quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

A possibilidade da filosofia africana segundo Foucault



 Introdução: a carta de Foucault a Rolf Italiaanander

Os Dits et écrits (Ditos e escritos) recolhem toda a produção de Foucault, à exceção de livros; até mesmo algumas cartas estão lá expostas ao pesquisador. É sobre uma destas cartas que recaí nosso interesse. No Natal de 1960 Foucault enviou uma carta à Rolf Italiaanander, carta esta muito interessante (FOUCAULT, 2001 pp. 257-260). Italiaanander foi um intelectual e artista alemão, com múltiplas produções. Especialmente importante para nosso fito é o fato dele ter se aproximado da arte africana, fazendo inúmeras viagens ao continente negro, especialmente para o norte da África, enquanto membro da Legião Estrangeira, e, mais tarde, para a região do Congo Brazzaville, região tropical do continente, onde foi ensinar aos nativos técnicas artísticas, como a gravura sobre o cobre. Italiaanander tem uma vasta produção de obras etnográficas e, até mesmo, de livros para jovens.

Na epístola referida, Foucault afirma algumas coisas interessantes. Foucault fala da amargura de um mundo em que tanta coisa acontece sem que se tenha controle sobre os fatos. Afirma ainda que havia muito a contar a Italiaanander, e somente a ele. Comentando um dos livros para jovens de Italiaanander, Foucault fala de tempos originários (originaires), que estavam bloqueados graças a palavras vazias. Trata ainda da démarche que conduz a homens livres. Então, ele comenta sobre a colonização, abordando os jesuítas, os quais, na América então colonizada, tomavam os selvagens por animais, enquanto eram considerados deuses pelos autóctones. Foucault assevera que Rolf Italiaanander é um europeu pronto a reencontrar deuses em uma humanidade onde estes estão morrendo. Então, ele diz “Nossa era é de tal modo feita que a inteligência não tem outra aplicação que questionar a razão até o suplício e de retirar de seu sonho (sonho no qual Goya representa o homem moderno) a potência dupla e irrepreensível que ela analisa” (FOUCAULT, 2001, p. 259).

Comentando a experiência do intelectual alemão em Brazzaville, onde ele foi ensinar técnicas artísticas aos nativos, conforme apontado, Foucault assevera que eram jovens de condição social dificultada pela experiência colonial aos quais se dirigia o ensinamento de Italiaanander. Estes jovens, que agora dominavam uma técnica simples, repentinamente se sentiram estrangeiros em um mundo onde os europeus já viviam, e, de repente, um cosmos mudo se abriu a eles. Segundo Foucault, que critica a noção de primitivo e sua suposta psicologia, algo que Fanon também elabora, as pesquisas africanas do artista tedesco não se contentavam em descobrir, nem em converter em prática; elas serviriam para aportar uma renovação e despregar-se do passado e restabelecer a verdade do presente, de modo que Italianaander ensinaria para aprender: “Preparar para mais tarde uma língua com a qual a África exprimirá toda sua verdade” (FOUCAULT, 2001, p. 260, a tradução é nossa).

Para Foucault, não é por que foi Italiaanander que ajudou a preparar as gravuras que elas não trariam novidades aos europeus. “A troca”, diz Foucault, “é a condição do futuro do mundo moderno” (FOUCAULT, 2001, p. 260). Não se deveria utilizar o termo folclore, que seria uma hipocrisia dos ditos civilizados:

“A verdade da África — esta também dos primeiros escultores das florestas —, é a história da África mesma que nos narrará, et, claro, na língua que se forma agora. Ensinar a arte gráfica aos africanos não significa desfigurar uma arte milenar, mas, ao contrário, desenvolver a forma de expressão de sua verdade” (FOUCAULT, 2001, p. 260)

            Foucault termina a missiva saudando Rolf Italiaanander e sua ausência de preconceitos em relação aos africanos. A carta traz traços de poesia, tornando sua leitura prazerosa.

            No Vocabulário Foucault (CASTRO, 2006) não encontramos nem os verbetes África, nem colonização, muito menos africanos. Tampouco no Le Vocabulaire Foucault (REVEL, 2002) estes termos aparecem. Além do mais, em nossas pesquisas, que duram já uma década e meia, não constatamos no pensamento de Foucault uma reflexão sobre a África, embora ele lá tenha residindo quando de seu período na Tunísia. O aparato colonial tampouco foi objeto de reflexão, malgrado as tentativas francesas de manter suas colônias na Indochina e na Argélia, acontecimentos estes que, certamente, não passaram despercebidos a Foucault. Além do que, era na França que se desencadeava um dos principais movimentos de afirmação da filosofia africana, como nos relata Montoya (2010).

