domingo, 10 de agosto de 2025

Petit IV

 

Ó Petit,


Sinto fogo imenso

Derrete minha bunda

Quando no seu pau penso

Se a Parca iracunda

Seu amor não me conceder

Quero não amar nunca mais

Prefiro morrer!

Se, no da vida cais,

eu não obter

A sua parte de trás

Que o mar me trague

Que o Orco me desvaneça

Só quero que minha mão pegue

Na sua parte e que ela cresça!

Declarei-me já

Agora responda

Devo abrir uma cerveja

Ou preparar morte hedionda?


Primavera de 2024

Do futuro

 Meu estômago já provou

O gosto amargo da miséria

O peso do vazio.

Já sofri as sete pragas

Que me vergaram.

Por hora, são passado.

Mas, no rio da vida,

Onde nos banhamos

Sem repetição,

Quem conhece as misérias

Que me aguardam?

Do futuro, quem sabe?

Do futuro, qual sabe?

Do futuro, qual, sabe?


RP, inverno de 2024

Wabstratinho

 Por tentativa e erro fiz a vida,

Por vezes acertada,

Noutras sofrida,

Mas sempre bem vivida.

De azar e sorte

Fiz carreira

E de estratégia, construí um norte.

Não deixei sobreira

Amei por esporte

Me fiz homem

Me fiz gente

E o se assim não me aceitem

Não faz mal, sou ser, sou ente.

Quando dá medo,

Me torno mais valente.

Medo do arremedo

De amor, medo de não te ver novamente.

Na hora da dor, meu coração por ti bate,

Minha pele por ti sente

Tenho certo que nós dois

Vamos seguir em frente

Como feijão com arroz,

Com amor que não mente.


RP, inverno de 2024

Descrição sumária dos inimigos

 Não,

Não é a fome que me preocupa,

Mas a sede.

A sede de sangue.

Intensa, fatal.

A obsessão com o sofrimento

O modo como se organiza o mundo

Para a dor.

Não há o que baste para saciar

Essa sanha.

Melhor seria se nosso dever fosse

O gozo.

Gozo intenso, gozo forte

Fruir fundo a vida,

Essa brisa que nos leva

Esse furacão que arrasta

Essa tempestade que assola.

Os negadores,

Os anacoretas do desconforto,

Os senhores do tormento,

Os profetas dos seres imaginários,

Os escravos do papel,

Os duques da moeda:

Eis o inimigos que não gozam.

Quando o humano aproveita,

É o próprio tempo que para.

É o tecido do universo

Que conosco vibra.

É a vida mesma que pulsa.

Não,

eles não gozam.


RP, inverão de 2024

Compromisso

 Quase não canto

A beleza da vida

Talvez por que a terra

Me pareça sofrida


Quase não falo

Da graça da população.

Se ela tivesse unidade,

Seríamos nação


Raramente digo

Como é bom respirar.

Pudera: tempo todo

Me concentro em não sufocar.


Mas há os os animais

Os bichinhos, as plantas

O solo mesmo e tais.


Estamos convosco.

Se vencermos,

Terão muito mais.


S.C. verão de 2024

Abstratinho II

 A fumaça eleva-se tórrida

Das plantações.

O sol já deitou seus raios

Que fulminam a terra

Cessando, enfim, o calor.

Mas, nas dobras do peito,

Há uma brasa, um ardor.

Não é solar

Nem puro fruto do coração.

É o desenrolar da vida

E do sentimento,

São os espíritos animais

Levando movimento aos membros.

É o cio da sensação

Que arrebata e conduz.

É o pensamento fixo,

Não nas montanhas ou nos lagos

Ou nos arcaicos paradoxos,

Mas pregado no corpo: no teu.

Mira certa na alma: a tua.

Desejo de expandir o quentume,

De me locupletar

Nas suas reentrâncias e protuberâncias,

De me saciar na tua fonte coberta

Oásis no deserto do ser.


S.C., verão de 2024

Máxima da razão libertina

 Comida e água

Bebida e mamada

Não se nega a ninguém,

Não se nega por nada.


Verão de 2024

Abstratinho

 A carruagem penetra na escuridão da estrada

Me afastando de você.

Outra vez, o mesmo erro:

O espelho que não reflete

A mão que não aperta

A boca que não beija.

Busca que segue.

Prendo a respiração,

E sou carregado para a treva funda.


