terça-feira, 16 de agosto de 2022

Filosofia e ciência dos meios

 

Filosofia e ciência dos meios

Philosophy and science of mediums

Felipe Luiz



Resumo: O presente trabalho se propõe a debater alguns termos-chave da história da filosofia e respectivas disciplinas destinadas a estudá-los. Os termos são archē, logos e telos e as disciplinas a archelogia, mesologia e teleologia, sendo as duas primeiras propostas nossas para o debate. Faz-se um inventário de sua utilização e se propõe novas formas de utilização destes termos, passando por momentos cruciais da história da filosofia. Além disso, trabalha-se com a disciplina da Estratégia entenida em um sentido filosófico. Por fim, debate-se uma filosofia da estratégia e se propõe uma filosofia de guerra, distinta da filosofia da guerra, como forma de se encaminhar a discussão.

Palavras-chave: archelogia, mesologia, teleologia, estratégia, strategion, skopologia

Abstract: The present work proposes itself to discuss some key terms in the history of philosophy and the related discipline destined to study them. The terms are arche, logos and telos, and the disciplines are archelogy, mesology and teleology, being the first two our proposal to the debate. An inventory of its utilization is made and a proposal of new forms of utilization of these terms, passing by crucial moments of philosophy's history. Moreover, the discipline of Strategy, taken in a philosophical way, is worked out. At end, a Strategy's philosophy is debated and a war’s philosophy (filosofia de guerra), distinct of a philosophy of war (filosofia da guerra), is suggested as a way to lead the discussion.

Keywords: archelogy, mesology, teleology, strategy, strategion, skopology







Introdução

Se o Evangelho do Ocidente fosse escrito hoje, poder-se-ia dizer as seguintes palavras, na boca do tecnológico Messias: da Grécia viemos, à Grécia voltaremos. E dar-lhe-íamos razão, afinal, poucas coisas de nosso mundo contemporâneo conseguiram se manter a salvo da influência grega. Nem mesmo a religião cristã, de raízes orientais, permaneceu indene, a começar pelo nome Evangelho, seguindo pelo fato deste ter sido escrito em grego, com fortes influência dos velhos helenos. O Ocidente retirou e retira da Grécia muito de seus caminhos.

Uma das ideias gregas que mais teve influência foi aquela mesma de ciência. Nascidos em uma terra pobre, em contato com diversas civilizações mais antigas e mais experimentadas, os gregos souberam lançar a fundação da ciência e a própria ideia de um logos regendo o mundo. Claro, se trata de uma ciência diferente da praticada hoje, mas a inspiração é autenticamente grega, assim como as bases.

A influência dos gregos se dá, por exemplo, no vocabulário. Quantos termos não foram hauridos da precisa língua grega, com seus sufixos, prefixos e raízes? Quantos nomes de ciências não derivam do grego? Quantos termos técnicos são oriundos da bela língua de Homero, a começar pelo próprio nome técnica? Temos uma dívida com os gregos, eis o fato.

É sobre alguns desses termos e algumas ideias gregas que versa este texto. Três termos ocuparam os filósofos por séculos e seguem com força: archē, logos e telos, respectivamente, princípio, razão e fim. Aparentemente termos simples, a dois deles parecem corresponder respectivas ciências. Ao conceito de archē, a arqueologia, que estuda a formação das sociedades a partir de traços civilizacionais materiais. À ideia de telos, a filosofia da história, que se debruça sobre a racionalidade oculta que governaria os fatos aparentemente sem ligação. Por fim, a noção de logos, ao qual se ligam todas as ciências. Princípio, meio e fim, poderíamos dizer, sem nos equivocar.

A própria marcha da ciência parece corresponder a uma mudança de paradigmas, da ênfase que se dava à archē e ao telos para uma mudança, por seu turno voltada para o logos. Como observa Peter Gay (1966): “Pensar qualitativo é, no geral pensar teleológico, e a história do progresso científico é a história da liberação da teleologia” (p. 246). Mas, se a noção de logos já tinha força entre os gregos, com múltiplos significados, e se o termo é nodal para distintas disciplinas, parece não haver uma ciência ou filosofia específica dos meios, uma mesologia filosófica, visto que há uma mesologia na biologia.