            Mas, cremos, na carta a qual acima demos as linhas mestras, pode-se tentar ensejar uma suposta posição de Foucault sobre a filosofia africana, a qual somaremos outros textos do pensador francês, a fim de chegar a dita posição.

Foucault e  arte (e filosofia) africana: os gregos e a estratégia


            Na missiva destaca-se a felicidade e a receptividade de Foucault em relação a arte africana. Ele parecia não considerá-la inferior ou menos refinada que a arte européia, como aquelas figuram que adornam e convidam à reflexão em nossa edição de La philosophie bantoue, do padre Tempels. Foucault e Italiaanander organizaram, mesmo, uma exposição de arte africana quando da presença do intelectual francês em Hamburgo. Foucault vê a arte africana com bons olhos, e critica a colonização por tentar reduzir o africano ao papel de primitivo, termo este que abunda no livro de Tempels, missionário belga em África.  Ao contrário, Foucault entende que uma cultura deve ser aberta às mudanças, o que seria uma condição das sociedades modernas, e saber empreender trocas com o meio. Abrindo a cultura francesa às influências africanas, podemos especular que Foucault pensaria o mesmo da filosofia africana, que, atualmente, existe sem sombras de dúvidas, e vem formando intelectuais com voz global, como Mbembe. Assim, se os europeus têm o que ensinar em matéria de arte e filosofia aos africanos, também têm o que aprender.

            A arte africana se comunicaria com um tempo originário, diz Foucault. Talvez o mesmo possa ser dito da filosofia africana. Alguns autores, como Obenga (apud OCHIENG-ODHIAMBO, 2010, p. 12), insistem nas conexões entre o grego sophos, sábio, de onde vem a própria palavra filosofia, e o egípcio sebe, que indica a mesma coisa. Além do mais, tanto Tales quanto Platão viajaram para o Egito, somado ao fato das constantes trocas comerciais e, certamente, culturais entre as culturas, o que pode dar azo a especulações de toda ordem. Não temos condições de julgar a pertinência destas colocações. O mais certo é que os gregos herdaram algo das demais civilizações da bacia do Mediterrâneo e do Oriente próximo. Mas ao mesmo tempo, como vários autores apontam (KIRK et ali, 1994; FARRIGNTON, 1961), se os gregos herdaram aspectos das culturas orientais, eles também souberam construir novas teorizações, especialmente abstraindo as meras técnicas, como a metalurgia, para dar-lhes o caráter de ciência, isto é, de busca por princípios. A polêmica sobre a origem egipcía da filosofia reorganizaria todo o saber filosófico, posto que seriam em novas fontes que deveriam ser buscados os textos seminais, hoje incontestavelmente gregos; a egiptologia, disciplina pouco afeita aos estudos filosóficos, se tornaria basilar, e compreender a mitologia dos povos do Nilo assomaria como verdadeira Meca, substituindo os velhos textos de Hesíodo e sua influência no limiar do pensamento filosófico.

Talvez fosse com referência à origem africana da humanidade que Foucault se referisse quando utilizou o termo "originário". Mas este pensamento, que coloca um fundamento no umbral de um pensamento, é completamente estranho às produções de Foucault. Em muitos textos, como por exemplo a Archéologie du savoir (1969), e Nietzsche, la généalogie et l'histoire (1972) a noção de fundamento (arché) é muito criticada. Foucault é conhecido por salientar as descontinuidades, as rupturas, uma herança do pensamento de Bachelard e Canguilhem. A ideia de um fundamento suprahistórico, ou de um suave desenvolvimento, como quer a tradição hegeliana, é alvo de seu crivo.

Por que estes autores insistem neste caráter egípcio da origem da filosofia, egípcios estes que são tomados como uma população negróide (DIOP, 2010)? Para humanizar o negro, mostrar-lhe como capaz de pensamento. É de conhecimento comum que a escravidão que se abateu sobre os negros os subtraía de qualquer traço humano, reduzindo-os ao caráter de coisas as quais se pode manejar ao bel prazer, que podem ser vendidas, marcadas, mortas. O mérito dos autores que começam com o debate sobre filosofia africana é o de defender que o negro possui plenas capacidades de pensamento crítico; isto ocorre em meio ao colonialismo o mais cruel, e prossegue por todo o século XX, seguindo atual até os dias presentes.

