Um espectro ronda o mundo — o espectro do fascismo. Como há cem anos, novamente o mundo encontra-se em um período onde as forças de extrema-direita, desta vez organizadas internacionalmente como nunca antes e potencializadas pelas tecnologias de ponta, se encontram na defensiva. No hoje clássico Labirintos do fascismo, João Bernardo, brilhante cientista social português, apontava como, diante de um cenário de revolta generalizada nas Forças armadas dos países aliados, as burguesias preferiram terminar a Primeira Guerra, e, destarte, garantir a continuidade de seu domínio, a arriscar uma contaminação russa de seus exércitos. Mas, para muitos países, como a Alemanha ou a Itália, o processo de radicalização das massas estava consumado. Derrotados, ali se jogou o destino do planeta, não só pela possibilidade de romper o isolamento da Rússia soviética, mas, também, pelo peso político, econômico, científico e cultural que exerciam esses países na arena global e pelos destinos que experimentariam nas décadas seguintes. Com a crise de 29 e a consequente ascensão das direitas pelo mundo todo, armou-se o cenário da Segunda Guerra, da barbárie pura e simples, do mal na Terra.
Ora, desde 2008, com a crise do subprime, uma situação de outra monta se fez presente no mundo. Ao contrário das previsões catastrofistas dos primeiros teóricos da guerra nuclear, a arma atômica não só não desencadeou a destruição mútua, como vem impedindo a guerra entre as potências e tornando a periferia do sistema que é, ora bolas, periférica, em palco dos conflitos, como possibilitou um dos mais longos períodos de paz, em geral, no mundo. Os conflitos que ocorreram desde então, sangrentos e lamentáveis, se deram nas bordas do sistema. Todo sofrimento humano é horrível e dificilmente quantificável. Se os palestinos sofrem, choramos com eles, mas esse tipo de conflito controlado, não tem o mesmo peso do que significaria uma guerra entre EUA e China, por exemplo.
Retomando, a crise de 2008 e a necessidade de recompor a extração da taxa de lucros em um patamar ainda superior aos prévios, impuseram ao mundo uma nova onda de aprofundamento das condições de vida. Além disso, a ofensiva liberal e de setores oprimidos no campo dos costumes, apoiada pela esquerda, impôs ao mundo uma nova divisão entre setores progressistas e setores reacionários. A reação fascista contra o liberalismo, como há um século, e contra o perigo imaginário da revolução comunista, em um momento de baixa histórica das forças populares no Ocidente, radicalizou uma parte expressiva desses setores, geralmente de classe média, mas contando com apoio expressivo de camadas marginalizadas, exploradas e oprimidas.
A contraofensiva fascista foi cuidadosamente preparada desde, pelo menos, a própria revolução francesa. Os fascistas se opõe ao mundo moderno, se opõe à secularização da sociedade, à libertação das mulheres, à luta contra o racismo, às organizações trabalhadoras e, até mesmo, ao fim das monarquias e da separação entre Estado e Igreja. São, em suma, antimodernos, mas hipócritas o suficiente para se organizarem através das mais finas descobertas tecnológicas.
No campo internacional, o maior apoio a esses movimentos vem da Rússia, convertida de potência socialista a valhacouto da reação. Mas, ao mesmo tempo, ciosa de seu tamanho, defensora de uma mudança no sistema internacional de nações e na ordem unipolar. Do lado dos liberais, seguem os EUA e a União Europeia, com fortes dissensões internas, como os campões da liberdade dos magnatas, apoiando-se em seus vultosos capitais, domínio tecnológico, prestígio científico e intelectual e em armas de ponta. A extrema-esquerda, desde que suas bases naturais na URSS se desfizeram, conta somente com uma China apagada, que cresce em silêncio e lança todas as cartas no porvir.
No caso brasileiro, a social-democracia, como boa garant do sistema, não se empenha a contento em combater os fascistas e seus asseclas e financiadores, de modo que a tragédia brasileira é certa, caso nada seja feito. Com a emergência de um tipo ainda pior que Bolsonaro nas eleições municipais, o caso é que o tabuleiro político é puxado pela extrema direita. Marçal não é, como afirmam alguns, uma figura antissistêmica; muito ao contrário: trata-se de alguém que encarna os valores propagados há décadas pelos liberais, como mudança de mentalidade, self-made man, meritocracia, etc. Marçal encontra apoio justamente porque vocaliza os anseios de uma parcela grande da população que acredita que pode enriquecer facilmente e, destarte, cruzar a linha que separa os relés mortais dos marajás.
Além dos efeitos da crise econômica, das mudanças societais de valores que se assomam no horizonte e da entronização completa dos valores neoliberais, a crise climática se avoluma e vem cobrar seu preço. Quando estas linhas são escritas, não se sabe a intenção dos que ateram fogo no país. Quem, em tempos prédios, fazia com regularidade no país eram os latifundiários, especialmente do setor canaveeiro. Assim, pode-se especular que foram os mesmos que atuaram no mesmo sentido para, por exemplo, elevar os preços de seus produtos ou, simplesmente, praticar terrorismo econômico contra a população, no sentido de aumentar a inflação e desgastar o governo. Seus gastos, claro, serão cobertos pelo Estado. Bolsonaro, em suas redes, chega ao cinismo de afirmar que a origem das queimadas são “aves incendiárias”.
As eleições municipais se aproximam e elas parecem que serão uma derrota histórica das esquerdas, mesmo nos estados mais progressistas do nordeste. A população adere aos discursos liberais e, assim, Bolsonaro e seu PL são alavancados pela mesma mídia que parece combatê-lo. A luta, no Brasil, para esmagar o fascismo será longa e encarniçada. O bolsonarismo não é um fenômeno primordialmente de ordem econômica. Prova disso é que antes mesmo do giro liberal de Bolsonaro e seu encontro com Guedes, quando Bolsonaro ainda era uma viúva da ditadura saudosa de um Estado forte, ele já aparecia bem cotado nas pesquisas. O bolsonarismo é, antes de tudo, um fenômeno ético. Está ligado a escolhas e encaminhamentos existenciais de parcela da população brasileira que nele enxerga uma espécie de i imbrochável, capaz de mandar mulheres para a cozinha, negros para a senzala e homossexuais para o armário, de evangelizar índios e vesti-los, de dominar a natureza e realizar a vocação brasileira para o agro, além de “comer gente”; Assim, o caminho para vencer esse fascismo redivivo é uma remodelação do ethos popular, uma fabricação de cultura e modos. Ora, alterar as percepções de mundo de uma população inteira não se faz, como quer a social-democracia, através de a aparição, a cada dois anos, na TV e no rádio através da propaganda leitoral, mas, sim, constitui-se em tarefa perene, levada a cabo por uma gama de meios, que atuem cotidianamente no forjar das mentalidades. Lula, como chefe da social-democracia, deveria fazer um chamado à militância e o PT, PSOL, PSTU, PDT e algumas agremiações menores investir pesado na formação de novos quadros para o futuro, que militem diuturnamente no sentido de alterar as posições de suas anturragens.
Além disso, somente com lutas sociais expressivas, com greves, ocupações e atos de rua poderemos vencer a direita, para não falar do eventual recurso às armas. Isso passa longe de uma política adotada por parte substancial da esquerda brasileira de eleger parlamentares e prefeitos e esquecer do bê-á-bá das lutas políticas. O campo parlamentar deve ser complemento das lutas, mas não pode absorvê-las.
Em suma, as tarefas são de longo prazo. O neoliberalismo agoniza, o fascismo dá as caras, mas onde está a esquerda?
Nenhum comentário:
Postar um comentário