo ele, esse método estaria a impedir a criação de uma autêntica cultura filosófica e, mesmo, de voos mais altos no campo filosófico nesta terra onde o branco vestiu o índio e não o contrário, graças à chuva, como diz Oswald.
O modus operandi uspiano, o estruturalismo francês de Guéroult e Goldschmidt, em fato privilegia não somente um método de leitura, mas indica os limites do que pode ser produzido, se trasladando no Brasil em um eterno comentário de textos clássicos e impedindo a abordagem autoral de questões filosóficas, ou seja, que não deixemos de apenas glosar autores já consagrados, todos eles estrangeiros, e não quaisquer estrangeiros, mas franceses, alemães, italianos e ingleses, para encarar o trabalho do negativo: refletir e oferecer soluções, segundo nossas inclinações, temperamento e cultura, aos grandes problemas ou, até mesmo, explorar novas questões (Palácios, 1997).
O fato do livro de Arantes (1994) se chamar Departamento francês de ultramar é muito significativo. Como se sabe, os habitantes do Hexágono dividem seu quinhão de terra em departamentos, nossos estados. Como herança do período colonial, eles possuem departamentos que não são contíguos à França metropolitana, mas além-Atlântico, como a Guiana Francesa ou Mayotte. Dissemos com clareza: herança do período colonial. Ao contrário dos EUA, que fizeram sua revolução e foram muito ciosos no sentido de se emancipar não só política, mas econômica, social e culturalmente, ao Brasil somente veio a independência política, restando todo resto por fazer.
O objetivo do presente trabalho é apresentar um método alternativo àquele estruturalista, a partir da interpretação daquilo que chamamos de outra tradição francesa, com uma mescla de tempero brasileiro e adaptado aos nossos próprios objetivos. Nesse sentido, nos situamos em uma tradição francamente brasileira, a antropofagia modernista, de Oswald et caterva.
Fomos haurir esse método a partir de uma leitura certamente gauche de Foucault, mas nem por isso equivocada. Além do mestre do Collége de France, fomos beber em outra fonte das mesmas paragens, o General André Beaufre (1963; 1966), cuja ascendência sobre o pensamento militar brasileiro é comparável a de Foucault nas humanidades. Por fim, nosso toque de samba e caipirinha é justamente alguns textos teóricos das Forças Armadas brasileiras e do próprio Vieira Pinto (1960ª, 1960b), hoje em melhor lida com seu público leitor. Esse método se inspira em alguns pensamentos de Foucault e no desenvolvimento da noção de estratégia que ele opera, bem como da brilhante exposição de Beaufre sobre tal temática. O chamamos de estrategiosofia, nome ao qual já demos outros significados em nossos escritos, mas que buscamos ressignificar atualmente.
Digno de nota é que buscamos apresentar os resultados desta pesquisa, a qual já dura uns bons quinze anos, em congressos e simpósios de filosofia no Brasil, um dos quais destinado exatamente a debater método em filosofia, tudo em vão; por explicações diferentes e, por vezes, mirabolantes, recusou-se nossa exposição. Coincidência ou, como chama Teixeira, colonialidade e defesa do status quo? Quem sabe?
Outra nota a se fazer é que alguns resultados parciais já foram expostos em outros textos acadêmicos, a grande maioria publicados, outros a publicar. Desta forma, não nos repetiremos, mas buscaremos indicar novos resultados, a partir das leituras e reflexões mais recentes. Por fim, é mister indicar que estamos a preparar um livro sobre a temática, de modo que a recepção do presente artigo será indicativa de mudanças a operar e precisões a serem feitas. Expostos os acepipes, vamos ao banquete.
O problema da estratégia na obra de Foucault
Muito se falou sobre a fase política de Foucault, mas, ao mesmo tempo, nem todo ainda foi dito, especialmente se levarmos em conta o fato de que uma parte de sua obra continua a ser publicada no marco dos quarenta anos do falecimento do autor. Pesquisas prévias de nossa lavra já apontaram a importância dos motivos guerreiros em seu pensamento, especialmente de algumas noções e, até mesmo, de um modelo bélico de análise social. Mas, tal qual dito, algumas destas facetas, por seu aspecto novidadeiro mesmo, estão sendo discutidos, de modo que o estabelecimento de uma versão definitiva de determinados conceitos queda tarefa a ser empreendida. Este não é nosso objetivo no presente texto. Primeiro, por não sermos nem foucaultianos nem foucaultistas. Ou, talvez, o somos, mas pelas linhas tortas através das quais o dictum popular diz que a mão de deus escreve. Explique-se.