Estrada, verão de 2023

Petit III

Ó Petit

Gigante

Entre os anões

Não descrito por Dante

Nem por Camões

Quero aprofundar

Nossas relações

Me entremelar

aos seus pelos

Reduzir-me a objeto

Estar aos seus joelhos

Estar sob o mesmo teto

Sentir-te no meu reto

De prazer arrancar-me os cabelos


Outono de 2022


Petit II

 Petit,

Meu amigo

Quero descer

Para abaixo de seu umbigo

Quero ver crescer

A vara túrgida

Me encontrar enfeitiçado

Pela peça úmida

Pelo pau rosado

Acima dos giôlhos

Ó, sim, gozar

Até virar os olhos

Me espatifar

Na pedra em riste, meu abrolho


Outono de 2022

Harém

 

Pica e cu,

Cu e pica

É isso que me excita


Foder de lado

Uma bunda bonita,

Um cu rosado


É o paraíso,

Como o retorno de Jesus.

Me desfaço de riso

De comer tantos cus


Primavera de 2021


Tesão

 

E na hora

Da loucura mais intensa

É sua pica que me chama

É em ti que minha mente pensa

É sua piroca que me inflama


Primavera de 2021

Primaveril

 

Ó mancebo,

Como é formoso

Mal concebo

Um corpo tão vistoso


Quero mergulhar nessa fonte

Quero beijar essa boca

Ver-te nu de fronte

Te amar até ficar louca


E, na hora do desatino, possuir-te, ó menino,

Completar nosso destino,

Me perder no seu caminho


Primavera de 2021

Petit

 Alexandre Tuma Júnior

Sei que as horas passam

Sei que o mundo é duro

A hora não chegou de desistir

É preciso perseverar

É preciso insistir

Ser professor não é brincadeira

Há a estafa, as brigas, a canseira


Precisamos de heróis cotidianos

Heróis que façam valer a pena

A dor, o cansaço, a quebradeira

Você não precisa de um poema épico

Coragem você já tem


Precisa perseverar, ir além

Assim, a escola ganha um soldado

Alguém que não pode ser comprado

Alguém que só vai contribuir


Sem medo, fazer o cotidiano cintilar

Nada de fugir:

Quando fores professor, o mundo há de ganhar

E tu serás admirado.

Então sorria, suporte o fado


Inverno de 2021

Profissão de fé II

 

Preciso de uma viado

Com muito fogo no rabo

Uma chama que se alimenta

Das picas que experimenta

Alguém tão libertino

Que não faz do amor escrutínio

Alguém tão fogoso

Que o cu seja meloso

Alguém para ser amado

Alguém para chamar de meu viado


RP, inverno de 2021

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Malazarte

Será por pena,

Senhor deus,

Será por amor?

Será por maldade,

Será sem candor?

Que não respondeis

Nossos apelos

Por um mundo

Sem dor?

Gritam as crianças

De Gaza

Choram abastância

As senhoras da Ucrânia

E não nos envia graça

Nem abundância.

Penso que isso,

Senhor deus,

É indicativo

De sua inexistência.

Quisera ter companheiro perene

Mas a vida,

Ah, a vida,

Ela me preme.

A verdade, senhor deus,

É que estamos sós,

Ocupados conosco.

A verdade,

Senhor deus,

É que nós somos nosso

Maior problema

E nossa solução.


A verdade? Que sabemos da verdade?

Sabemo-la toda, desde o primeiro

Trago de ar.

A verdade, hei-la, incômoda,

No teu calcanhar.

Em nosso mundo,

A verdade é uma nota de cem.

E nós, os despossuídos,

Os de baixo, carranca e verminose,

Nós somos a mentira.


- Verdade?

- Não, mentira malazarte.


