sábado, 24 de agosto de 2024

Os generais são uns chorões? Ou Sobre a importânecia da estratégia

 Há um texto de Vesentini sobre a epistemologia da Geografia no qual o famoso geógrafo brasileiro afirma que a geografia é o patinho feio das ciências humanas. Em geral, seus textos e autores são pouco conhecidos em comparação ao de outras disciplinas da seara e, mesmo, seu estatuto epistemológico é mais frágil, ao menos segundo se nos dizem. Quando li esse texto, impossível não lembrar da discussão de Foucault com os geógrafos, que, na edição brasileira, saiu na Microfísica do poder.

    A geografia, no entanto, não está sozinha na lama da indiferença. Outra disciplina das humanidades, com um peso tão importante nos rumos do globo, também é, em geral, escanteada. Nos Departamentos de humanas e nas universidades, nos currículos dos cursos, na vida acadêmica em geral, seus autores quedam desconhecidos, ainda que ela trate de um assunto da maior importância e, mesmo, decisivo, se o “poder político nasce da ponta do fusil”: a Estratégia.

    Normalmente, quando conheço alguém nos meios acadêmicos, a primeira pergunta que se me é feita é: o que você estuda? Quando respondo que estudo guerra, não é incomum que o interlocutor logo descambe para o espanto: “guerra? Na filosofia?”. E assim, as mútuas imbricações entre o pensamento filosófico e a ciência dos generais, queda obliterada e diminuída para nunca mais.

    Contudo, há muitas relações entre as searas. Afora as fontes gregas, das quais ambas bebem, outros elementos de estratégia teórica também saltam aos olhos. Pensemos, por exemplo, em um autor não muito conhecido no Brasil que escreveu copiosamente sobre Estratégia: Jean-Paul Charnay, ex-professor da Sorbonne. Ele nota como o objetivo de toda estratégia (militar) é abolir as diferenças e tornar o Outro como nós. Pensemos em uma guerra; nela, para usar o mesmo registro da escola francesa de pensamento militar, o objetivo é submeter o adversário à nossa vontade. Se trata de uma disputa entre dois sujeitos (ou unidades políticas), na qual ambos tentam mutuamente tornar o outro igual a si mesmo. Assim, na dialética Eu-Outro é que se define o vencedor e perdedor, quem será assimilado e há de perder sua liberdade de ação, e quem passará a exercer domínio sobre outra unidade política.

    Lembremos de Heráclito. No esquema heraclítico, a guerra ocorre como uma espécie de supradivindade, ao definir quem é mortal e quem é deus. Mas, além disso, nesse quadro belicoso, onde, nas refregas se decide o rumo do cosmos, onde o arco e a lira se encontram em uma unidade superior, a batalha é reduzida a um denominador comum, que as engloba e unifica: a própria realidade. Também aqui consta um elemento de unificação, ainda que, ao que parece, o objetivo do conflito não seja a assimilação do outro, mas sua manutenção em um estado inferior, como mortal ou escravo: “A guerra é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ela revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres” (Heráclito DK B 53)

    De todo modo, Charnay, que também destaca o papel marginal da Estratégia, indica uma espécie de confusão geral, de orgia de princípios e finalidades, de libertinagem teórica no campo da Estratégia, em um trecho que só nos pode fazer lembrar de Kant, no prefácio da Crítica da razão pura. A estratégia, nos diz Charnay, teria sido extrapolada de sua seara original e sido invadida por uma legião de aplicações que ultrapassam em muito sua mera origem militar, como o étimo strat- indica (stratia, exército; strategos, generaletc.).

    Se a guerra é assunto de muita importância para ser deixada nas mãos dos generais, como ademais qualquer corpus teórico na mão dos especialistas, isso é insuficiente, nos diz Wyllie, um militar estadunidense da metade do século passado. A guerra é assunto da mais alta importância para a sobrevivência de um Estado, já afirmava Sun Tzu.