O objetivo deste artigo é debater qual poderia ser essa mesologia, qual campo do saber se adequa ao conhecimento dos meandros, em relação uma filosofia dos fins e uma filosofia dos princípios. Embora tenhamos citado a arqueologia como disciplina que estuda os começos, faltaria um campo do saber mais apropriado para este estudo. Como o nome arqueologia já guarda uma carga semântica própria, preferimos o termo archelogia, a fim de nos aproximarmos com mais precisão de nossos objetivos.



A archelogia

A noção de archē é antiga. Já em Hesíodo e em Homero ela aparece, se mantendo até mesmo no grego moderno. O sentido original de archē não é princípio, mas “caminhar primeiro, fazer o primeiro, tomar a iniciativa de começar” (CHANTRAINE, 1968, p. 119); mas, desde Homero, o termo archō, primeira pessoa singular do indicativo ativo do verbo archein, relacionado com archē, também significa “comandar”, e é geralmente empregado com o genitivo, o que pode indicar uma ideia de propriedade que algo ou alguém possui, já que essa é uma das funções precípuas do genitivo. Essa duplicidade entre comandar e ser primeiro se mantém em vários termos, como, por exemplo, archēgos, “que está na origem”, mas também “chefe”. Archē significa, ao mesmo tempo, “começo”, “princípio”, “poder”, “autoridade”, “magistratura”. Chantraine observa a tendência a distinguir entre archomai como “começar” e archō como “comandar” (CHANTRAINE, 1968, pp. 119-121); ambos estão na primeira pessoa singular, mas o primeiro no médio-passivo e o segundo na voz ativa, conforme dito. A voz média se caracteriza por ter um aspecto de ação que o sujeito realiza sobre si mesmo ou em seu interesse; em alguns tempos, como no presente, ela não se distingue do passivo. Com essa distinção, talvez a precisa língua grega talvez quisesse nos dizer que, para começar, sempre há algo de passividade, talvez de influência das circunstâncias, conquanto que, para comandar, o essencial é que o sujeito seja ativo.

Alexandre Magno fundou diversas cidades no correr da construção de seu império, inclusive várias Alexandrias. A mais famosa ficava no Egito. Morto Alexandre, seu império foi dividido entre os diadochos, ou seja, “herdeiros”. A Ptolomeu coube o Egito. Este fez de Alexandria um centro internacional de pesquisas, atraindo pesquisadores de toda a bacia do Mediterrâneo. Em Alexandria, a filosofia grega se encontrou com a religião oriental. Assim, um conjunto de sábios traduziu os livros sagrados dos Hebreus naquilo que ficou conhecido como Septuaginta. As primeiras palavras da Septuaginta são as seguintes: “En archē epoiēsen ho theos ton ouranon kai tēn gēn” (BÍBLIA, AT, GENESIS, 1, 1), ou seja, “no princípio fez deus o céu e a terra”

Já o Novo Testamento foi escrito majoritariamente em grego. As primeiras palavras do Evangelho de João são: “em archē ēn ho logos, kai ho logos ēn pros ton theon, kai theos ēn ho logos. Houtos ēn en archē pros ton theon” (BÍBLIA, NT, JOÃO, 1). Em tradução livre: “no princípio era o logos, e o logos era em relação a Deus e Deus era o logos. Este no princípio era em relação a deus”.

Dá-se bem uma noção, com as duas passagens bíblicas, daquilo que significa archē. O princípio surge com Deus. Deus é o princípio que tudo cria, do qual tudo provém e para o qual tudo tende. Em Deus encontra-se a chave para a explicação do kosmos.

Outro uso religioso aparece na Teogonia. Ali também, na primeira estrofe aparece o termo archōmetha, ou seja, archein na voz médio-passiva na primeira pessoa do plural; mas Hesíodo está se referindo às musas e ao canto que ele está prestes a principiar. Quando ele vai se referir ao começo do mundo ele utiliza o termo prōtista, isto é, ‘o primeiro”, que no caso é o Chaos, o “Abismo”, do qual tudo se gerou.