RP, inverno de 2025


sábado, 2 de agosto de 2025

Retrato do militante quando jovem

A entrada na Universidade: a vida em Franca

Aprovado no vestibular para História na UNESP-Franca, mas reprovado para a USP, e com notal mil na redação do ENEM, me dirigi àquela cidade praticamente sem recursos, com R$ 50,00, que ganhara da mãe de um amigo e o mesmo valor que minha mãe me dera. Além disso, fora-me concedida a bolsa para estudar Direito na Universidade de Franca pelo PROUNI, acúmulo hoje proibido, mas, à época, na primeira turma desse programa, perfeitamente legal. Assim, minha vida era corrida: pela manhã, História na UNESP; à noite, Direito. Como não possuía dinheiro, não podia fotocopiar os textos nem mesmo me dar ao luxo de ir de ônibus até a UNIFRAN; ao passo que eu estava como agregado em uma república no centro, bem perto da UNESP, a UNIFRAN se situava no começo da cidade. A UNESP não me concedeu bolsa, por razões burocráticas, somente um auxílio aluguel de R$ 100. Assim, com preconceitos contra a moradia estudantil da UNESP, graças aquilo que ouvira falar, consegui dividir um quarto com um amigo de curso no centro da cidade. Com contas, totalizava exatamente o dinheiro da bolsa. Para comer, como eu cursava as duas universidades e não tinha tempo para trabalhar, dependia de minha família, que me enviava entre r$ 20 e R$ 30 reais por semana, insuficiente para almoçar e jantar no r.u. e aos finais de semana. Situação insustentável, especialmente pelas longas caminhadas noturnas que o regresso da UNIFRAN exigia, logo me vi forçado a abandonar Direito e me focar somente em História.

O curso de Franca era dividido, por parte dos professores, entre os adeptos da história das mentalidades, organizados em torno de um foucaultiano de direita, Jean Marcel, e aqueles mais tradicionais (historiadores econômicos, políticos, culturais, etc.), alguns marxistas muito bons, como o professor Moacir Gigante. Sem dinheiro para as fotocópias, eu dependia dos livros da biblioteca, das aulas e de algum eventual empréstimo de textos a fim de seguir o curso, no que me dei relativamente bem. Eu entrara na universidade marxista e busquei me aproximar do professor Alberto Aggio, um comunista que se manteve no PPS (partido surgido da liquidação do antigo PCB após a queda da URSS), gramsciano, que eu já ouvira falar em Ribeirão e até mesmo tinha assistido uma palestra na UGT. No Seminário o tema de debate era uma cooperativa que se estava formando em um bairro pobre de Ribeirão, e eu resolvera estudar autogestão com Aggio. Como ele me ignorou, pedi orientação ao nosso professor de história econômica, Pedro Tozzi, que me passou uma bibliografia a qual orbitava em torno da experiência iugoslava, além de textos sobre Bakunin, Produhon, etc. Eu almejava, como já dito, me tornar pesquisador e pretendia enviar um projeto FAPESP.

Certo dia, na aula de Antropologia, com a professora Eliana Amábile Dancini, um estudante mais adiantado no curso se deteve na janela da sala e ficou ouvindo a aula. Eliana perguntou-lhe se ele ainda lia Foucault. Foi a primeira vez que ouvi falar nesse nome. Ao mesmo tempo, eu tivera acesso, na biblioteca da UGT, ao livro Reflexões sobre o socialismo, de Tragtenberg, um panfleto em defesa do socialismo libertário. Meu trotskismo já mambembe vacilou. Na minha sala, eu, que começara o ano defendendo Lênin e Marx, rapidamente me aproximei de uma dupla de estudantes anarquistas de Campinas, Petras, punk clássico (até hoje: velho punk!) e Bruno., que tinha uma veia artística. Eram dois estudantes de classe média, mas que não precisavam da moradia ou de bolsas de permanência. Bruno era vegetariano. Boa parte do primeiro semestre foi gasto com discussões com eles sobre anarquismo e revolução, arte, perspectivas de vida, além de eu ter acesso à pequena biblioteca que possuíam. Foi quando conheci Malatesta e Fabbri. Somado às leituras do projeto de pesquisa, logo me dirigi ao socialismo libertário.

Bruno e Petras queriam intervir na cidade através de meios artísticos. Franca, cidade muito conservadora do interior de São Paulo, ostenta no cruzamento entre duas avenidas a lastimável estátua de um padre de sotainas, com uma cruz na mão, a batizar um índio ajoelhado, em posição de submissão. Decidimos agir contra essa estátua. Assim, passamos a frequentar a praça defronte fantasiados a fim de levantar horários do local e, assim, descobrir a melhor hora para fazermos algo contra ela. A ideia era banhá-la de vermelho e vestir o padre com roupas da Ku Klux Klan. Íamos fantasiados até o local. Eu, já dissidente sexual declarado, me vesti de mulher e mulher fumante. Logo, estava viciado em cigarros. O ato contra a estátua, entretanto, nunca ocorreu; nossa expulsão o abortou.

