A filosofia de Bolsonaro
Bolsonaro’s philosophy
Felipe Luiz
UNESP-Marília
2022
Resumo: O objetivo do presente trabalho é analisar algumas produções teóricas do autodeclarado filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, considerado ideólogo do bolsonarismo e pensador então influente nos círculos governamentais. Para tanto, a produção de Olavo é analisada sobre um duplo viés enquanto teoria da conspiração e discurso de ódio. No final, aponta-se que Olavo é propagador de um novo misticismo, calcado nas fake news e no discurso anti-ciência, e que é tarefa da filosofia combater esse anti-iluminismo.
Palavras-chave: Olavo de Carvalho; Anti-iluminismo; discurso de ódio; teoria da conspiração
Abstract: The present work’s aim is to analyze some theorical productions of the self declarad Brazilian philosopher Olavo de Carvalho, taken as ideologist of bolsonarism and influent thinker into the governamental circles. For that, the production of Olavo is analyzed in a double bias, as conspiracy theory and as hate speech. In the end, we point out that Olavo is a difusor of a new misticism, based in fake news and in an anti-science discourse, and that is a philosophy job to fight out angainst these contra-Enlightenment.
Keywords: Olavo de Carvalho; contra-enlightenment; hate speech; conspiracy theory.
Introdução
Uma coisa importante que aprendemos com o filósofo francês Michel Foucault foi que poder e saber não estão divorciados. Não é, a bem da verdade, uma asserção nova, mas tampouco é um truísmo. Se recuarmos bastante, já Platão e suas diatribes com os sofistas apontavam nessa direção. Se recuarmos ainda mais, veremos que a própria noção de arché, esse verdadeiro ponto arquimediano que buscam os filósofos, guarda dois sentidos, tanto o de princípio, quanto o de comando. Marx apontava também esse casamento entre poder político e ciência, assim como vários outros pensadores. Mas com Foucault essa relação é melhor explicitada, chegando ao paroxismo de se afirmar que não há poder sem saber, nem saber sem poder. Claro, Foucault tratava de um saber menos grandiloquente que aquele que trataremos aqui, mas nem por isso menos pungente. Temos insistido nas relações entre filosofia e poder político em vários textos e este será mais um deles
Chega, portanto, a hora de exercitar outra posição de Foucault e realizar uma pequena ontologia do presente, desta vez voltados à nossa tão castigada terra brasilis. Afinal, há uma filosofia de Bolsonaro?
A violência parece prescindir da filosofia; mas é como as ilusões de uma mente cansada: só parece. A filosofia, enquanto atividade humana, está presente em qualquer ato que se realize. Ela não é apanágio dos sábios, mas, democrática, puro fruto das massas. Todo ato, toda atitude pressupõe uma filosofia, mesmo que o agente a desconheça. Certamente, alguém já abordou filosoficamente dada ação, já que, entre o céu e a terra, a razão não se cansa de romper as barreiras históricas e de se reinventar.
A filosofia popular, que tanto agradava a Porchat Pereira, está presente nas conversas, nas posturas, nos atos, nas crenças e, também, na política. Nesse sentido, Bolsonaro possui uma filosofia, como qualquer outro mortal. Mas, em seu caso específico, essa filosofia, uma filosofia da ação certamente, lhe antecede e, com segurança, lhe há de se suceder, perenes que são as condições que a geraram. A menos que uma verdadeira revolução se processe no país e as condições de emergência desse gênero de pensamento se alterem na raiz, outros Bolsonaros virão, outros políticos com posições semelhantes e o mesmo apelo surgirão e a espiral na qual nossa terra de sabiás adentrou repetirá erros e acertos.
A filosofia de Bolsonaro antecede o próprio, na medida em que aquele que é apontado como o principal ideólogo do governo, o ensaísta (ou será filósofo? Responderemos ao final) Olavo de Carvalho escreve desde antes de Bolsonaro e, se não tivesse falecido enquanto escrevíamos este texto, continuaria escrevendo depois.
O objetivo desse trabalho é analisar as posições filosóficas de Olavo naquilo que seja pertinente para a compreensão do Brasil atual e que ajude a desenhar o que pensa Bolsonaro e quais as bases teóricas do bolsonarismo, enquanto fenômeno político aterrado no Brasil e seus conflitos. Para tanto, analisaremos uma série de livros de Olavo e alguns poucos comentadores já que Olavo, outsider maior do pensamento brasileiro, segue restrito no que tange às publicações a seu respeito.