O primeiro uso filosófico do termo parece ter se dado com Anaximandro, mas há polêmica quanto a isso (KIRK, SCHOFELD, RAVEN, 2005). Se admitirmos que Anaximandro utilizou o termo, ele indicava como archē o apeiron, o “infinito indeterminado”, do qual infinitos mundos vieram e para o qual retornarão. Kahn (1960) defende que Anaximandro se referia às infinitas regiões do globo quando diz infinitos mundos. Já Prates e Silva (1992) defende que não há tempo cíclico em Anaximandro. Para nós mais vale apontar as consequências da utilização de archē como forma de indicar o princípio, o princeps do kosmos. O grego é uma língua muito rica e possui vários vocábulos que podem expressar a ideia de começar algo, tais quais epistrophos, “que é a causa de”; ou puthmēn, “fundamento de algo”. Mas Anaximandro escolheu precisamente archē para indicar o princípio. Sua sentença é

...heteran tina physin ápeiron, ex ēs ápantas gínesthais toùs ouranoùs kaì toùs en autois kósmoi. èx ón dè ē génesis esti tois ousi, kai tēn phthoran eis tauta ginesthai katà tò khreōn. didónai gàr autà díkēn kaì tísin allēlois tēs adikías katà tēn tou khrónou táxin (SIMPLÍCIO apud KIRK et ali, 2005, p. 117)

A tradução: “uma outra natureza apeiron, de onde tudo devém, os céus e aquilo que está nos mundos. De onde é a origem dos seres, a destruição para a mesma devém, segundo a necessidade. Dão, pois, uma à outra justiça e castigo pela injustiça segundo a ordem do tempo”. A archē é a origem de tudo; mas o duplo sentido que a palavra contém, significando também começar, indica que é uma origem que ressoa no presente da coisa, é um princípio comandante, um princípio que reina, que governa o kosmos, a partir do qual podemos conhecer tudo e agir sobre o mundo.

Por exemplo, Aristóteles na Metafísica define a que a sabedoria se define pelo conhecimento das causas (aitiai) primeiras e dos primeiros princípios (ARISTÓTELES, 981b). A discussão sobre os primeiros princípios (archē) ou causas (aitiai) ou das primeiras causas (archai aitiai) ocupa boa parte de alguns livros da Metafísica, confundindo-se com a própria noção desta disciplina. Mas Aristóteles parece não ter dado um nome específico a essa pesquisa pelos fins, assim como também não o fez a tradição. Claro, note-se que, no grego, há o verbo aitiologeō e o substantitivo aitiologia, ou seja, o estudo das causas; Epicuro o utiliza, por exemplo, (EPICURO, 97-5-10, p. 87). Mas, embora confluam, estudara a archē e estudar as aitiai não correponde inteiramente.

A busca por esse princípio orientou praticamente toda a história da filosofia. Várias noções ocuparam o papel de archē: a idea de Platão, o primeiro motor imóvel, Deus, o cogito, a natureza, o sujeito transcendental, o Absoluto, etc. A parte da filosofia destinada a estudá-lo é a Metafísica, mas parece não haver um setor específico desta debruçada em debater estes princípios em um nível mais abstrato. Essa seria, em nossa proposta, a tarefa da archelogia, disciplina cujo estofo é esclarecer os distintos princípios, bem como sua aplicação, distinta da metafísica pura e simples, bem como da ontologia, na medida em que a archelogia é uma parte destas. Assim como a teleologia compõe a metafísica, também a archeologia a compõe. Ou seja, estamos distinguindo a fim de tornar mais fáceis as investigações.

A busca pelos princípios orientou a ciência até muito recentemente, assim como a busca do telos. Afinal, quem diz fundo (Grund), diz fim, ou seja, quem indica os primeiros princípios indica como o universo há de se desenvolver, para onde ele tende, seu escopo secreto. Essa é a lição de Anaximandro. Não nos esqueçamos que era crença comum entre os antigos gregos a existência de um Grande Ano, de um período de tempo cíclico no qual o universo se é consumido e se desfaz somente para começar novamente (KAHN, 1979). Prates e Silva (1992) parece não levar isto em conta quando aponta que não há um retorno do kosmos às suas origens em Anaximandro. Mas, como mostra Kahn (1979), essa era uma crença difundida por toda a filosofia antiga.

Vejamos a teleologia mais de perto, para depois avançarmos à mesologia.

A teleologia

O termo telos é corrente no grego para indicar a ideia de realização, de finalização (CHANTRAINE, 1968, pp. 1101-103). Aristóteles o utiliza com essa intenção em várias passagens. Por exemplo, na Ética a Nicômaco ele começa o texto afirmando que toda technē e todo método tende a um bem, mas que diferem pelo fim, dado que Aristóteles considera que prática e teoria guardam objetivos diferentes. Se a adoção de princípios indica já a adoção de um telos, quer dizer, de um fim, o mesmo pode ser dito de qualquer teleologia. Só há uma possível caso se parta de fins específicos.

