Introdução:
a carta de Foucault a Rolf Italiaanander
Os Dits et
écrits (Ditos e escritos) recolhem toda a produção de Foucault, à exceção
de livros; até mesmo algumas cartas estão lá expostas ao pesquisador. É sobre
uma destas cartas que recaí nosso interesse. No Natal de 1960 Foucault enviou
uma carta à Rolf Italiaanander, carta esta muito interessante (FOUCAULT, 2001
pp. 257-260). Italiaanander foi um intelectual e artista alemão, com múltiplas
produções. Especialmente importante para nosso fito é o fato dele ter se
aproximado da arte africana, fazendo inúmeras viagens ao continente negro,
especialmente para o norte da África, enquanto membro da Legião Estrangeira, e,
mais tarde, para a região do Congo Brazzaville, região tropical do continente,
onde foi ensinar aos nativos técnicas artísticas, como a gravura sobre o cobre.
Italiaanander tem uma vasta produção de obras etnográficas e, até mesmo, de
livros para jovens.
Na epístola
referida, Foucault afirma algumas coisas interessantes. Foucault fala da
amargura de um mundo em que tanta coisa acontece sem que se tenha controle
sobre os fatos. Afirma ainda que havia muito a contar a Italiaanander, e
somente a ele. Comentando um dos livros para jovens de Italiaanander, Foucault
fala de tempos originários (originaires), que estavam bloqueados graças
a palavras vazias. Trata ainda da démarche que conduz a homens livres.
Então, ele comenta sobre a colonização, abordando os jesuítas, os quais, na
América então colonizada, tomavam os selvagens por animais, enquanto eram
considerados deuses pelos autóctones. Foucault assevera que Rolf Italiaanander
é um europeu pronto a reencontrar deuses em uma humanidade onde estes estão
morrendo. Então, ele diz “Nossa era é de tal modo feita que a inteligência não
tem outra aplicação que questionar a razão até o suplício e de retirar de seu
sonho (sonho no qual Goya representa o homem moderno) a potência dupla e
irrepreensível que ela analisa” (FOUCAULT, 2001, p. 259).
Comentando a experiência
do intelectual alemão em Brazzaville, onde ele foi ensinar técnicas artísticas
aos nativos, conforme apontado, Foucault assevera que eram jovens de condição
social dificultada pela experiência colonial aos quais se dirigia o ensinamento
de Italiaanander. Estes jovens, que agora dominavam uma técnica simples,
repentinamente se sentiram estrangeiros em um mundo onde os europeus já viviam,
e, de repente, um cosmos mudo se abriu a eles. Segundo Foucault, que critica a
noção de primitivo e sua suposta psicologia, algo que Fanon também elabora, as
pesquisas africanas do artista tedesco não se contentavam em descobrir, nem em
converter em prática; elas serviriam para aportar uma renovação e despregar-se
do passado e restabelecer a verdade do presente, de modo que Italianaander
ensinaria para aprender: “Preparar para mais tarde uma língua com a qual a
África exprimirá toda sua verdade” (FOUCAULT, 2001, p. 260, a tradução é
nossa).
Para Foucault, não é por
que foi Italiaanander que ajudou a preparar as gravuras que elas não trariam
novidades aos europeus. “A troca”, diz Foucault, “é a condição do futuro do
mundo moderno” (FOUCAULT, 2001, p. 260). Não se deveria utilizar o termo
folclore, que seria uma hipocrisia dos ditos civilizados:
“A verdade da África —
esta também dos primeiros escultores das florestas —, é a história da África
mesma que nos narrará, et, claro, na língua que se forma agora. Ensinar a arte
gráfica aos africanos não significa desfigurar uma arte milenar, mas, ao
contrário, desenvolver a forma de expressão de sua verdade” (FOUCAULT, 2001, p.
260)
Foucault
termina a missiva saudando Rolf Italiaanander e sua ausência de preconceitos em
relação aos africanos. A carta traz traços de poesia, tornando sua leitura
prazerosa.
No
Vocabulário Foucault (CASTRO, 2006) não encontramos nem os verbetes
África, nem colonização, muito menos africanos. Tampouco no Le Vocabulaire
Foucault (REVEL, 2002) estes termos aparecem. Além do mais, em nossas
pesquisas, que duram já uma década e meia, não constatamos no pensamento de
Foucault uma reflexão sobre a África, embora ele lá tenha residindo quando de
seu período na Tunísia. O aparato colonial tampouco foi objeto de reflexão,
malgrado as tentativas francesas de manter suas colônias na Indochina e na
Argélia, acontecimentos estes que, certamente, não passaram despercebidos a
Foucault. Além do que, era na França que se desencadeava um dos principais
movimentos de afirmação da filosofia africana, como nos relata Montoya (2010).