            Foucault afirma que os ensinamentos de Italiaanander serviriam para, mais tarde permitir que os africanos se exprimissem em sua própria língua, expondo sua verdade. Alguns estudos, como o de Tempels (1961) tem um papel pedagógico, salientado no final do livro. Descrevendo a ontologia banto, Tempels intenta que os próprios negros se tornem conscientes de sua cultura, a fim de encetar uma civilização própria. É claro que se lhe pode reprovar o intuito por trás, quer dizer, de colonizar, mais especificamente, de introduzir o cristianismo no seio dos povos bantos. Mas seu estudo guarda o mérito de reconhecer no negro uma racionalidade de mesmo valor que seus colonizadores. Outros estudos, e de Montoya (2010) e textos que podem ser conferidos no site do professor Wanderson Flor, da UnB[1], também salientam este aspecto. É o caso de se indagar, no entanto, se existiria uma filosofia africana não no sentido de produções hodiernas, mas, sim, de uma autêntica tradição africana. Para alguns, como Obega, a filosofia ela mesma seria de origem africana. Autores diversos vão salientar o papel da noção de ubuntu, e Tempels mostra como a própria organização social dos bantos é calcada em uma ontologia própria. A nosso ver, a questão segue polêmica. O fato de se tratar de uma tradição até bem pouco tempo ágrafa ou versada no árabe dificulta as coisas. No campo da História, no entanto, houve um desbloqueio epistemológico a fim de possibilitar o fabrico de documentos através da história oral. Não seria o caso da filosofia incluir também através da oralidade produções filosóficas? Basta lembrar que uma das figuras fundadoras do fazer filosófico, Sócrates de Atenas, não deixou uma única linha escrita, sendo famoso pela maiêutica, arte do dialogo dirigido. Assim, querer excluir as produções africanas somente pelo fato de algumas dentre elas serem de tradição oral parece um contrassenso improdutivo, a menos que se queira aplicar o veto também a Sócrates e seus discípulos, como Platão e os megáricos.

            A questão, no entanto, é um pouco mais profunda, de caráter metodológico, com implicações políticas. Heidegger, o filósofo do nazismo, propõe que a linha mestra para se descobrir o que é filosofia passa pela genealogia do nome, que é grego. Assim, a história da filosofia seria uma linha que vai de Tales até Onfray, no tempo presente. Outras produções, por não serem desta linhagem ocidental, ou, ainda melhor, européia-norte-americana, deveriam ser excluídas. Talvez, mesmo, tudo que não seja grego ou alemão já não possui pedigree para ser considerado filosófico, dado que Heidegger considerava que a verdadeira filosofia só é feita nos idiomas helênico e teutônico, um disparate o qual Palácios (1997) analisa bastante negativamente, e com o qual concordamos. Assim, produções fora do que poderíamos chamar de eixo do Atlântico Norte estariam excluídas do fazer filosófico. Ora, esta é uma velha história. Já Hegel (1983) afirmava que não seria autêntica filosofia aquela chinesa, mas, sim, filosofemas. Hegel, contudo, escreve no limiar de um mundo, e o mesmo pode-se dizer de Heidegger. Já não existem colônias políticas e, desde a grande Revolução Francesa, há um movimento que intenta democratizar o mundo, afirmando a igualdade radical de todos os humanos, independente da cor de sua pele, sexo, orientação sexual, etc. Então, se todos possuem as mesmas capacidades, qual seria o motivo de vetar o direito à filosofia a uma categoria de seres humanos? A verdade é que Heidegger se inscreve em um outro registro, este de pensadores não guiados pela idéia de emancipação, mas, sim, de conflito entre civlizações; aos alemães, tidos por ele como os gregos modernos, compete guiar o mundo, um povo que seria o autêntico Führer da humanidade já cindida entre senhores e escravos; não à toa, o pensamento de Heidegger é utilizado pelo espectro da extrema-direita xenófoba, que intenta privar as pessoas do direito de melhorar sua condição de vida, tal como aponta Farias (2017).