Em algumas ocasiões, Foucault (1994) expressou que seu desejo, ao levantar uma miríade de problemáticas e campos de análise, era fornecer caixas de ferramentas para que os questões fossem trabalhados, retrabalhados ou modificados por outros pensadores. Assim, um conceito, um insight, um viés do dito pensador, tudo isto, enfim, deveria servir não para que se constituísse uma polícia da verdade foucaultiana, mas, sim, uma explosão de pesquisas em diferentes domínios. Neste sentido, tampouco nós seremos os guardiões de uma ortodoxia, aliás impossível, visto que Foucault altera seus posicionamentos constantemente, mas intentaremos fazer um uso livre de alguns conceitos e, assim, pensar problemas tipicamente brasileiros.
Conforme dito, as alusões bélicas no pensamento do mestre francês proliferam, especialmente em sete formas distintas: quatro conceitos, uma lógica de pesquisa, um método e um modelo de análise de uma formação social. Os conceitos são estratégia, tática, dispositivo e relações de força; enquanto a lógica de pesquisa é aquilo que Foucault chama de lógica da estratégia; por sua vez, o modelo de guerra ou de Nietzsche, chamado ora de uma, ora de outra forma indistintamente; e, por fim, o método é o da estratégia, ao qual Foucault faz rápidas alusões. Guardam em comum o fato de pertencerem, quase todos, ao período da assim chamada genealogia do poder, embora tenham raízes e projeções que ultrapassem os limites dos anos 70, marco temporal de tal abordagem.
Quanto ao conceito de estratégia, ao qual já dedicamos amplo estudo, basta que se retenha que Foucault dotou de cinco significados diferentes a noção, em momentos díspares de sua vida, e que, neste estudo, nos importa um em particular, fornecido por ele já nos anos finais de sua curta vida, e que ocorreu, pela primeira vez no estudo sério e profissional de Dreyfus e Rabinow (1982). Esse conceito é reproduzido ipsis litteris no Vocabulário Foucault, de Edgardo Castro (2004), o que já lhe garantiu, por incompletude, nossa reprovação, uma vez que peca por sinédoque. Nessa definição de Foucault, o conceito de estratégia exposto é um tal que a pensa fundamentalmente como um meio de se lograr vencer uma disputa. A estratégia é, destarte, pensada como os métodos, as artimanhas, os meandros de uma ação que visa garantir “soluções vitoriosas” (Foucault, 1982, p. ) e, notadamente, distinta das finalidades da dita ação.
Sigamos. A lógica de pesquisa acima referida, lógica da estratégia, é apresentada por Foucault uma única vez, no curso Nascimento da biopolítica, onde, assim, Foucault (2004) faz algumas precisões de método e explanações concernentes às pesquisas que empreendia no momento. Como sói ocorrer com o mestre francês, pode-se indagar se se tratou de mera empolgação do momento, oriunda da tão comum alta temperatura do debate, ou se, ao contrário, ele tinha algo de maior monta em mente. A lógica da estratégia é definida em contraposição à dialética, um vezo na carreira de Foucault, tal como a oposição á fenomenologia; em uma palavra, sua desconfiança em relação a um intelectual de primeira grandeza na França d’antanho como Sartre o era. Para Foucault, tal lógica se constitui no fato dela não buscar subsumir as diferenças a um nível único mais fundamental, mas de deixar o diferente vicejar enquanto tal, buscando compreendê-lo, para somente depois intentar uma ligação entre os diversos campos de diferença presentes em certo nicho de análise. Ilustremos. Ao invés de uma certa litania marxista ou de um certo marxismo, que explica o conjunto da sociedade através de sua redução ao estrato econômico de dita formação, o qual, nas palavras de Althusser, sobredetermina os demais níveis, Foucault intenta escolher um campo de análise, digamos, a prisão, e situá-lo em uma correlação de forças, pesquisar os meios através dos quais esse recorte se processa bem como sua história para somente então encetar uma abordagem de pesquisa transversal, ao buscar relacioná-lo com outros campo de dada formação. Em outros termos, enquanto para o marxismo se trata de elaborar uma suprassunção ― e, no esquema hegeliano, toda suprassunção é uma subsunção ―, para Foucault se trata de fixar séries e somente então estabelecer um quadro, isto é, séries de séries. Em nossa interpretação, pois, essa lógica da estratégia domina praticamente toda a produção de Foucault e pode ser situada nestes marcos, especialmente a partir de 1969, ano em que ele publica A arqueologia do saber e o conceito de estratégia passa a ocorrer em seus escritos com um ímpeto mais profundo
Quanto ao modelo de guerra, Foucault dedicou-lhe um curso todo no Collége de France. Trata-se, claro, de Em defesa da sociedade, onde o francês faz uma espécie de balanço de seu trajeto, inclusive de seu método de ocasião, a genealogia, e busca preencher algumas lacunas e precisar certas abordagens e parâmetros. Destarte, Foucault (1997) busca elaborar uma espécie de genealogia de uma perspectiva dos fatos socais desde um ponto de vista bélico. Para sermos claro, tratava-se de localizar quando a guerra deixou de ser mero fenômeno de luta entre duas unidades políticas para se tornar um princípio de análise social. Este curso destaca-se ainda pois, nele, Foucault introduz a noção de biopolítica, que teria grande fortuna crítica em sua e em outras penas.