Retrato e posição do polemista
A primeira coisa que salta aos olhos do leitor de Olavo é como ele está correto em muitas posições. Explique-se: o tom de Olavo é um anticomunismo virulento, que enxerga por toda parte um plano das esquerdas para o domínio global. Mas, boa parte daquilo que ele afirma das esquerdas, se aplica perfeitamente aos seguidores de Bolsonaro. Vejamos alguns exemplos. Em Tudo que você precisa saber para não ser um idiota ele afirma que:
No Brasil de hoje, todos os “formadores de opinião” mais salientes, sem exceção visível — comentaristas de mídia, acadêmicos, políticos, figuras do show business — pensam por figuras de linguagem, sem a mínima preocupação — ou capacidade — de distinguir entre a fórmula verbal e os dados da experiência. Impõem seus estados subjetivos ao leitor ou ouvinte de maneira direta, sem uma realidade mediadora que possa servir de critério de arbitragem entre emissor e receptor da mensagem. A discussão racional fica assim inviabilizada na base, sendo substituída pelo mero confronto entre modos de sentir, uma demonstração mútua de força psíquica bruta que dá a vitória, quase que necessariamente, ao lado mais barulhento, histriônico, fanático e intolerante (CARVALHO, 2013, p. 351)
Ora, são justamente os seguidores de Bolsonaro que gritam mais alto e repetem, à exaustão, o mesmo gênero de pensamentos, muitos dos quais originados em Olavo, com uma série de fórmulas prontas que só esperam a claque, já igualmente convertida, para se afirmar vitoriosos. Foi assim que, em 2018, falsidades repetidas em mensagens instantâneas conseguiram hipnotizar o país, em nome de uma luta contra a corrupção que se mostrou, na verdade, cortina de fumaça para atos inescusáveis.
Em outro trecho, Olavo critica os fanáticos, afirmando que eles deixaram-se dissolver em grupos, de onde tiram conforto e aceitação, em troca de submeter-se a um líder, considerado quase-divino, acima da história (CARVAHO, 2013, p. 84). Não é precisamente esse o status concedido a Bolsonaro no meio de suas hostes? De um líder invencível, incorruptível, grande enxadrista da política, que tem um plano preparado para tudo?
Examinemos outro trecho:
Já observei mil vezes que no Brasil de hoje a linguagem da elite soi disant alfabetizada se reduziu a um sistema formal de pressões e contrapressões, onde as palavras valem pela sua carga emocional acumulada, com pouca ou nenhuma referência aos dados correspondentes na experiência real de falantes e ouvintes (CARVALHO, 2013, p. 176)
Ora, é exatamente dessa maneira que se portam os olavistas, enxergando em um suposto comunismo ubíquo uma ameaça iminente para o Brasil, sentimento esse alimentado pelo próprio Olavo a todo instante.
Em outra passagem, o escritor afirma: "A facilidade mesma com que uma teoria se converte em sua contrária é louvada como prova do mais alto mérito intelectual: o que importa não é a “veracidade”, mas a “fecundidade”" (CARVALHO, 2013, p. 189). Olavo defendia um governo de direita, que lutasse contra a corrupção e combatesse as esquerdas. Repete a todo instante que o comunismo matou milhões de pessoas, etc. Mas, na gestão da pandemia no Brasil, foi o governo apoiado por Olavo que foi culpado, direta ou indiretamente, pela morte de centenas de milhares de brasileiros.
Em outro trecho, ele assevera:
Desde a decapitação de Luís XVI o movimento revolucionário mundial vive de proxenetar seus próprios crimes e vexames, atribuindo-os às suas vítimas, a circunstâncias fortuitas ou à ação de traidores. Tantas confissões repetidas da incapacidade de governar o curso das coisas já bastam, é claro, para impugnar a presunção do poder absoluto e infalível de forjar um futuro melhor." (CARVALHO, 2013, p. 232)
Ora, afirmar que não governa por culpa da esquerda ou do Supremo Tribunal Federal é o expediente de praxe dos olavistas e bolsonaristas. Mais uma vez, Olavo descreve nos outros as ações que seus apoiadores executam.