            Esta via de interpretação, que quer estabelecer uma linha histórico-causal na história da filosofia, pode se sentir incomodada assim, em abarcar outras produções. A outra via, que é a de Tempels e da filosofia africana vai afirma uma outra coisa: a filosofia é própria ao modo de ser dos humanos neste planeta, tendo como fito a resposta a questões fundamentais, como o que é bom, o que é belo, o que deve ser feito, o que é o ser, enfim. Enquanto tal, não existiria uma díade de povos que filosofaram e povos que não filosofaram, mas, sim, uma plêiade de autores, temas e produções que abarcariam a diversidade da própria espécie humana. Esta posição parece ser decididamente mais democrática, se inscrevendo em um registro todo outro em relação ao heideggeriano. Seria própria a um mundo com múltiplas vozes onde as diferenças não são sinal de que alguns irão dominar e outros serão escravos, mas, sim de multiplicidade, de valorização e acolhida do outro. Podemos chamar esta via de democrática.

            Contudo, ela não é a nossa. A Montoya (2010) e Tempels (1961) falta, talvez, a consciência da própria colonização. Ela se deu nos marcos de um conflito, de lutas múltiplas entre civilizações, classes sociais e gêneros. A colonização e a minoração de outros seres humanos, reduzidos a condição de objetos, vêm responder a imperativos de toda ordem. O fato da filosofia ser afirmada como privilégio de alguns povos, do homem branco, não pode ser desligado das noções de que a filosofia representava o ápice da produção intelectual humana. Há uma linha interpretativa recente (LUIZ, 2019; LUIZ, 2017a; LUIZ, 2017b) que vem afirmando caráter profundamente político da filosofia ao tomá-la como uma estratégia.

O conceito de estratégia tem larga história; aqui o utilizamos desde uma perspectiva foucaultiana, precisando assim que se trata de uma noção belicosa, que envolve tomar a história e as sociedades como lugares de enfrentamento; uma estratégia histórica. Para Foucault, dado os marcos da luta geral que envolve as sociedades, cada movimento é tático e, como o devir é belicoso, os resultado, sempre parciais, são estratégicos. Assim, há de se ver que, na sociedade grega, a filosofia se somou ao movimento que colocava fim ao mundo de Hesíodo e Homero e ensejava as forças que redundariam no século de Péricles e, na seqüência, na civilização helenística. Em Hesíodo e em Homero, além de Arquíloco, dentre outros, são os deuses, as moiras ou outras forças que governam o kosmos; a vida humana é joguete de forças maiores. Ultrapassar seu limite, seu quinhão próprio, despespeitar a themis conduz à nemesis divina, à desgraça. O lícito e o ilícito, a origem do mundo, o belo, enfim, todos estes elementos eram dominados por aspectos que ultrapassavam a vida humana.

A filosofia coloca estes elementos em perspectiva, advogando não mais pelo mythos e o epos dos poetas, mas, sim, pelo logos, que pense o presente e a solução para os dilemas daquela sociedade. Assim, Xenofánes se ria dos deuses antropomorfizados. Heráclito queria chicotear os poetas, colocando no lugar dos deuses que regeriam o universo um pólemos que determina quem são os deuses. Até mesmo Platão intenta expulsar de sua cidade ideal os poetas, enquanto Aristóteles torna a poesia mais um objeto de reflexão filosófica. A filosofia constitui-se assim em uma estratégia histórica de engendramento de uma nova sociedade. Enquanto estratégia uniu-se aos rumos de uma civilização a fim de encetar, com muitas outras forças, nosso mundo, dominado pelo Ocidente, um mundo guiado pela ciência, que os gregos inventaram, e pela religião, que, se bem tenha uma origem oriental, foi unir-se às elucubrações filosóficas para dotar-se de uma teologia racional. Um mundo que redundou no colonialismo e na escravidão.

É claro, não se deve superestimar os poderes da filosofia. Em fato, ela não é a única estratégia histórica nos termos que ora colocamos, mas uma dentre outras. Contudo, pela pretensão dos primeiros filósofos em abarcar e explicar o kosmos com suas produções, a filosofia intentaria se adonar do ser ele mesmo, alterá-lo, dominá-lo. O que os primeiros filósofos, e ainda Aristóteles, buscavam era descobrir a arché do kosmos. Arché é uma palavra grega que significa tanto princípio quanto comando. Era no intuito de se apoderar desse princípio que comanda que se encaminhava a reflexão. Se, para muitos, a ciência grega era meramente teorética, outros, como Heidel (1946) e Farrington (1961) mostram o caráter prático das múltiplas explicações, especialmente se nos atentarmos à medicina, por exemplo. Além disso, o corolário das múltiplas filosofias antigas é uma ética e/ou uma política, jogando por terra a anedota de Tales caindo no poço por descuido ao pesquisar as coisas celestes.