Por fim, nosso objetivo neste texto: a ideia de estratégia como método. Tradicionalmente, se considera que Foucault fez uso de dois métodos sobretudo, a arqueologia, exposta em um livro próprio e de cepa kantiana, e a genealogia, cuja genética é também alemã, mas, desta vez, nietzscheana. Ora, que espanto não deve ter causado ao auditório quando Foucault (2015) em uma conferência diante da Sociedade Francesa de Filosofia pareceu introduzir um terceiro método, o da estratégia. Em fato, a conferência tratava da conceitualização das Luzes, embora Foucault, a princípio, como destaca Lorenzini na recente primeira edição do texto, se recusasse a dar um título como este, em clara alusão ao opúsculo kantiano, o qual o próprio Foucault ajudou a recuperar do olvido e dotar-lhe de celebridade. A conferência, de 1978 (mas somente publicada em meados dos anos 2010) faz, ela também, um balanço do percurso foucaultiano, especialmente nos entremeios do texto, onde o mestre du Paname expõe três conjuntos críticos, focados no método, este tema tão central no pensamento moderno, ao menos desde que um outro francês ainda mais célebre publicou um famoso discurso sobre o mesmo. Ora, Foucault é cronológico: começa com a arqueologia, passa pela genealogia e, subitamente trata da estratégia enquanto um domínio próprio de objetos, uma forma de abordá-los. Mas a menção é breve e desconhecemos outra ocorrência do termo nessa acepção na obra de Foucault.
Não estamos só ao apontar que isso poderia ser índice de um terceiro método no pensamento do autor. Comentadores de renome, como Veiga-Netto (2007), pensam da mesma forma, ao dividir a obra de Foucault segundo uma abordagem ontológica e pensar que o último quinhão de reflexão, que ele chama de ser-consigo, distinto do ser-saber e do ser-poder, se valeria do tal método da estratégia. Mas as lacônicas referências ao ponto por parte de Foucault deixam abertas as portas para questionamentos. Ele é confuso, por vezes contraditório, certamente não explícito o suficiente, como o fora em relação à arqueologia e à genealogia.
Mas, pensamos, conceber a estratégia como um método é condizente com algumas definições hodiernas da Estratégia (com E maiúsculo posto indicar um ramo de saber). Pensamos e já o dissemos em trabalhos precedentes que as definições foucaultianas se adequam àquelas do General André Beaufre (1963). Como já abordamos parte da temática em outros trabalhos e estamos a preparar um texto de maior fôlego sobre o tema, indicaremos a seguir o que viria a ser o conceito de estratégia de Beaufre e das Forças Armadas brasileiras e, posteriormente, veremos quais relações se pode traçar com a filosofia, na continuidade de produções prévias de nossa lavra.
Estratégia e filosofia dos meios
Beaufre não é um pensador muito conhecido fora dos meios militares e, até mesmo nestes, padece de certo olvido. Creveld (200), por exemplo, ou Luttwak (2001), pensadores contemporâneos da Estratégia, ou o citam pouco ou nem mesmo o fazem. Mas eles são de matriz estadunidense e bem se sabe que, dado o gigantismo do país e sua tendência a se autocentrar como umbigo deste planeta, tendem a criar uma tradição de comentários mútuos, ignorando, por vezes, autores de outras origens em benefício de seus concidadãos.
Fenômeno inverso ocorre no Brasil. Como já se disse, consumada a Independência, trocamos Portugal pela França como farol de nossa mui humilde, mas plena de potencial, civilização. Na outrora Gália fomos haurir muitas de nossas fontes, tanto na filosofia, como o domínio espiritualista, depois positivista testemunha, e essa influência alcançou o arco das ideias militares. Assim, em alguns materiais de preparação de seus futuros alto chefes, as FA traçam um quadro da história da Estratégia como possuindo seus ápices em quatro autores distintos: Clausewitz (2003), Liddel Hart (1991), Mao Tsé Tung (por exemplo, 1968) e, no píncaro, Beaufre (1963). Este seria como o fecho de uma tradição, não só por ser a conclusão de um debate que envolve os demais pensadores apontados, como ademais pela justeza de suas ideias (ESCOLA DE COMANDO E ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO, 2011).