Noutro recorte diz nosso autor (2013):
A Bíblia, mito fundador da civilização ocidental, está no fundo de toda a nossa compreensão de nós mesmos e de todas as nossas possibilidades de ação. Fora disso, não há senão ideologia, erro, loucura. A desorientação radical da sociedade brasileira vem da ligação tênue, cada vez mais distante, cada vez mais evanescente, que nossa história tem com as raízes bíblicas da civilização do Ocidente. Tanto perdemos a compreensão do nosso mito fundador que chegamos a querer substituí-lo por mitos tribais, indígenas ou africanos, belos e sugestivos o quanto sejam, mas ineptos a dar forma a uma civilização vasta e complexa. Mas hoje descemos abaixo dos mitos tribais, que, limitados o quanto fossem, tinham a sua verdade. Já não queremos nem mesmo construir o Brasil em cima de verdades parciais. Queremos a mentira total. Queremos uma ideologia." (p. 328)
Olavo descreve perfeitamente o que ocorre no Brasil desde antes de 2013: como a mentira foi elevada à categoria de verdade institucional e a verdade, no caso científica, foi escanteada em benefício de um projeto de poder, movimento este acentuado após as eleições de 2018. Mas, como ele próprio aponta: “É a receita infalível da propaganda revolucionária: ‘Xingue-os do que você é, acuse-os do que você faz’" (CARVALHO, 2013, p. 296), aliás, uma falsa citação de Lênin.
Olavo se coloca na posição de um vate: a verdade está oculta e só ele a enxerga. Reaviva assim a figura literária do poeta-profeta, sem os dotes literários que a posição exige.
A destruição completa da alta cultura, num estado catastrófico de favelização intelectual onde a função de respiradouro para a grande circulação de ideias no mundo, que caberia à classe acadêmica como um todo, é exercida praticamente por um único indivíduo, um último sobrevivente, que em retribuição leva pedradas e cuspidas por todo lado, especialmente dos plagiários e usurpadores que vivem de parasitar o seu trabalho (CARVALHO, 2013, p. 237)
Neste texto, de 2011, fica clara a psicologia de Olavo: ele seria o cavaleiro solitário dos conservadores contra a conspiração comunista de destruir as bases mesmas da civilização ocidental. Apresentada a figura, passemos a outros aspectos de seu pensamento.
Teoria da conspiração
O tom profético de Olavo faz uma mixórdia entre filosofia e senso comum, alimentado por publicações hegemônicas da direita tupiniquim, como Veja, Folha de São Paulo e Estadão. Foi a grande mídia que nutriu Olavo, abrindo-lhe portas e ecoando sua voz que, com o advento da internet, saiu do controle, a ponto de Olavo enxergar na mídia um reduto de comunistas empenhados na revolução cultural que ele afirmava estar em processamento. O tema da esquerda que controla tudo, chegando mesmo ao ponto de se afirmar que os bilionários do mundo são comunistas, indica um pénchant de Olavo pelas teorias da conspiração.
Como observa Byford (2011) os teóricos da conspiração nunca admitem que o são, e o mesmo faz Olavo, para o qual a mancomunação da esquerda para dominar o país e tolher a voz de uma direita tornada vítima é tão real quanto o brilho do sol. É vão buscar raízes psicológicas para esse traço de Olavo, o que somente seu psiquiatra, se é que ele frequentava algum, poderia explicar. Além disso, ainda que fosse provado que Olavo era um monomaníaco, isso não explicaria como suas posições encontraram eco na sociedade brasileira, a ponto de terem ajudado a eleger um presidente.
Seguiremos Byford (2011) e veremos as teorias da conspiração, como aquela que advogava Olavo, como uma tradição de explicação, tradição esta já velha de muitos séculos. Ainda durante o processo da Revolução francesa surgiram pensadores dispostos a explicá-la enquanto artimanha de um grupo coeso e secreto, os Iluminatti e a Franco-Maçonaria, empenhados em acabar com o cristianismo, o Antigo regime e as bases mesmas do mundo ocidental. O tema da decadência do Ocidente é também muito velho — e muito atual —, e essa rama política somente o trabalhava mesclando-o com novos tropos.
Durante o século XIX ganhou força as velhas narrativas segundo as quais os judeus conspiravam contra o mundo cristão, como teriam conspirado contra Cristo ele mesmo, e que se preparavam um golpe visando abolir a cristandade. Esse discurso de ódio contra judeus, sobre o qual tornaremos, ganha sua força máxima no entreguerras, deixando sempre atrás de si um rastro de sangue. Outros personagens ocuparam o papel de conspiradores, como asiáticos, o clube Bildeberg, muçulmanos, a Nova Ordem Mundial, etc.
No caso brasileiro, depois de uma ditadura militar sangrenta e de seus crimes, imprescritíveis por sinal, a esquerda ganhou um novo fôlego, mas muito longe de se tornar a força hegemônica. Ao contrário, as forças que governaram todo o país desde a redemocratização foram segmentos de um liberalismo social, mais ou menos destacado, mas sempre mantendo a economia de mercado e a democracia liberal burguesa como foco. Do ponto de vista econômico, o país não conheceu outro regime em sua história além do capitalismo. Do ponto de vista político, a esquerda sempre foi força política escanteada e, durante os governos do PT, governava com um Congresso de maioria conservadora, sempre seguiu os mais estritos cânones do republicanismo, ao acatar ordens judiciais e decisões políticas, ainda que contrárias aos seus interesses, privatizando empresas, etc. As tímidas medidas de inclusão social que o PT pôs em prática são estritamente neoliberais, até mesmo recatadas em relação a este.