Mas há muitos telos diferentes. No fundo, como bem observa Aristóteles, toda a ação guarda consigo a ideia de um fim, ou seja, daquilo que se visa realizar com o acomplissement da ação. Assim, haveria uma teleologia para cada ação particular e seu estudo implica o conhecimento da archē das distintas ações.

Mas, não é nesse sentido amplo que a teleologia ficou marcada. Foi no campo da filosofia da História que seu uso foi mais propalado e a ideia se expandiu. A própria ideia de filosofia da História está indissociavelmente ligada às noções de finalidade, como bem observa Pecoraro (2009). O que se quer dizer com isto? Ora, sob a grossa capa dos acontecimentos, uma razão oculta os liga, uma Providência os acondiciona, um liame de prata faz com que a xícara de café que eu bebo pela manhã e as decisões do presidente da China se interconectem, como se uma rede tão invisível quanto espessa interconectasse as ações as mais comezinhas e o destino do globo. Por trás das efemeridades do cotidiano, um direcionamento prévio que liga o touro com a alga, para parafrasear García Lorca (1967).

Houve muitas diferentes filosofias da história. Kant pensava em um plano oculto da natureza, por exemplo, que estaria por trás de todo o desenvolvimento da espécie humana, ou seja, um desígnio obscuro que guiaria os atos cotidianos, bem como aqueles de grande significado, rumo a uma finalidade também secreta. Trata-se de uma reedição naturalista das ideias de Providência, de onde a ideia surge, que organizaria o emaranhado das ações segundo a intencionalidade divina (PLEKHANOV, 1974).

Se, conforme defendemos, toda archelogia já traz em si a noção de uma teleologia, seu inventor teria sido o próprio Anaximandro e esta seria tão pristina quanto a própria filosofia (LUIZ, 2018), na verdade mais, já que em outras religiões e até mesmo em Hesíodo encontramos uma filosofia da história. Mas a ideia de pensar a própria história como encaminhada para uma finalidade (eschatos, telos) é de origem religiosa. O Juízo Final, o fim do mundo, o ciclo que deve se cumprir, etc., ideias orientais que adentraram a filosofia e renderam frutos. Então, afora os próprios Evangelhos, é em Agostinho que devemos situar um ganho de proporções da filosofia da história, reforçada por milênios por outros autores cristãos, até encontrar sua forma definitiva na pena de Bossuet, Hegel, etc. (PLEKHANOV, 1974) e até mesmo Marx (GURVITCH, s/d).

Mas também podemos encontrar versões laica e ligar essa finalidade à própria noção grega de necessidade (ananke). Se um evento se processa por necessidade, uma das divindades compiladas por Hesíodo, é porque há tanto uma archē quanto um telos operando, na surdina que seja. Trata-se de uma ideia muito difundida pela filosofia e pelo próprio senso comum. A oportunidade gera o ladrão, provérbio popular que indica bem como noções filosóficas podem ganhar o gosto do grande público. O materialismo dialético de Marx, bem como todo materialismo, guarda relações com essa noção.

Vê-se que archelogia e teleologia guardam imbricações profundas. Mas a elas falta os meios de se realizar, falta um logos, um mesos. Tratemos, pois, da mesologia.

A Mesologia

A introdução do termo logos em filosofia é creditada a Heráclito. Eles ocorrem inúmeras vezes nos fragmentos extantes do mesmo. Termo de múltiplas traduções que, segundo Burnet (1908), não deve ser interpretado em um sentido realista. Segundo ele, quando Heráclito trata do logos, ele está se referindo a seu próprio discurso.

Compartilhamos com Kahn (1979) a ideia de que Heráclito não foi cognominado obscuro à toa. Seu discurso é múltiplo, ou seja, pode ser interpretado em múltiplos registros. Segundo Kahn, o logos é, ao mesmo tempo, o discurso de Heráclito, a natureza da linguagem, a natureza da psyche e o princípio universal de todas as coisas (KAHN, 1979).

Mas o que é logos afinal de contas? Logos é um termo ligado aos verbos legō e logizdomai, ou seja, dizer, coletar e raciocinar. Ele significa, concomitantemente, “razão”, “discurso”, “história”, “racionalidade”, etc. O Aoristo de legō é eipon, de onde aproximações que se pode fazer entre o epos, o discurso da épica, dos poetas e o passado de legein. O Epos seria um discurso pronunciado há muito tempo; o logos seria o discurso coevo, pronunciado hodiernamente que abordaria a racionalidade do mundo (BERGE, 1969).