    Como resolver a charada? Ao mesmo tempo em que a estratégia resta pouco estudada, ela se espraiou pelas humanidades, ao atingir áreas como administração, psicologia e economia. Os grandes estrategistas, como Foch, Moltke, Jomini, Guibert, Poirier, Beaufre, Luttwak, Gray, etc. Seguem desconhecidos do grande público. Clausewitz encontrou um eco especial, por ter sido comentado por muitos autores importantes no último período. Sun Tzu virou literatura de negócios. Mas não há uma discussão sobre os grandes nomes na mídia e os generais, no Brasil, só são lembrados quando há atritos com o poder civil ou quando da ocasião da compra de um armamento ou das pensões militares.

    O pensamento estratégico segue escanteado ao mesmo tempo que uma forma domesticada é vendia até mesmo em bancas de jornais. Muitas das grandes obras ainda não estão traduzidas e são raridades nas lojas de segunda mão.

    Enviei um artigo para uma importante revista de filosofia sobre estratégia, propondo alguns acertos conceituais das temáticas. Nele, define, seguindo um manual do Exército brasileiro, a Estratégia como a ciência dos meios, ciência que concretiza objetivos axiológicos elaborados por outras disciplinas. Há, em vários autores, uma certa hierarquização dos saberes relativos à guerra. Meira Mattos, famoso general brasileiro, pensa, por exemplo, que a Filosofia Política elabora os objetivos últimos, as mais altas inspirações de uma unidade política, os quais são operacionalizados pela ciência política, ao passo que a Estratégia há de pensar os meios de realizá-los. Essa é uma definição que coaduna com vários autores, como Beaufre e Charnay.

    Quais são os valores mais elevados da nação brasileira, os Objetivos de Estado da República Federativa do Brasil, segundo as Forças Armadas nacionais, pautadas, por exemplo, na Constituição? Igualdade, Liberdade e Fraternidade! Os partidos e agentes políticos, nesse marco, buscam elaborar seus programas e projetos a fim de tornar esse sistema axiológico em programas de governos. A fim de alcançar o controle do Estado, esses partidos se valem de estratégias e de métodos debatidos pela ciência da Estratégia. Mas, quantos políticos, de fato, leram os autores consagrados da seara? Quantos intelectuais desses partidos, responsáveis pelos documentos organizadores que regram sua ação, estudaram essa ciência tão importante? Não muitos, ao que parece.

    Há um silêncio sepulcral e um desconhecimento dessa disciplina que parece ter motivações políticas. Guerra, como se sabe, é um tema popular: está nos jogos, nos filmes, nas histórias em quadrinhos, nas séries. Ma só estudo da guerra é relegado. E, mais ainda, disciplinas conexas das humanidades, que buscam abordar esse tópico, seguem pouco desenvolvidos, como a filosofia e sociologia da guerra.

    Como se sabe, no interior das Forças Armadas reina uma estrita hierarquia, sagrada mesmo, como o nome indica. Alguns até mesmo especulam que o estopim do golpe de 64 foram as crescentes manifestações de insubordinação nas FA. Ora, todo brasileiro homem, maior de 18 anos, tem que se apresentar aos quartéis a fim de ou ser escolhido para servir ou ser dispensado e ficar á disposição do Comando, por exemplo, em caso de guerra: são os reservistas. Será que não haveria uma certa vontade de garantir que esse enorme contingente permanece ignorante do conhecimento sobre a guerra, conhecimento que permitiria que não fossem mais  bucha de canhão, enquanto soldados, mas para serem possíveis pensadores da Estratégia? Será que o conhecimento dos métodos capazes de racionalizar uma prática e garantir seu sucesso, por exemplo, na política ou nas lutas sociais, não seria uma espécie de colchão que amortece o poder político e empresarial de muitos desconfortos?

    São hipóteses que sempre me ocorrem. Exatamente a fim de divulgar os autores da Estratégia, bem como oferecer saídas próprias ao problema e buscar seguir uma interface, já milenar, entre filosofia e Estratégia é que venho dedicando meus esforços. E vocês, leitor, o que conhece de Estratégia além daquilo que diz o Capitão Nascimento em Tropa de elite? Não é tempo de estudá-la?

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