Mas,
cremos, na carta a qual acima demos as linhas mestras, pode-se tentar ensejar
uma suposta posição de Foucault sobre a filosofia africana, a qual somaremos
outros textos do pensador francês, a fim de chegar a dita posição.
Foucault
e arte (e filosofia) africana: os
gregos e a estratégia
Na
missiva destaca-se a felicidade e a receptividade de Foucault em relação a arte
africana. Ele parecia não considerá-la inferior ou menos refinada que a arte
européia, como aquelas figuram que adornam e convidam à reflexão em nossa edição
de La philosophie bantoue, do padre Tempels. Foucault e Italiaanander
organizaram, mesmo, uma exposição de arte africana quando da presença do
intelectual francês em Hamburgo. Foucault vê a arte africana com bons olhos, e
critica a colonização por tentar reduzir o africano ao papel de primitivo,
termo este que abunda no livro de Tempels, missionário belga em África. Ao contrário, Foucault entende que uma
cultura deve ser aberta às mudanças, o que seria uma condição das sociedades
modernas, e saber empreender trocas com o meio. Abrindo a cultura francesa às
influências africanas, podemos especular que Foucault pensaria o mesmo da
filosofia africana, que, atualmente, existe sem sombras de dúvidas, e vem
formando intelectuais com voz global, como Mbembe. Assim, se os europeus têm o
que ensinar em matéria de arte e filosofia aos africanos, também têm o que
aprender.
A
arte africana se comunicaria com um tempo originário, diz Foucault. Talvez o
mesmo possa ser dito da filosofia africana. Alguns autores, como Obenga (apud
OCHIENG-ODHIAMBO, 2010, p. 12), insistem nas conexões entre o grego sophos,
sábio, de onde vem a própria palavra filosofia, e o egípcio sebe,
que indica a mesma coisa. Além do mais, tanto Tales quanto Platão viajaram para
o Egito, somado ao fato das constantes trocas comerciais e, certamente,
culturais entre as culturas, o que pode dar azo a especulações de toda ordem.
Não temos condições de julgar a pertinência destas colocações. O mais certo é
que os gregos herdaram algo das demais civilizações da bacia do Mediterrâneo e
do Oriente próximo. Mas ao mesmo tempo, como vários autores apontam (KIRK et
ali, 1994; FARRIGNTON, 1961), se os gregos herdaram aspectos das culturas
orientais, eles também souberam construir novas teorizações, especialmente abstraindo
as meras técnicas, como a metalurgia, para dar-lhes o caráter de ciência, isto
é, de busca por princípios. A polêmica sobre a origem egipcía da filosofia
reorganizaria todo o saber filosófico, posto que seriam em novas fontes que
deveriam ser buscados os textos seminais, hoje incontestavelmente gregos; a
egiptologia, disciplina pouco afeita aos estudos filosóficos, se tornaria
basilar, e compreender a mitologia dos povos do Nilo assomaria como verdadeira
Meca, substituindo os velhos textos de Hesíodo e sua influência no limiar do
pensamento filosófico.
Talvez fosse
com referência à origem africana da humanidade que Foucault se referisse quando
utilizou o termo "originário". Mas este pensamento, que coloca um
fundamento no umbral de um pensamento, é completamente estranho às produções de
Foucault. Em muitos textos, como por exemplo a Archéologie du savoir
(1969), e Nietzsche, la généalogie et l'histoire (1972) a noção de
fundamento (arché) é muito criticada. Foucault é conhecido por salientar
as descontinuidades, as rupturas, uma herança do pensamento de Bachelard e
Canguilhem. A ideia de um fundamento suprahistórico, ou de um suave
desenvolvimento, como quer a tradição hegeliana, é alvo de seu crivo.
Por que estes
autores insistem neste caráter egípcio da origem da filosofia, egípcios estes
que são tomados como uma população negróide (DIOP, 2010)? Para humanizar o
negro, mostrar-lhe como capaz de pensamento. É de conhecimento comum que a
escravidão que se abateu sobre os negros os subtraía de qualquer traço humano,
reduzindo-os ao caráter de coisas as quais se pode manejar ao bel prazer, que
podem ser vendidas, marcadas, mortas. O mérito dos autores que começam com o
debate sobre filosofia africana é o de defender que o negro possui plenas
capacidades de pensamento crítico; isto ocorre em meio ao colonialismo o mais
cruel, e prossegue por todo o século XX, seguindo atual até os dias presentes.