Há algo de verdadeiro nesse panorama. Os autores arrolados compõem um escol de pensadores militares e tomaram parte em grandes conflitos; suas reflexões são obras-primas do pensamento estratégico, ainda que sejam celebrados de formas distintas, como já se notou. O conceituar de Mao, por exemplo, experiencia um verdadeiro interesse renovado em suas ideias, pela pujança do Império do Meio, ao passo que a França, já mais impotente que potência, engolida pelo leque de alianças dos EUA que foi, vê sua ascendência no campo dos estudos militares diminuída, se pensarmos que um Jomini, por exemplo, suíço mas de carreira e língua francesas, já foi até mesmo o carro-chefe do pensamento militar em muitos países, inclusive nos próprios EUA então nascentes (Paret, 1987).
Fato é que, malgrado sua posição não seja comparável àquela de outrora, a França ainda exerce profunda atração intelectual sobre o Brasil, ainda que esteja perdendo espaço, como nota Domingues (2017). Beaufre, contudo, é pensador original de primeira ordem e oferece saídas interessantes para os nós górdios da Estratégia tal qual ela se desenhava em seu tempo de vida. Seu pensamento estratégico está exposto em variados livros, mas uma trilogia se salienta, seja por condensar sua exposição, seja pelo fato de os livros dialogarem entre si. Introdução à estratégia (com edição recente e tradução coeva para o português disponíveis), Dissuasão e estratégia e Estratégia da ação. Tríptico de verve, escritos em um francês tão claro quanto são profundos seus pensamentos, é sobre algumas dessas obras que volveremos.
Na Introdução (Beaufre, 1963) o prefaciador, o próprio Liddel Hart, que Beaufre combate no livro, argumenta que a despretensão do título é enganosa. Ao invés de se tratar de modesta introdução, o livro contém um tratado de estratégia, ao abordar as temáticas principais do tema. O coronel inglês tem razão: até mesmo uma breve história da estratégia é escrita e os grandes nomes do passado, que sobreviveram à passagem do tempo, são recuperados nas proposições de Beaufre. Ele pode elaborar uma espécie de suprassunção das demais correntes e autores (e o termo suprassunção não é vão, uma vez que dialoga com o frequente e importante uso que o general francês faz do termo dialética) justamente por seu conceito de estratégia.
Como apontado em outros trabalhos oriundos de nossa pena, Clausewitz (2003) propõe um tipo de estratégia como a correta, a partir de suas experiências nas guerras napoleônicas e do diálogo estabelecido com outros pensadores militares de seu tempo. Liddel Hart (1991) procede da mesma forma, alcançando, evidentemente, outros resultados; mas ele ainda pensa que há uma estratégia correta. Mao procede da mesma forma e seu pensamento influenciou variadas matizes de guerrilha e movimentos populares: há um jeito de se fazer guerrilha e derrubar o domínio da burguesia; o resto, as demais proposições ― e são muitas, como se pode ver em um texto influente como Revolução na revolução, de Debray (1967) ― são errôneas. Beaufre inova ao pensar que a estratégia não é um modelo que se aplica mecanicamente. Ao contrário, a estratégia é um método de pensamento, que deve considerar as circunstâncias, os meios de que dispomos e as finalidades almejadas, a fim de ser bem-sucedido nosso esforço. Outra inovação de Beaufre, na esteira, desta vez, de Liddel Hart, é tomar que a estratégia não é redutível ao seu aspecto militar. Mais ampla, ela abarca outros níveis do real, e o strategos deve saber conjugar os distintos planos de ação, como diplomático ou econômico, a fim de lograr seus resultados. A estratégia é um meio, ela é a ciência que viabiliza os resultados colocados pela política.
Beaufre termina o primeiro capítulo da Introdução com as seguintes palavras:
Mas a estratégia não é senão um meio. A definição das finalidades que ela deve procurar alcançar é do domínio da política e ela trata essencialmente da filosofia que desejamos ver dominar. O destino do homem depende da filosofia que ele escolherá e da estratégia através da qual ele buscará fazê-la prevalecer (Beaufre, 1965, p. 44)
Anteriormente ele havia oferecido outros conceitos de estratégia, como arte de lograr impor sua posição em uma dialética de vontades. Mas o que mais importa que retenhamos é sua noção da estratégia como um meio. Essa posição implica algumas consequências: a estratégia é definida como a arte ou ciência dos meios, enquanto os fins são postos pela política, e a política deriva de uma filosofia, a qual medita sobre a mesma nos níveis os mais elevados. Reflitamos sobre estes pontos.