Havia, na minha sala, uma jovem  da qual me aproximei, Nádia Paiva Neves. Ela, como eu, também cursava Direito, além de História, embora em outra universidade, o Brejão, faculdade municipal. Discutíamos muita literatura. Ela, filha de gerente de banco, plena de desconfianças em relação à esquerda e um tanto quanto ancorada em preconceitos que poderíamos dizer de classe, me apresentou boa parte das leituras literárias que fiz ao longo do ano, como Dickinson, C. Fernando Abreu, Camus, etc. Além disso, ela me fez conhecer um veterano de Relações Internacionais, cujo nome se esvaiu no movediço de minha memória. Esse estudante, típico produto da direita vira-lata, era anarco-capitalista e tinha como meta de vida imigrar para Las Vegas e trabalhar em um cassino lavando pratos. Mas, já concluinte do curso, tinha uma boa bagagem teórica. Assim, por meio dele conheci o estruturalismo, o que coadunava com meu recente interesse em Foucault. Pedi-lhe uma lista de obras relativas ao temas, a qual ele me forneceu; li alguns livros da lista, mas minha expulsão não permitiu que eu concluísse essa lista de leituras.

Outra porta de entrada para Foucault foi o professor Jean Marcel Carvalho França, filósofo de formação, mas professor de História do Brasil Colonial. Conforme dito, ele era foucaultiano, mas, corria à boca miúda, ligado ao PSDB. Fumante inveterado, dava aulas com o cigarro aceso, em uma época anterior às leis antitabaco paulista, instituídas por Serra lá em 2009. Discuti bastante proveitosamente com ele vários tópicos. Lembro-me de um dia no qual, ao buscar me introduzir no pensamento de Foucault, eu emprestei da biblioteca o livro de Deleuze sobre ele. Eu costumava passar as tardes após as aulas matutinas no vão central da universidade, nas escadarias que os estudantes apelidaram de Várzea, lendo obras, crescentemente filosóficas. Assim, Jean Marcel me flagrou durante minha tentativa de decifrar esse livro de Deleuze. Conhecendo minha vereda novidadeira pelo mundo das letras filosóficas, ele me respondeu: “Você não vai entender esse livro”, o que me fez rir gostoso, em um surto de prepotência juvenil; ele tinha razão, e até hoje considero esse um dos livros menos recomendáveis para quem quer conhecer Foucault, visto ser um volume dificílimo, eivado no vezo deleuziano de redação.

Outro estudante com o qual eu mantinha um debate produtivo era Aruan, um católico fanático, que, na última vez que vi, em 2008, tinha se tornado olavista e reclamava do socialismo que o PT teria metido o país. Soube por terceiros que agora trabalha como oficial da P.M. Eu já havia adquirido, conforme dito, o hábito da escrita, mas, agora, me dedicava a textos não só literários e lúdicos (como os de RPG), mas a textos filosóficos, dado que, conforme ia me aprofundando no pensamento de Foucault, meu interesse ia se deslocando de História para Filosofia. Em maio de 2005 eu já estava convencido a trocar de curso e cheguei a enviar um e-mail para a UNESP, em Marília, a fim de me inteirar das possibilidades de transferência. Escrevi, nessa época, aquilo que considero ser meu primeiro texto genuinamente filosófico, com alguma sustentação, uma defesa do ateísmo. Eu e Aruan passamos horas prazerosas debatendo esse e outros textos, a maioria quedando inconclusos ou meros projetos.

Nos últimos dias do primeiro semestre, li Raça e História, de Lévi-Strauss, texto o qual muito me agradou. No mesmo período, os estudantes souberam que, no dia 02 de agosto, o recém-empossado reitor, viria a Franca a fim de visitar a unidade; especulava-se que ele falaria algo relativamente ao novo campus. A UNESP-Franca era sediada em um convento do século XIX, um prédio todo feito para a vigilância, organizado em torno do modelo do panóptico. Em péssimas condições, funcionava sem alvará do Corpo de Bombeiros; partes dele estavam interditadas, outras estavam literalmente caindo. Havia um risco real de desabamento. Há mais de 25 anos o governo prometia a construção do novo campus, feito que nunca se realizava. Era uma espécie de lenda urbana do campus. No último dia letivo do semestre, assim, uma assembleia foi convocada a fim de debater o que seria feito para recepcionar o reitor, que viria justamente no segundo dia letivo do semestre seguinte. Assembleia esvaziada, deliberou-se que cada qual, grupo ou indivíduo, fizesse aquilo que lhe apetecesse. Bruno e Petras tinham uma ideia, se me a apresentaram, como também a outros estudantes. Concordamos em agir.

Nas férias, fui para Piracicaba, passar uns dias na casa de um amigo meu. Fomos de carona de Franca até Ribeirão, passamos alguns dias, depois descemos até Piracicaba, também de carona, minha primeira experiência com esse modelo de viagem. Na mala, levei O ser e o nada, de Sartre, e Psicologias, de vários autores. Passei gostosamente o tempo em Piracicaba lendo esses dois livros.