            Podemos, então, teorizar sobre estes aspectos. Se a filosofia é uma estratégia histórica, portanto situada em uma correlação de forças, ela responde ao seu meio. As civilizações que filosofaram na história do mundo estavam se projetando a fim de dominar as demais, estabelecendo um império, uma arché, outro sentido do termo. Precisamente porque visavam a dominação, talvez, assim, minorizando os conflitos internos que as vergavam, como, por exemplo, o entre senhores e escravos ou entre homens e mulheres, estas civilizações intentavam constituir posições próprias sobre os grandes dilemas da existência, estes os quais a filosofia toma como objeto.

            Nas modernas teorias de estratégia militar (por exemplo, ECEME, 2011) toma-se que existem Poderes Nacionais em disputa. Este Poder Nacional tem muitas expressões, como, por exemplo, Científica, Pssicosocial, Diplomática, Militar. O objetivo do Estado é majorar seu Poder Nacional em suas múltiplas facetas, se dotando de uma estratégia que condiga com seus interesses. Assim, busca-se minimizar os conflitos internos, que minem os fundamentos do Poder Nacional, em benefício de sua expressão externa, na disputa entre os estados-nação.

            Chegaríamos, munidos destas informações, ao colonialismo conduzido por alguns estados europeus, que escravizou os negros, submeteu e mesmo extinguiu outras culturas e dominou todo o globo. Se a filosofia é uma das expressões do Poder Nacional; e se o colonialismo quis retirar dos povos colonizados a capacidade de filosofarem; é exatamente porque a filosofia pode servir como um dos guias para outras relações no mundo e com o mundo, não mais marcada pela idéia do domínio (arché) nem sobre outros humanos nem sobre a natureza. A filosofia contribuiria para dar dignidade aos povos outrora colonizados, afirmando tanto sua dignidade enquanto seres inteligentes, quanto seria a expressão de que eles já não são mais colônias, mas, sim, senhores de seu próprio destino. Talvez aí se esconda o sentido da frase de Foucault de que a arte africana, por extensão, conforme nossa hipótese, a filosofia africana serviria para que os africanos descobrissem sua própria verdade. Neste novo mundo, marcado pela troca, constituiríamos não mais um universo dividido entre superiores e inferiores, mas uma verdadeira humanidade, enfim reconciliada consigo própria; porque hoje, onde alguns são objetificados, enquanto outros são os objetificadores, esta humanidade ainda não existe. Constituir a humanidade é uma das tarefas mais prementes do tempo presente, tarefa esta a qual a filosofia e seus corolários, como a ciência política, pode contribuir. Mas não será sem, como quer Foucault, uma luta renhida contra as forças do colonialismo redivivo, que insiste em nos aprisionar no passado, e renasce sob formas contemporâneas, como mostra Chang (2005).

Conclusões


            Vimos que Foucault não aborda diretamente, até onde vão nossos conhecimentos, a filosofia africana. É a partir das pistas que ele deixa em sua posição sobre a arte africana, em carta trocada com o artista alemão Rolf Italiaanander, que buscamos as pegadas para chegar a qual seria sua posição sobre a dita filosofia. Vimos que alguns tentam negar o direito de outros povos, que não sejam gregos e alemães, à filosofia, posição esta a fim ao nazismo. Ao mesmo tempo, expusemos uma outra interpretação da filosofia africana, um tanto quanto ingênua, como Tempels, visto que descola a possibilidade desta filosofia da situação colonial dos povos africanos. Então, ensejamos uma interpretação própria que salienta os múltiplos conflitos em que a filosofia se envolveu historicamente, conflitos estes que a filosofia africana não pode se furtar. Para se estabelecer, múltiplos combates, em muitas frentes, hão de ser travados. A filosofia africana traz consigo a esperança de um mundo novo, onde possa ser forjada uma humanidade, uma verdadeira comunidade de homens e mulheres, visto que, para que o negro vença o racismo, é necessário que sejam vencidas as forças que dão suporte à opressão racial e que reduzem o outro à condição de objeto. Estas forças, as mesmas que suportaram o colonialismo, seguem vivas e atuantes, talvez agora mais fortes do que nunca. A filosofia africana, a nosso ver, deve ser entendida como uma estratégia para um mundo novo. Se houver filosofia africana nas escolas e universidades, na vida, enfim, ela será fruto de lutas sociais, que lhe darão guarida e lhe mostrarão o caminho. Este deve ser seu compromisso histórico.

Bibliografia


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