Meira Mattos (1986), general do Exército brasileiro, parece coadunar com a posição de Beaufre, quando este aponta que há uma espécie de hierarquia entre os campos de saber. Uma formação social possui valores e estes valores estão coadunados com alguma corrente filosófica. Por exemplo, em um documento da Escola Superior de Guerra, think tank brasileiro voltado à análise e à proposição de saídas para as questões nacionais, sugere-se que os valores, as finalidades do Brasil enquanto formação são, precisamente, Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Esses são objetivos de Estado, aos quais, talvez, nossos pensadores militares admitam que se adicione meia dúzia de artigos da Constituição. Em um nível inferior, há os objetivos de Governo, mais mutáveis, mas que devem se adequar àqueles de Estado (Escola Superior de Guerra, 2019). O papel da Estratégia é definir as maneiras através dos quais se operam esses meios (Estado Maior do Exército Brasileiro, 2001). Podemos, pois, afirmar, como já o fizemos em outros trabalhos, seguindo Beaufre e Meira Mattos, que a filosofia (secundada por valores religiosos talvez) pensa os objetivos de Estado, ao passo que a Ciência Política trabalha no nível mais restritos de compreender as forças em disputa, as origens dos partidos, como se portarão etc. A Estratégia, a seu turno, é operacional: ela investiga quais condições devem ser preenchidas, quais ações tomadas e quais meios adotados a fim de superar os óbices á concretização de nossa vontade, de forma a que esta se realize (Estado Maior do Exército Brasileiro, 2001; Beaufre, 1963, 1966; Meira Mattos, 1986).
Esse papel que interpretamos Beaufre conceder à filosofia pode ser aproximado de variados autores, como Gramsci e suas reflexões ao papel do intelectual na construção e manutenção da hegemonia de uma classe sobre as demais (Portelli, 1973). Por ora, nos contentaremos em salientar o vínculo que une o pensamento de Beaufre e de seu discípulo brasileiro Meira Mattos com a função arrolada por Vieira Pinto, insigne filósofo do desenvolvimentismo, intelectual de ponta do ISEB, do qual foi diretor, instituição de triste fim (fechada que foi pela força das baionetas logo nos primeiros dias do golpe cívico-militar de 1964), para a filosofia. Em seu clássico, Ideologia e desenvolvimento nacional (1960) Vieira Pinto indica a filosofia como a responsável por formular no nível mais abstrato não somente uma axiologia, como, ademais, uma metodologia que balize as demais ciências sociais em seu fazer. A filosofia, assim, ganha poderes inauditos e se eleva ao nível de mais elevado interesse frente à aspirações de um país. Mas, ela lidaria com fins, com objetivos, não com meios. Este seriam do âmbito das demais ciências; Vieira Pinto cita História e Sociologia, mas podemos acrescentar a Estratégia sem dúvidas. Vê-se como os pensamentos coadunam: a filosofia aparece como uma espécie de estratégia, se pensarmos esta como a colocação de meios para determinados objetivos.
Então, filosofia pensaria os fins, ao passo que a estratégia lida com os meios. Constata-se que essa lição de Beaufre coaduna também com a posição de Foucault (1982), o qual pensa a estratégia, ao menos em uma das definições que dela oferece, como os meios para se obter uma solução vitoriosa. Então, o método da estratégia de Foucault trataria dos meios? E qual seria a finalidade apontada por Foucault em seus escritos? E a genealogia e a arqueologia, seus outros dois métodos, qual seria seu papel?
Ainda Beaufre: os três níveis da estratégia
Não abordaremos aqui um dos livros do tríptico beaufreano, Dissuasão e estratégia. Mas há um outro livro de sua autoria que talvez nos auxilie na resolução dessas questões. Trata-se de Estratégia da ação. Beaufre (1966) divide neste livro, o qual encerra uma série, que na Introdução ele forneceu um quadro geral do tema. Em Dissuasão, ele tratou, como o nome indica, especialmente de uma das estratégias a se adotar, a dissuasiva. Já em Estratégia ela adota não o ponto de vista passivo que a dissuasão parece indicar, mas, sim, o da ação. Ele divide o rumo a se tomar em uma dialética de vontades em dissuasão e ação. Ora, quando se trata desta última, do emprego dos meios de que dispomos, adequados à uma correlação de forças a fim de exercer no inimigo um efeito psicológico que o leve à rendição, Beaufre aponta três etapas de um plano de ação, o qual deve indicar os meandros a se seguir a fim de obter um resultado favorável: a preparação, a execução e a exploração. Podemos dizer, ainda, começo, meio e fim, que se interconectam de modo dinâmico, com o fito de fazer prevalecer nossos interesses.
Esse esquema geral, abstrato como não poderia deixar de ser, parece-nos que pode dialogar com algumas concepções de Foucault e nossas. Veja-se. Ora, Foucault utilizou, como dito, de forma autoral, três métodos: a arqueologia, a genealogia e deu pistas de um terceiro, a estratégia. Arqueologia, como se sabe, tem em seu étimo o termo archē, que indica, ao mesmo tempo, começo, princípio e comando (já abordamos esses elementos em uma série de trabalhos; não nos repetiremos). Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, Foucault não a pensou como método destinado a explicar princípios, na acepção geralmente dada a esse termo em filosofia. Ao contrário, trata-se de um método que não opera nem com um esquema linear de história, como o de Bossuet ou Condorcet, muito menos com um espiralado, como o de Hegel e, por extensão, dos marxismos; ao contrário: é um esquema que explode os primeiros princípios, como o autor francês explica bem na Arqueologia (Foucault, 1996).