Heráclito escreve contra os poetas. Ele os admoesta em alguns fragmentos. Ao introduzir o logos ele está contrapondo o discurso antigo, o epos dos poetas, com o mundo tal qual ele se dá contemporaneamente. Ele quer descobrir a racionalidade do mundo, o processar-se das coisas, seu devir, seu meio. Heráclito escreve contra a pesquisa de archē, embora ele aceita a teleologia do Grande Ano.

A ciência moderna fez progressos consideráveis quando abandonou a pesquisa da archē ou do telos, tal qual propunha Aristóteles, em benefício de uma pesquisa da organização das coisas tais quais elas se dão. Esse é um dos aspectos da revolução científica dos séculos XVII-XVIII: pesquisar não um princípio ou finalidade ocultos na natureza, que determinaria a história, mas, sim, o modo como as coisas se organizam. Enquanto, destarte, a filosofia persistia na pesquisa dessa archē e desse telos, a ciência se imiscuía com a técnica — já que a história da ciência e das técnicas não é a mesma — dando origem ao formidável progresso dos meios que observamos nos últimos 250 anos.

Mas, enquanto a filosofia quedou presa em uma archelogia e em uma teleologia, e talvez até por isso, nunca se desenvolveu uma mesologia, uma disciplina dos meios, uma disciplina do instrumental, do dativo. Vejamos como poderia ser uma disciplina assim formulada.

Estratégia, ciência dos meios?

Há uma disciplina que pode ser disciplina dos meios, a ciência da Estratégia. Em fato, enquanto a política fixa os fins, a Estratégia conjuga as formas de concretizá-lo. A Estratégia não costuma ser muito estudada pelos filósofos, visto que, imiscuída que está com o que há de mais mundano, o poder político, a guerra, o sangue, as chagas; os filósofos preferem se debater com as questões mais elevadas, que conduziram Tales ao fundo do poço e Heráclito à montanha de estrume.

O termo estratégia deriva do grego antigo strategos, “general”. A estratégia seria, originalmente, as coisas relativas ao general. Mais contemporaneamente, especialmente com a repercussão das ideias dos militares Liddel Hart e Beaufre, alargou-se o alcance do termo. Hodiernamente, se fala de estratégia em vários níveis, sempre com o sentido da racionalidade que se há de adotar a fim de conseguir alcançar diversos fins. A estratégia é a ciência que viabiliza as coisas, que consegue fazer com que o presente se transforme no futuro, que consigamos não depender das circunstâncias, mas fazer do devir nossa morada.

Estratégia e poder político são interligadas. Isto porque poder nada mais é senão um meio: indica a capacidade de se realizar uma determinada ação. Por exemplo, poder político indica a competência em se realizaras coisas relativas à polis, quer dizer, à gestão da vida. Por isso existem distintos níveis de estratégia, como diplomática, científica, , psicossocial, militar, política, econômica, conforme se trate de diferentes tipos de poder. Até mesmo em um sentido amplo, conforme apontado, há estratégias de estudo, por exemplo, ou uma estratégia de preparar o almoço.

Propomos o nome de strategíon, diminutivo de strategia em grego, para essas estratégias de miudezas e reservaremos o nome de estratégia para aquilo que guarda um interesse público: interessa a muitos, não a poucos, a estratégia de um Presidente da República. Já o strategion da onça caçando ou do estudante preocupado com o vestibular interessa a poucos.

Também distinguiremos entre uma teleologia e uma escopologia. Conforme dito, o termo teleologia está carregado de significados metafísicos. Mas o grego guarda outros termos para indicar finalidade, como skopos. Assim, para finalidades não metafísicas preferiremos este último termo.

A estratégia será então a ciência dos meios, que liga uma archelogia a uma escopologia através de um logos específicos, de um procedimento, que indique como atuar a fim de concretizar nosso escopo.

Conclusões

Há também uma filosofia dos meios. Como observa Paul Veyne (1982), tanto Foucault quanto Deleuze se propõem a tomar as coisas pelo meio. Deleuze fala de ser como a erva e de, no lugar de ser arborescente, ser rizomático, i.e., não partir de uma archē, da busca indefinida por origens perdidas no tempo, como diz Foucault, mas de observar as coisas tal qual elas se dão. Trata-se de uma filosofia geográfica — e a geografia serve para fazer a guerra.