De volta a Ribeirão, Felipe, d’O trabalho, me chamou para um dia de militância em Jaboticabal. Apresentei o plano de ação contra o reitor, e ele, polidamente, disse se tratar de má ideia. Ao mesmo tempo, fi-lo saber de minha recente conversão ao socialismo libertário, imputando-a a Tragtenberg. Emprestei-lhe as Reflexões sobre o socialismo, livro o qual ele nunca mais me devolveu. Ainda em julho, participei, como mesário, das eleições internas do PT, última atividade partidária minha até a presente data.

Voltei para Franca no final do mês. Dia 02 de agosto, fizemos o ato contra o reitor: ao final da Congregação aberta onde ele estava, um estudante o interrompeu, estendeu um jornal no jornal no chão e se pôs a defecar; outro estudante entrou no Salão nobre com um balde e pôs-se a vomitar, enquanto vários outros se dirigiam à mesa e depositavam coquetéis molotov sobre a mesa, enquanto dizíamos palavras contra a universidade. O reitor, meio sem entender nada, ficou estático, bestializado. Abandonamos o campus e fomos almoçar. Quando retornamos, havia um enorme alvoroço, justificado, na universidade. Alguns professores queriam votar a expulsão dos manifestantes no mesmo dia, na sequência da Congregação. Estávamos no C.A. de História reunidos, esperando o desenrolar dos fatos; não fossem os representantes discentes do curso de Direito, que lembraram aos congregados a necessidade de uma comissão de sindicância, teríamos sido expulsos no mesmo dia. Um jornalista, que estava na Congregação no momento do ato, fez o furo de sua carreira; mais de 50 mil exemplares do Comércio da Franca, gazeta local, foram rapidamente comercializados, um número muito elevado para uma cidade de 300 mil habitantes, e mais ainda foram impressos.

A Assembleia de estudantes convocada após o ato foi muito tensa. Salão nobre absolutamente lotado. Não falei ao microfone; era demasiado tímido e demoraria anos antes de conseguir tomar a palavra em uma assembleia tão tensa. A direita do campus, a qual, pode-se imaginar, é grande em um local com os cursos de Direito e Relações Internacionais, nos acusava de ter “cagado em nossos diplomas”, de termos jogado o nome da universidade no lixo, de termos lhes destruído a carreira, etc. Sobressaiu-se em nossa defesa Isáias, um estudante concluinte de História, evangélico progressista, que fez nossa pronta defesa. Saiu vitoriosa dessa assembleia a posição contrária às expulsões, por não farta margem.

O M.E. ficou dividido, bem como partes da esquerda brasileira. Fato marcante naqueles anos, minha tia, que morava na Espanha, viu a notícia na TV espanhola. Enfim, houve muita repercussão. Poucos saíram em nossas defesas; de partidos, somente o PCO e siglas menores. PCdoB, majoritária no DCE da UNESP, nada fez, aceitando-a tacitamente.

A luta contra as expulsões se deu, assim, em um clima duro. A maioria dos professores a apoiava, à exceção daqueles mais à esquerda. Setores da Igreja católica também ficaram ao nosso lado. Lembro de uma reunião que tivemos com um padre; após uma exposição melancólica do professor Moacir Gigante, o padre nos disse: “Somos contra a expulsão, mas achamos que vocês serão expulsos. Preparem-se para outros meios de luta”, dando a entender que nos armássemos. Dois advogados locais nos contataram para a nossa defesa na sindicância; além dessa, a universidade abriu um boletim de ocorrência. 

Ainda no mês de agosto, calhou de um estudante da pós-graduação organizar um evento e convidar como palestrando o marxista heterodoxo português João Bernardo. Assistimos a sua palestra e, instado por um dos nossos, manifestou-se contrário à expulsão, Redigiu um artigo, publicado em vários veículos, inclusive na extinta Caros Amigos, onde não somente situava o ato na esteira da arte moderna, como nos defendia das expulsões e instava a reitoria a não nos punir. Esse texto me foi um farol por longos anos, a ele sempre retornando e sempre o recomendando àqueles que eu conhecia.