Já no texto Nietzsche, a genealogia e a história, Foucault (1994) delineia este método de cepa nietzschiana como focado em mostrar o conflito no seio do mundo, em um duplo movimento de proveniência, mostrando como distintas forças coadunaram visando a formação de nosso objeto de estudo, e a emergência, que mostra o mesmo, mas em um momento específico. Podemos pensar que se trata, em um estilo saussuriano, em uma análise diacrônica e em outra sincrônica, uma influência plausível, visto a proximidade de Foucault com o movimento estruturalista.
Veja-se que, no esquema de Beaufre esses métodos poderiam corresponder às fases de preparação (arqueologia e genealogia) e execução (genealogia). Mas e quanto à exploração? O que seria uma exploração? Beaufre é lacônico, mas a resposta parece evidente: após prepararmos nossa ação, agimos. Feita a ação, derrotados ou vencedores (Beaufre insiste na necessidade de pensar a derrota como resultado passível de ocorrer como resultado de nossas ações), temos que explorar os efeitos de nossa forma de proceder. A exploração, destarte, lida com os efeitos e, assim, com o quanto nos aproximamos de nossos objetivos, conforme tenhamos sucedido em escala maior ou menor. Ora, vimos que estratégia se relaciona somente com os meios, como também com os fins, neste caso conjuntamente com a filosofia.
Propomos, assim, e Foucault não guarda responsabilidade sobre isso, que o método da estratégia seja pensado como o método do corolário: indagar ao nosso objeto quais são seus efeitos, quais suas consequências. Por exemplo, à uma proposição filosófica, quais sujeitos constituem, quais relações funda, qual sua situação na correlação de forças, qual seu papel nos múltiplos níveis de conflito existentes em nossa sociedade. Destarte, exploramos, para reutilizar o termo de Beaufre, os resultados de uma filosofia ou proposição. Elaboremos mais estas proposições.
Estratégia como método: archelogia, mesologia, escopologia
Praticamente tudo que há no universo, inclusive ele mesmo, pode ser dividido em três níveis: começo, meio e fim. Em outros termos, de onde viemos, onde estamos, para onde vamos: genitivo, dativo, acusativo (grego), unde, ubi, quo, woher, wie, wohin (alemão), etc. À esta divisão básica, podemos correlacionar três disciplinas, às quais já propusemos em outro trabalho: archelogia (não arqueologia, com significado já bem estabelecido), mesologia e escopologia. Como já trabalhamos estes termos em outros artigos, os quais indicamos, não retomaremos o já dito; avançaremos rumo ao novo.
Propomos que haja, pois, três formas de abordar um objeto: suas origens (preparação, archelogia, arqueologia), a forma como ele se dá no presente ou no período-local estudado (execução, mesologia, genealogia) e, por fim, seu corolário (exploração, escopologia, estrategiosofia). Este último termo também já ocorreu com outros significados em nossa produção prévia. Expliquemos sua nova acepção.
O termo estratégia, como se vê, já está carregado neste texto e na produção intelectual de humanidades como um todo, com uma pletora de significados: disciplina, meios, fins. Foucault, ele mesmo, dotou-lhe de cinco acepções diferentes. Nós já utilizamos outros termos a fim de distinguir estratégia em dois ramos: o estrategion e a estratégia histórica. Propomos, deste modo, uma nova terminologia: estrategiosofia como método ou procedimento de extração de consequências, de estabelecimento de corolário. Toda ciência busca estabelecer os meios a fim de prever o que ocorrerá ou, ao menos, nos casos das ciências ideográficas, de descobrir as linhas de força de dado objeto, como um período histórico, uma sociedade, uma etnia etc. A estrategiosofia está bem próxima dessa perspectiva, mas ao mesmo tempo é distinta.