Foucault
afirma que os ensinamentos de Italiaanander serviriam para, mais tarde permitir
que os africanos se exprimissem em sua própria língua, expondo sua verdade.
Alguns estudos, como o de Tempels (1961) tem um papel pedagógico, salientado no
final do livro. Descrevendo a ontologia banto, Tempels intenta que os próprios
negros se tornem conscientes de sua cultura, a fim de encetar uma civilização
própria. É claro que se lhe pode reprovar o intuito por trás, quer dizer, de
colonizar, mais especificamente, de introduzir o cristianismo no seio dos povos
bantos. Mas seu estudo guarda o mérito de reconhecer no negro uma racionalidade
de mesmo valor que seus colonizadores. Outros estudos, e de Montoya (2010) e
textos que podem ser conferidos no site do professor Wanderson Flor, da
UnB,
também salientam este aspecto. É o caso de se indagar, no entanto, se existiria
uma filosofia africana não no sentido de produções hodiernas, mas, sim, de uma
autêntica tradição africana. Para alguns, como Obega, a filosofia ela mesma
seria de origem africana. Autores diversos vão salientar o papel da noção de ubuntu,
e Tempels mostra como a própria organização social dos bantos é calcada em uma
ontologia própria. A nosso ver, a questão segue polêmica. O fato de se tratar
de uma tradição até bem pouco tempo ágrafa ou versada no árabe dificulta as
coisas. No campo da História, no entanto, houve um desbloqueio epistemológico a
fim de possibilitar o fabrico de documentos através da história oral. Não seria
o caso da filosofia incluir também através da oralidade produções filosóficas?
Basta lembrar que uma das figuras fundadoras do fazer filosófico, Sócrates de
Atenas, não deixou uma única linha escrita, sendo famoso pela maiêutica, arte
do dialogo dirigido. Assim, querer excluir as produções africanas somente pelo
fato de algumas dentre elas serem de tradição oral parece um contrassenso improdutivo,
a menos que se queira aplicar o veto também a Sócrates e seus discípulos, como
Platão e os megáricos.
A
questão, no entanto, é um pouco mais profunda, de caráter metodológico, com
implicações políticas. Heidegger, o filósofo do nazismo, propõe que a linha
mestra para se descobrir o que é filosofia passa pela genealogia do nome, que é
grego. Assim, a história da filosofia seria uma linha que vai de Tales até
Onfray, no tempo presente. Outras produções, por não serem desta linhagem
ocidental, ou, ainda melhor, européia-norte-americana, deveriam ser excluídas.
Talvez, mesmo, tudo que não seja grego ou alemão já não possui pedigree
para ser considerado filosófico, dado que Heidegger considerava que a
verdadeira filosofia só é feita nos idiomas helênico e teutônico, um disparate
o qual Palácios (1997) analisa bastante negativamente, e com o qual
concordamos. Assim, produções fora do que poderíamos chamar de eixo do
Atlântico Norte estariam excluídas do fazer filosófico. Ora, esta é uma velha
história. Já Hegel (1983) afirmava que não seria autêntica filosofia aquela
chinesa, mas, sim, filosofemas. Hegel, contudo, escreve no limiar de um mundo,
e o mesmo pode-se dizer de Heidegger. Já não existem colônias políticas e,
desde a grande Revolução Francesa, há um movimento que intenta democratizar o
mundo, afirmando a igualdade radical de todos os humanos, independente da cor
de sua pele, sexo, orientação sexual, etc. Então, se todos possuem as mesmas
capacidades, qual seria o motivo de vetar o direito à filosofia a uma categoria
de seres humanos? A verdade é que Heidegger se inscreve em um outro registro,
este de pensadores não guiados pela idéia de emancipação, mas, sim, de conflito
entre civlizações; aos alemães, tidos por ele como os gregos modernos, compete
guiar o mundo, um povo que seria o autêntico Führer da humanidade já
cindida entre senhores e escravos; não à toa, o pensamento de Heidegger é
utilizado pelo espectro da extrema-direita xenófoba, que intenta privar as
pessoas do direito de melhorar sua condição de vida, tal como aponta Farias
(2017).