Fomos convidados para participar de um debate em Marília sobre as expulsões em meados de setembro. Petras e Bruno, os principais arquitetos do ato, já tinham abandonado o curso. Eu e uma amiga fomos até Marília. Aproveitei minha estadia para frequentar aulas do curso de filosofia. Vi uma aula sobre a Crítica da razão pura, de Kant; e outra sobre Peirce. Além disso, assisti a uma palestra com a Professora Ítala D’Otavianno, do CLE-UNICAMP. Nessa época eu já estava em contato com o Tractatus, de Wittgenstein, bem como com uma introdução ao pensamento dele, de A. C. Gray. Eu havia lido longos trechos de sua biografia. Wittgenstein e Foucault foram filósofos com os quais tive identificação pessoal, por muitos anos me comparando com ambos e tomando-os como modelos de intelectual.

O ano corria e as eleições para o C.A. chegaram. Resolvemos montar uma chapa, na qual eu, mesmo tendo como certo que seria expulso, adentrei. Ela era montada por um grupo decididamente de esquerda, a maior parte marxista, exceção feita de mim mesmo e de outros. Articulamos no campus com outras chapas de esquerda dos demais cursos (Serviço Social, Direito e Relações Internacionais). O debate político em Franca era difícil. O curso de Direito, especialmente, atrai jovens conservadores distintos daquilo que hoje chamamos de “tiozão do zap”. São conservadores instruídos, intelectualizados, ricos, heterossexuais, brancos, religiosos distintos do mero reprodutor de preconceitos e posições alheias, muitas vezes contrárias aos seus próprios interesses. Fazíamos reuniões com os membros de todas as chapas, produtivas, onde divergências grandes eram apresentadas, mas nada que impedisse uma frente de ação. As chapas à esquerda de História e Serviço Social venceram, as demais sendo derrotadas.

Boa parte do segundo semestre foi gasta na luta contra as expulsões, em reuniões, depoimentos, de modo que descuidei um pouco do curso e das leituras, mas sempre buscava me manter intelectualmente ativo. Em novembro, saiu a decisão da comissão de sindicância. Expulso da universidade com 18 anos, retornei a Ribeirão (não sem deixar de levar na mala uma enorme quantidade de textos do curso), nas férias escrevi meu primeiro artigo científico sobre “Modernidade e pós-modernidade”, me baseando em diferentes autores, sobretudo Harvey e Chauí. 

Em 2006, já decidido a cursar filosofia e estudar Foucault, peguei emprestado de bibliotecas em Ribeirão o Em defesa da sociedade, livro o qual me marcou profundamente. Com a professora Eliana, que morava em Ribeirão, pegue emprestado As palavras e as coisas e As etapas do método sociológico, de Aron. Além disso, eu já começara a constituir uma modesta biblioteca. Li Descartes, Bacon, Platão, muitos textos do curso de história e muita literatura, como Sartre, Cervantes, Borges, etc. Além disso, adquiri um caderno e comecei a escrever profusamente poesias nele. A fim de pagar os advogados em relação ao processo de expulsão, eu passei a vender um encarte de poemas que escrevi, intitulado Alegria Plástica; este pode ser considerado meu primeiro livro, ainda inédito.

Passei a frequentar as bibliotecas municipais de Ribeirão, inclusive aquela do Museu de Artes. Nela emprestei Hegel, livros de semiótica, de crítica literária de psicanálise. Basicamente, eu lia tudo que me caísse nas mãos. Em uma das visitas ao museu, fui informado de que se encontrava aberta uma chamada para novos artistas. Pensei em expor, já que além de poeta, eu possuía alguns trabalhos em artes visuais; mas os valores necessários a fim de se fotografar as obras era excessivo; sem dinheiro, dificilmente um artista plástico consegue sucesso, lição que logo aprendi.

Passei o ano de 2006 entre Franca e Ribeirão. Ainda no começo do ano, uma delegação do PCO foi até Franca a fim de desenvolver uma série de reportagens sobre o ato. Alguns de seus militantes, estudantes na UNESP-Araraquara, estavam sofrendo sindicância e também ameaçados de expulsão. Fui com eles até São Paulo e dei uma entrevista, a qual ficou no ar em seu site por muitos anos. Lá também tive a oportunidade de conhecer, na república dos militantes da juventude do partido, estudantes mais adiantados no curso de filosofia da USP, com os quais mantive profícuo diálogo.

Na moradia da UNESP, local que eu passara a frequentar, tive produtivos debates sobre socialismo, marxismo e teoria em geral. Um dos calouros do curso de História em 2006, apelidado de mano Mojica, punk paulistano, influenciou-me decisivamente em vários pontos, teóricos e práticos, já que me tornei vegetariano por sua influência e cimentei as crenças libertárias.