Conforme dito, propomo-la seja como método de análise de textos filosóficos, tanto como método de pesquisa filosófica. No primeiro caso, uma boa aplicação dela é A destruição da razão, de Lukács (1962). O magiar opera com uma fina análise de proposições filosóficas e de suas consequências em dada formação, a Alemanha da década de 30. Farias (1998) opera da mesma forma em Heidegger e o nazismo, mostrando como um pensamento que parecia inocente ou meramente envolto em questões existenciais, de fato está imbricado em concepções e resultados desastrosos. Isto, claro, é um método que o próprio Foucault opera, por exemplo, em um texto como A ordem do discurso, quando ele trata de mostrar as consequências do platonismo na história do Ocidente. Estrategiosofia como método de pesquisa em história da filosofia, bem como as duas outras disciplinas, arqueologia e genealogia, como compreendidas neste texto, se opõem, no Brasil, ao estruturalismo de Guéroult e Goldschmidt, o qual tenta ensimesmar o texto (talvez como Foucault intentasse fazê-lo com a própria arqueologia em um texto como As palavras e as coisas (Foucault, 1966)) a fim de mostrar sua independência de fatores e influências não textuais. São disciplinas auxiliares e instrumentais da filosofia para este gênero de estudo que ora propomos a sociologia, a história, a antropologia, a economia, a geografia, a linguística, a filologia, etc. Até mesmo disciplinas de ciências exatas podem ser utilizadas com tal intento. Pensamos na climatologia, por exemplo, e a influência que um fenômeno climático pode ter na feitura de uma obra filosófica (como ocorre atualmente) ou na epidemiologia (com exemplo também candente). Situar o texto: mostrar-lhe as linhas de força, articular argumentos com fatos e posições políticas, indicar as consequências de um posicionamento e para onde o texto aponta. Não o tomar como monumento, mas como instrumento de relações, o que não significa minorizá-lo ou retirar sua ossatura. Ao contrário, um texto assim abordado se torna mais rico, com mais significações e relações estabelecidas. O texto explode em interpretações, enfim.
Por outro lado, enquanto método de pesquisa filosófico, a estrategiosofia se aproxima, de certo modo, seja do marxismo, seja do pragmatismo como entendido por um Cornel West (1989), especialmente. Mas há diferenças importantes. No primeiro caso, se se trata de fazer uma espécie de prova do pudim, ao mesmo tempo a estrategiosofia não opera em um campo teleológico e dialético como como faz o marxismo, mas em um escopológico (que compreende as coisas taticamente em um marco de seu desdobramento estratégico) e belicoso (assentado não em uma ontologia do ser social ou do trabalho ou das relações de produção, mas em um campo de forças aberto, aleatório, cuja única lógica é aquela do enfrentamento); isto implica que a estrategiosofia não seja um método para o estabelecimento de disciplinas nomotéticas, mas ideográficas. Em relação ao pragmatismo, West faz uma exposição de Dewey, especialmente, como encarcerado entre seu desejo de ser um bon bourgeois, hegelianismo e os trabalhos de James e Peirce; Dewey seria uma espécie de pragmatista de esquerda e nele, a nosso ver, à exceção do próprio West, a tradição pode render frutos. Mas, ao passo que o pragmatismo vai indagar uma proposição dos marcos de sua utilidade, nós propomos indagá-la não em termos de uma teoria da verdade, mas, sim, de seus corolários, efeitos, consequências.
Ora, um método de pesquisa filosófica deve servir para que obtenhamos proposições filosóficas. Normalmente estas eram entendidas como apodíticas, por exemplo. Para nós, este gênero de indagação filosófica não faz mais sentido. Se a pretensão do filósofo era esta, isto diz mais do tipo de relação que o filósofo intentava estabelecer com outras disciplinas, campos de atuação e formações sociais do que a proposição ela mesma, como acima destacamos. Assim, nos situamos em uma tradição que busca colocar as coisas em relação e descobrir como essa teia colateral de relações atua no sentido de estabelecer o sentido. As proposições e ideias serão questionadas e pensadas nos termos de seus efeitos. Foucault (1972) nos fornece um exemplo desta aplicação, por exemplo, em seu famoso comentário sobre Descartes, na História da loucura. Outros tantos exemplos podem ser encontrados. Em suma, mais formalizamos e sistematizamos que propomos algo exatamente novo.
Conclusões
Nossa exposição é forçosamente lacônica. Tal qual dito, estamos trabalhando em um livro, cujo acabamento esperamos conseguir operar em breve, a fim de colocar as coisas em ordem e dar uma apresentação mais bem esmerada do tema, por exemplo, concernente ás diferenças com o marxismo e o pragmatismo, bem como trabalhar alguns exemplos de aplicação do método. Este artigo deve servir tanto para que meçamos a receptividade da comunidade em relação ás nossas ideias, quanto para colocarmos nossos próprios pensamentos de forma sistematizada: organizar as ideias para desorganizar o mundo.
Nosso percurso passou pela ideia de complexo de vira-latas, com o consequente desprezo pelas proposições brasileiras. Abordamos em passadas rápidas alguns conceitos belicosos de Foucault, somente para desaguar em Beaufre e comparar os dois franceses. A partir disso, propusemos alguns conceitos e esboçamos um método de pesquisa em história da filosofia e em filosofia. O caráter gnômico do texto não deve espantar: boa parte das ideias apresentadas já foram expostas por nós em outros artigos e teses. Assim, a fim de não nos repetirmos, indicamos a bibliografia a fim de que o leitor e crítico possa aprofundar-se, caso queira.
Em todo caso, podemos adotar como mote da estrategiosofia o seguinte dito latino: facta, non uerba!
