quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Um relato dos mortos

 [Encontrada no meio de um alfarrábio, um livro velho, contendo verdades da doutrina espírita]

    Eu bem sei que, nestas memórias, já não há originalidade e que meus antecessores já bem demonstraram o que pode um defunto. Sim, estou morto e escrevo estas memórias no além esperando que, de alguma forma meus conhecimentos recém-adquiridos alumiem os demais mortais.

    Fui um bom cristão toda a vida. Literalmente. Seguia todos os preceitos bíblicos, inclusive os mais estranhos a um homem do começo do século XX, como não comer camarão, ou usar roupas de tecidos diferentes. Nem mesmo a barba eu fazia, mas, por sorte, eu era um menino pelado. Sexo, nunca fiz. Era padre. Dediquei os melhores anos de minha vida a propagar minha então fé junto aos incrédulos. Sim, até mesmo para nações no distante Oriente fui enviado, sempre com espírito aguerrido e pronto para os combates mais duros. Quantas coisas vi, quantas tentações passei, quantas mulas-sem-cabeça não ficaram por um triz de virem ao mundo.

    Estive na Grande Guerra também. Não, não para matar, mas para curar; era enfermeiro. Queria aliviar os sofrimentos de todos. Trabalhava para aligeirar as dores que um sofrimento desnecessário causava. Antes da guerra, como depois, fui pacifista, e assim terminei meus dias. Sei o que Nosso Senhor disse sobre a espada, sei dos clérigos lutadores; mas eu era um homem da paz, que acreditava na força do exemplo, na firmeza do caráter, na retitude moral, nos bons costumes e na língua universal do amor incondicional pelo gênero humano e por todos os seres vivos.

    Fui um bem-feitor. Dava de comer aos pobres. Dava teto aos desabrigados. Dava consolo os desesperado. Dava guarida aos homens sem fé. Minhas peregrinações me ensinaram a compreender o sofrimento humano e o desamparo em todas as suas facetas. E não só compreendê-lo como oferecer o divino unguento aos necessitados. E quem não necessita de compreensão, de acolhimento, de esperança? Todos nós, marinheiros em um barco sem guia, neste universo gigantesco feito para a glória de Deus, bendito seja Ele. Assim eu pensava.

    Por onde passava era chamado de Santo. Se pequei, foi por soberba, visto que se amontoavam para beijar minhas mãos,ouvir minhas doces palavras de acalanto, sentir a quentura de meu sangue cálido, e o hálito imorrível das Santas Escrituras. Eu era um homem de fé, um homem movido pelo mais ardente propósito de revigorar a humanidade e pô-la na via segura do amor a deus. Porque meu Deus é um deus de amor, um deus que vela pela sorte dos mais afligidos. Assim eu pensava.

    Tentavam comprar minha indulgência. Mas nunca me vendi, nem mesmo diante de montanhas de vis papéis que o vulgo chama dinheiro. Não era dinheiro que eu queria. Não era um homem mundano. Era um homem voltado ao espírito e ao conhecimento daquilo que de mais elevado se produziu na consciência humana. Assim eu pensava

    Nesta terra de feras, encontrar a cama do repouso, ouvir a palavra de aceite, saber-se amado, saber que sua vida é importante e que há nela um propósito. Sim, e que este propósito nos foi revelado e provado por meio de milagres atestados. A própria vida: um milagre, não? A vil matéria jamais poderia gerar a maravilha da carne trêmula de êxtase no amor divino, os sussurros de arrependimentos e os gritos de glória que rondam as pequenas vitórias cotidianas. A vida, este sobrenatural naturalizado, este manancial de bons impulsos, forte o bastante para conter àqueles carnais e colmatar nosso espírito, esse dom mais elevado, com o arrebatamento divino. A criação, obra do senhor para que o adoremos e enchamos, com nossa boa conduta, o paraíso com nossas almas, a perpetuar pela eternidade seu nome e adorá-lo. Glória pequena? Falha em deus, que precisa ser louvado? Não, assim eu pensava, já que ele nos deu a chance da vida, a dádiva da existência ínfima que se locupleta na infinitude de seus desígnios.

    Nem mesmo as bestialidades da guerra me demoveram de minha fé, nem mesmo as torturas que sofri nas mãos de acólitos de outros cultos e de autoridades, pela minha defesa da vida e da dignidade da pessoa humana. Nada. Eu era uma rocha e, cria, eternamente plantada, senão pela carne, pela memória e feitos que deixaria, na imensidão do negro infindo do cosmos. Assim eu pensava.