Esta
via de interpretação, que quer estabelecer uma linha histórico-causal na
história da filosofia, pode se sentir incomodada assim, em abarcar outras
produções. A outra via, que é a de Tempels e da filosofia africana vai afirma
uma outra coisa: a filosofia é própria ao modo de ser dos humanos neste
planeta, tendo como fito a resposta a questões fundamentais, como o que é bom,
o que é belo, o que deve ser feito, o que é o ser, enfim. Enquanto tal, não existiria
uma díade de povos que filosofaram e povos que não filosofaram, mas, sim, uma
plêiade de autores, temas e produções que abarcariam a diversidade da própria
espécie humana. Esta posição parece ser decididamente mais democrática, se
inscrevendo em um registro todo outro em relação ao heideggeriano. Seria
própria a um mundo com múltiplas vozes onde as diferenças não são sinal de que
alguns irão dominar e outros serão escravos, mas, sim de multiplicidade, de
valorização e acolhida do outro. Podemos chamar esta via de democrática.
Contudo,
ela não é a nossa. A Montoya (2010) e Tempels (1961) falta, talvez, a
consciência da própria colonização. Ela se deu nos marcos de um conflito, de
lutas múltiplas entre civilizações, classes sociais e gêneros. A colonização e
a minoração de outros seres humanos, reduzidos a condição de objetos, vêm
responder a imperativos de toda ordem. O fato da filosofia ser afirmada como
privilégio de alguns povos, do homem branco, não pode ser desligado das noções
de que a filosofia representava o ápice da produção intelectual humana. Há uma
linha interpretativa recente (LUIZ, 2019; LUIZ, 2017a; LUIZ, 2017b) que vem
afirmando caráter profundamente político da filosofia ao tomá-la como uma estratégia.
O conceito de
estratégia tem larga história; aqui o utilizamos desde uma perspectiva
foucaultiana, precisando assim que se trata de uma noção belicosa, que envolve
tomar a história e as sociedades como lugares de enfrentamento; uma estratégia
histórica. Para Foucault, dado os marcos da luta geral que envolve as
sociedades, cada movimento é tático e, como o devir é belicoso, os resultado,
sempre parciais, são estratégicos. Assim, há de se ver que, na sociedade grega,
a filosofia se somou ao movimento que colocava fim ao mundo de Hesíodo e Homero
e ensejava as forças que redundariam no século de Péricles e, na seqüência, na
civilização helenística. Em Hesíodo e em Homero, além de Arquíloco, dentre
outros, são os deuses, as moiras ou outras forças que governam o kosmos;
a vida humana é joguete de forças maiores. Ultrapassar seu limite, seu quinhão
próprio, despespeitar a themis conduz à nemesis divina, à
desgraça. O lícito e o ilícito, a origem do mundo, o belo, enfim, todos estes
elementos eram dominados por aspectos que ultrapassavam a vida humana.
A filosofia
coloca estes elementos em perspectiva, advogando não mais pelo mythos e
o epos dos poetas, mas, sim, pelo logos, que pense o presente e a
solução para os dilemas daquela sociedade. Assim, Xenofánes se ria dos deuses
antropomorfizados. Heráclito queria chicotear os poetas, colocando no lugar dos
deuses que regeriam o universo um pólemos que determina quem são os
deuses. Até mesmo Platão intenta expulsar de sua cidade ideal os poetas,
enquanto Aristóteles torna a poesia mais um objeto de reflexão filosófica. A
filosofia constitui-se assim em uma estratégia histórica de engendramento de
uma nova sociedade. Enquanto estratégia uniu-se aos rumos de uma civilização a
fim de encetar, com muitas outras forças, nosso mundo, dominado pelo Ocidente,
um mundo guiado pela ciência, que os gregos inventaram, e pela religião, que,
se bem tenha uma origem oriental, foi unir-se às elucubrações filosóficas para
dotar-se de uma teologia racional. Um mundo que redundou no colonialismo e na
escravidão.
É claro, não
se deve superestimar os poderes da filosofia. Em fato, ela não é a única
estratégia histórica nos termos que ora colocamos, mas uma dentre outras.
Contudo, pela pretensão dos primeiros filósofos em abarcar e explicar o kosmos
com suas produções, a filosofia intentaria se adonar do ser ele mesmo,
alterá-lo, dominá-lo. O que os primeiros filósofos, e ainda Aristóteles,
buscavam era descobrir a arché do kosmos. Arché é uma
palavra grega que significa tanto princípio quanto comando. Era
no intuito de se apoderar desse princípio que comanda que se encaminhava a
reflexão. Se, para muitos, a ciência grega era meramente teorética, outros,
como Heidel (1946) e Farrington (1961) mostram o caráter prático das múltiplas
explicações, especialmente se nos atentarmos à medicina, por exemplo. Além
disso, o corolário das múltiplas filosofias antigas é uma ética e/ou uma
política, jogando por terra a anedota de Tales caindo no poço por descuido ao
pesquisar as coisas celestes.