Bibliografia
ARANTES, Paulo Eduardo. Um departamento francês de ultramar, SP: Paz e Terra, 1994
BEAUFRE, André. Introduction à la stratégie. Paris: Armand Colin, 1963
_______________. Stratégie de l'action. Paris: Armand Colin, 1966
CASTRO, Edgard. El Vocabulario de Michel Foucault. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2004
CLAUSEWITZ, Carl von. Vom Kriege. S.l.: Area, 2003
COSTA, João Cruz. A filosofia no Brasil. Porto Alegre: Globo, 1945.
_______________. Contribuição à história das ideias no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, 2a ed.
_______________. Panorama da história da filosofia no Brasil. SP: Cultrix, 1960
CREVELD, Martin van. The Art of War: War and Military Thought. London: Cassel, 2000
DEBRAY, Régis. Revolução na revolução. Havana: Casa das Américas, 1967
DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil; reflexões metafilosóficas. São Paulo/; EDUNESP, 2017
DREYFUS, Hubert. RABINOW, Paul. Michel Foucault: Beyond Structuralism and hermeneutics. Chicago: University of Chicago Press, 1982
ESCOLA DE COMANDO E ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO (ECEME). Introdução à estratégia. S.l.: CSP/ECEME, 2011
Estado Maior do Exército Brasileiro. Manual de campanha: estratégia. s/l, 2001
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). Fundamentos do Poder Nacional. Rio de Janeiro: ESG, 2019
FARIAS, Victor. Heidegger y el nazismo. México: Akal/Fon de Cultura Economia, 1998, 2ª ed.
FOUCAULT, Michel. L'archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1996
________________. Dits et écrits 1954-1988: II 1970-1975. Paris: Gallimard, 1994
________________. Histoire de la folie á l’âge classique. Paris: Gallimard, 1972
________________. Il faut défendre la société (1975-1976). Paris: Gallimard/Seuil, 1997
________________. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966
________________. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard/Seuil, 2004
________________. Qu'est-ce que la critique suivie de La culture de soi. Paris : Vrin, 2015
________________. The subject and power. En DREYFUS, Hubert. RABINOW, Paul. Michel Foucault: Beyond Structuralism and hermeneutics. Chicago: University of Chicago Press, 1982
FRANCA, Pe. Leonel. Noções de História da filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1962, 18ª ed.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes tropiques. Paris: Plon, 1955.
LIDDEL HART, Basil. Strategy, NY: Meridian Book, 1991
LUKÁCS, Georg. Die Zerstörung der Vernunft. Berlin: Luchterhand, 1962
LUTTWAK, Edward. Strategy: the logic of war and peace. Cambridge/London: Belknap Press of Harvard University Press, 2001
MARGUTTI, Paulo. História da filosofia do Brasil: o período colonial. São Paulo: Loyola, 2013
________________. História da filosofia do Brasil: a ruptura iluminista. São Paulo: Loyola, 2020
MATTOS, Gregório. Poemas escolhidos de Gregório de Mattos. Seleção e prefácio de José Miguel Wisnik. São Paulo: Cia das Letras, 2010
MEIRA MATTOS, Carlos de. Estratégias militares dominantes. RJ: BIBLIEX, 1986
PAIM, António. A filosofia brasileira. Lisboa: ICALP/Ministério da Educação, 1991
_____________. História das ideias filosóficas no Brasil. São Paulo: Convívio, 1987, 4ª ed.
PALÁCIOS, Gonçalo Armijo. Alheio olhar. Goiânia: EDUFG, 2004
________________________. De como fazer filosofia sem ser grego. estar morto ou ser gênio. Goiânia: Editora UFG, 1997
PARET, Peter et ali. Makers of modern strategy: from Machiavelli to the Nuclear age. Princeton: Princeton University Press, 1986
PORTELLI, Hugues. Gramsci y el bloque historico. Traducción de Maria Braun. Ciudad de México: Siglo Vinteuno, 1973, 4ª ed.
ROMERO, Sylvio. A philosophia no Brasil. Porto Alegre: Typographia da Deutsche Zeitung, 1878
ROUX, Jorge. Álvaro Vieira Pinto: nacionalismo e Terceiro Mundo. São Paulo, Cortez, 1990
TIBURI, Márcia. Complexo de vira-lata. Análise da humilhação brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021
TSE-TUNG. Mao. Obras Escogidas de Mao Tse Tung. Tomo I. Pekin: Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1968
VIEIRA PINTO Álvaro Borges. Consciência e realidade nacional: a consciência ingênua. RJ: ISEB, 1960a, vol. I
___________________________. Ideologia e Desenvolvimento Nacional. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1960b
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2a edição, 2007
WEST, Cornel. The American evasion of philosophy. A genealogy of pragmatism. London: Macmillan, 1989
1 Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior (CAPES) pelo financiamento desta pesquisa
Nenhum comentário:
Postar um comentário