Mas os filósofos acima arrolados parecem não ter se dado conta da importância da estratégia e de suas ressonâncias filosóficas quando escreviam. Foucault reconheceu a estratégia como meio de analisar o poder político e chegou mesmo a propor um conceito filosófico de estratégia; mas tudo de maneira fragmentária, sem se deter a fundo nas implicações filosóficas de uma ciência dos meios (LUIZ, 2021). É este debate que pretendemos lançar.

No presente artigo propusemos algum vocabulário novo, que, esperamos, gerem alguma discussão no meio filosófico. Archelogia, mesologia, escopologia, strategíon são termos que tratam com maior precisão uma filosofia de guerra. Com isto fazemos uma última contribuição: não filosofia da guerra, cujo o principal autor é Clausewitz, mas uma filosofia de guerra, que se debruça sobre o potencial da estratégia para os estudos filosóficos. As fundações foram lançadas. Vejamos como se constrói o edifício.

Bibliografia

BEAUFRE, A. Introduction à la stratégie. Paris: Armand Colin, 1965, 3ª ed.

BERGE, D. O logos heraclítico. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969

BROOKE, A. E; MCLEAN, N. The Old Testamente in Greek. Cambridge: Cambridge University Press, 2009

BURNET, J. Early Greek philosophy. London: Adam and Charles Black, 1908, 2ª edição

CHANTRAINE, P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Histoire des mots. Paris: Klincksieck,1968

CREVELD, M. van. The Art of War—War and Military Thought. London: Cassel, 2000

DELEUZE, G., PARNET, C. Dialogues, Paris: Flammarion, 1996

DIELS, H. Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1960

ESCOLA DE COMANDO E ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO (ECEME). Introdução à estratégia. S.l.: CSP/ECEME, 2011

ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). Fundamentos do Poder Nacional. Rio de Janeiro: ESG, 2019

EPICURO. Opere. Torino: Einaudi, 1972

GARCÍA LORCA, F. Antología Poética. Buenos Aires: Losada, 1967, 4ª ed.

GAY, P. The Enlightenment An Interpretation, Vol. 1 The Rise of Modern Paganism. USA: Alfred A. Knopf, 1966

GURVITCH, G. Proudhon e Marx II: uma confrontação. Lisboa: Presença, s/d.

HART, B. H. L. Strategy, NY: Meridian Book, 1991

KAHN, C. Anaximander and the origins of Greek cosmology. New York: Columbia University Press, 1960

________. The art and thought of Heraclitus. Cambridge: Cambridge University Press, 1979

KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos. 5. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005

LUIZ, F. Anaximandro, a teleologia e a história. Diaphonía, v. 4, n. 2, 2018.

_______. Clausewitz, Liddel Hart, Beaufre, Foucault: O conceito filosófico de estratégia. Ítaca, vol 34, 2019

_______. Poder e história: o conceito de estratégia em Michel Foucault. Dissertação de Mestrado. Marília, 2021. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/204355>, acessado em 28/04/2021

______. Uma reflexão introdutória sobre o polemos no fr. 53 DK de Heráclito. HYPNOS, São Paulo, v. 45, 2º sem., 2020, p. 281-291

LUTTWAK, E. Strategy: the logic of war and peace. Cambridge/London: Belknap Press of Harvard University Press, 2001

MARTINS, R. F. R. C. Acerca do conceito de estrategia. Nação e defesa, Ano IX, no 29, Janeiro-Março de 1984 (1995), Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, 1995, pp. 97-125

MEIRA MATTOS, C. de. Estratégias militares dominantes. RJ: BIBLIEX, 1986

PARET, P. et ali. Makers of modern strategy: from Machiavelli to the Nuclear age. Princeton: Princeton University Press, 1986

PECORARO, R. Filosofia da história. Rio de Janeiro: Zahar, 2009

PLEKHANOV, G. A concepção materialista de história. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

PRATES E SILVA, R. C. B. A justiça cósmica (um estudo sobre Anaximandro de Mileto). Tese de Livre-docência, Araraquara: FCL-UNESP, 1992

ROBINSON, M. A. PIERPONT, W.G. The New Testament in original Greek. Southborough: Chilton Books, 2005

SAINT-PIERRE, H. Política armada — fundamentos da guerra revolucionária. SP: EDUNESP, 1999

VEYNE, P. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasília EDUnB, 1982





Nenhum comentário:

Postar um comentário