    Mas as horas passam. Os dias correm. Os anos se acumulam tornando moles os músculos, débeis as fibras do cérebro, quebradiços os ossos, bambas as pernas, frágeis as mãos. Somente o espírito permanece. E, assim, um dia, pregando, fui apunhalado por um adepto de outra religião, também cristã, mas que me cria nocivo à sua confissão. Sem esperança de salvamento, sangrei até a morte. Fui um mártir, um campeão da fé cristã. Fiz minha passagem com glória, com honras e paguei com minha vida a defesa encarniçada que realizei, por obras e pensamentos, da verdadeira religião. Assim eu pensava. Eis-me aqui, do outro lado do rio.

    E, qual surpresa!

    Descobri-me em um lugar cheio de sevícias, rodeados de monstros, apunhalado nos lugares mais frágeis, queimado com doses de enxofre e chumbo derretido. Feridas que sangram e não fecham, dores que aumentam e não diminuem. Barulhos insuportáveis. Gemidos indizíveis de dor, luzes cegantes. Mantemos o corpo do lado de cá; ele só deixa de ser perecível. Mas ele sente, vê, experimenta. Um gosto permanente de excrementos na boca e um odor de carniça que não cessa. Um sensação constante de sufocamento, como se nos afogássemos no ar circundante. A dor e o desconforto é tudo que nos domina, a mente tomada pela dor constante; quase não resta espaço para pensamentos outros. Mas eu os tinha. Pensava onde tinha errado, que males tinha feito, como aquilo era possível. Onde estava deus que não me acudia?

    Décadas se passaram até que obtive as respostas.

    Fui conduzido por animais monstruosos que nem Dante poderia imaginar através de um corredor ascendente. A caminhada durou semanas, sempre sobre brasa quente e espinhos. Cada passo era uma provação. No estômago, a sensação perene de fome de dias e a boca seca, com uma sede que nem todos os oceanos poderiam saciar.

    Repentinamente, depois de outro passo, seguido de meus gritos habituais, tudo mudou. O chão transformou-se em refinados tapetes. As luzes penetrantes se tornaram um agradável lume, capaz de iluminar sem ofuscar. O aroma do ar misturava as fragrâncias de todos os perfumes mais finos, inundando minhas narinas com o frescor de dias felizes. O estômago repentinamente sentiu-se pleno, a boca cheia de uma saliva que ao mesmo tempo misturava todos os gostos, em uma harmonização perfeita. As dores sumiram e senti-me revigorado. Caminhava nas nuvens, os passo leves. As bizarras criaturas que me acompanhavam transformaram-se em seres de pura luz. Um cântico suave preenchia o ar. Bosques verdejantes e campinas plenas de flores de todos os tipos, algumas que eu nunca vira, cercadas por animais belíssimos, todos mansos e benfazejos, se estendiam a perder de vista.

    Estava no paraíso, pensei. Estivera no purgatório.

    Caminhei por segundos, que se mo assomaram séculos, tamanha era a sensação que não existem palavras para descrever. Plenitude é a ideia que mais se aproxima. No caminho reconheci, ao longe, o homem que me apunhalara, e que selou meu destino. O que estava acontecendo?

    De repente, estava diante de uma figura que não é fácil descrever. Um corpo definido, estável, e ao mesmo tempo borrado, etéreo, do qual emanava uma força gigantesca. Logo percebi que a benfeitoria do local emanava dele, que sua presença enchia o local com harmonia.

    Era deus, tive certeza na hora.

    Perguntei-lhe: “senhor, desde que morri somente sofro. Estou entregue às maiores torturas e fui um servo exemplar em vida. Por que me provas mesmo depois de morto?”

    Ele não precisou falar. De repente, a resposta estava em minha mente.

    Deus é mau.

    Criou o universo para se divertir, já que a eternidade lhe parecia tediosa. Seu maior prazer é fazer suas criaturas sofrerem. Por isso ele, mesmo onipotente, permite o mal. Por isso ele criou um universo imperfeito, onde o fraco é devorado pelo vivo, onde o mal sempre ganha no final, onde a mentira é rainha e a justiça é a conveniência do mais forte, onde armas são mais acessíveis do que livros e o sangue jorra com mais facilidade que o mel. Ele, com todo seu poder, poderia ter criado um universo onde fossemos livres e o mal não existisse, um universo onde as criaturas se nutrissem todas de luz, acabando com a matança e a selvageria da natureza. Mas ele não quis. Optou pelo massacre, optou em que o justo sofra. Permitiu as religiões do amor apenas para se rir ainda mais, dedicando uma eternidade de sofrimento aos que as seguem. E, por um ínfimo momento, permite que elas vejam o que espera para quem pratica o mal.

    De repente, me vi de volta às minhas sevícias habituais. Agora, muito piores, já que sabia que estava sofrendo por teR sido bom. Ó miséria, ó sofrimento, ó angústia. Mas eu mereço! Sim, mereço. Que esta mensagem que consegui enviar, sirva para aleitar os maus instintos nos homens. As religiões, todas falsas. O que vale é que nos revoltemos contra um deus tão cruel, tão maligno. Oxalá consigamos nos rebelar contra a tirania.

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