Podemos,
então, teorizar sobre estes aspectos. Se a filosofia é uma estratégia
histórica, portanto situada em uma correlação de forças, ela responde ao seu
meio. As civilizações que filosofaram na história do mundo estavam se
projetando a fim de dominar as demais, estabelecendo um império, uma arché,
outro sentido do termo. Precisamente porque visavam a dominação, talvez, assim,
minorizando os conflitos internos que as vergavam, como, por exemplo, o entre
senhores e escravos ou entre homens e mulheres, estas civilizações intentavam
constituir posições próprias sobre os grandes dilemas da existência, estes os
quais a filosofia toma como objeto.
Nas
modernas teorias de estratégia militar (por exemplo, ECEME, 2011) toma-se que
existem Poderes Nacionais em disputa. Este Poder Nacional tem muitas expressões,
como, por exemplo, Científica, Pssicosocial, Diplomática, Militar. O objetivo
do Estado é majorar seu Poder Nacional em suas múltiplas facetas, se dotando de
uma estratégia que condiga com seus interesses. Assim, busca-se minimizar os
conflitos internos, que minem os fundamentos do Poder Nacional, em benefício de
sua expressão externa, na disputa entre os estados-nação.
Chegaríamos,
munidos destas informações, ao colonialismo conduzido por alguns estados
europeus, que escravizou os negros, submeteu e mesmo extinguiu outras culturas
e dominou todo o globo. Se a filosofia é uma das expressões do Poder Nacional;
e se o colonialismo quis retirar dos povos colonizados a capacidade de
filosofarem; é exatamente porque a filosofia pode servir como um dos guias para
outras relações no mundo e com o mundo, não mais marcada pela idéia do domínio
(arché) nem sobre outros humanos nem sobre a natureza. A filosofia
contribuiria para dar dignidade aos povos outrora colonizados, afirmando tanto
sua dignidade enquanto seres inteligentes, quanto seria a expressão de que eles
já não são mais colônias, mas, sim, senhores de seu próprio destino. Talvez aí
se esconda o sentido da frase de Foucault de que a arte africana, por extensão,
conforme nossa hipótese, a filosofia africana serviria para que os africanos
descobrissem sua própria verdade. Neste novo mundo, marcado pela troca,
constituiríamos não mais um universo dividido entre superiores e inferiores,
mas uma verdadeira humanidade, enfim reconciliada consigo própria; porque hoje,
onde alguns são objetificados, enquanto outros são os objetificadores, esta
humanidade ainda não existe. Constituir a humanidade é uma das tarefas mais
prementes do tempo presente, tarefa esta a qual a filosofia e seus corolários,
como a ciência política, pode contribuir. Mas não será sem, como quer Foucault,
uma luta renhida contra as forças do colonialismo redivivo, que insiste em nos
aprisionar no passado, e renasce sob formas contemporâneas, como mostra Chang
(2005).
Conclusões
Vimos
que Foucault não aborda diretamente, até onde vão nossos conhecimentos, a
filosofia africana. É a partir das pistas que ele deixa em sua posição sobre a
arte africana, em carta trocada com o artista alemão Rolf Italiaanander, que
buscamos as pegadas para chegar a qual seria sua posição sobre a dita
filosofia. Vimos que alguns tentam negar o direito de outros povos, que não
sejam gregos e alemães, à filosofia, posição esta a fim ao nazismo. Ao mesmo
tempo, expusemos uma outra interpretação da filosofia africana, um tanto quanto
ingênua, como Tempels, visto que descola a possibilidade desta filosofia da
situação colonial dos povos africanos. Então, ensejamos uma interpretação
própria que salienta os múltiplos conflitos em que a filosofia se envolveu
historicamente, conflitos estes que a filosofia africana não pode se furtar.
Para se estabelecer, múltiplos combates, em muitas frentes, hão de ser
travados. A filosofia africana traz consigo a esperança de um mundo novo, onde
possa ser forjada uma humanidade, uma verdadeira comunidade de homens e
mulheres, visto que, para que o negro vença o racismo, é necessário que sejam
vencidas as forças que dão suporte à opressão racial e que reduzem o outro à
condição de objeto. Estas forças, as mesmas que suportaram o colonialismo,
seguem vivas e atuantes, talvez agora mais fortes do que nunca. A filosofia
africana, a nosso ver, deve ser entendida como uma estratégia para um mundo
novo. Se houver filosofia africana nas escolas e universidades, na vida, enfim,
ela será fruto de lutas sociais, que lhe darão guarida e lhe mostrarão o
caminho. Este deve ser seu compromisso histórico.
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