Segundo Olavo, no entanto, o PT seria um perigoso partido comunista, com ramificações em todas as esferas da vida social brasileira, prontos para implantar uma ditadura socialista no país. Ele afirma que a esquerda brasileira teria se tornado gramsciana e estaria pondo em prática um plano de revolução cultural, destinado a ganhar os corações dos brasileiros, momento que antecederia a tomada do poder propriamente falando. Olavo não oferece provas para isto — e nem precisa. Como mostra Byford (2011) uma teoria da conspiração não demanda provas, ela se retroalimenta e, até mesmo, provas que a contradigam são encardas em um modelo que somente fortalece a própria narrativa conspiratória. Ou seja, ainda que não haja indícios de que tal conspiração esquerdista ocorra e, ao contrário, o fato de que os governos do PT tenham feito alianças inclusive com setores evangélicos mais conservadores, sem falar da própria CNBB, Olavo pensa que bilionários tupiniquins e membros do partido estariam empenhados em destruir a fé cristã.
Avançamos mínimos em matérias de direitos humanos, convenções contra a tortura, reconhecimento da dignidade da pessoa humana, são tratadas como ofensivas comunistas contra a Bíblia. Em uma palavra, um delírio. Mas um delírio perigoso, já que engaveta conquistas civilizacionais brasileiras como perigo à nossa própria existência enquanto formação social.
Uma das fontes de Olavo são escritores fascistas ou criptofascistas, como René Guénon e Julius Évola. Para esses autores, o mundo moderno, com todas as benesses materiais e de pensamento que trouxe, seria pernicioso, já que outros períodos, quando a fé orientava toda a vida social, seriam preferíveis. Não à toa, as teorias da conspiração se formam primeiro contra a Revolução francesa e a ideologia que a sustentava, o Iluminismo. Olavo não é um liberal, preocupado com igualdade de todos perante a lei ou com a dignidade da pessoa humana, ainda que o afirme. Olavo é um reacionário antiiluminista, em uma cruzada contra o mundo moderno, se valendo de meios que esse mesmo mundo moderno disponibiliza para lutar contra ele.
Em termos lukácsianos, Olavo é um irracionalista. O velho magiar dá como características do irracionalismo: “rebaixamento do entendimento e da razão, afirmação sem crítica da intuição, teoria do conhecimento aristocrática, renúncia dos progressos sociais e históricos, criação de mitos, etc.” (LUKÁCS, 1962, p. 15, tradução nossa). Olavo defende verdades reveladas, ou seja, que aceitemos proposições intuitivas como verdades óbvias; além disso, recusa o mundo moderno; por fim, criou o mito do domínio da esquerda na sociedade brasileira. Claro, a definição de Lukács guarda problemas, como o patente teleologismo histórico, com o qual não concordamos, de modo que fazemos o presente apontamento a título de ilustração. Para os marxistas e congêneres, uma história do irracionalismo brasileiro não pode passar sem um capítulo especial dedicado a Olavo, o mestre contemporâneo dessa atitude em terras tropicais.
O delírio conspiracionista de Olavo chega ao ponto de afirmar que haveria uma conjuração homossexual (“gayzista”, em seus termos) que se infiltraria nas igrejas e cometeria atos de pedofilia tão somente a fim de desacreditar as instituições religiosas frente a sociedade (CARVALHO, 2013). Ou seja, a comunidade LGBT, já bastante marginalizada, seria uma elite tão bem organizada a ponto de conseguir secretamente se organizar e atuar nas distintas agremiações religiosas. Dados são inúteis, como mostra Byford (2011): quem quer acreditar, acredita.
Discurso de ódio
Esse ponto nos conduz ao presente tópico, marcando outra característica do pensamento político de Olavo, o discurso de ódio. Segundo Carlson (2021)
(…) discurso de ódio deveria ser definido como uma expressão que busca difamar um indivíduo por suas características imutáveis, como sua raça, sua etnicidade, origem nacional, religião, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, idade ou deficiência. Eu uso o termo “expressão porque o discurso de ódio inclui não somente palavras ditas, mas também símbolos e imagens que degradam pessoas pelas qualidades com as quais nasceram (p. 9, tradução nossa).
Olavo dedica páginas e páginas a atacar a comunidade LGBT e defender uma moralidade reacionária, tornando a defesa dos direitos LGBT, direitos tão básicos, com expressão de suas afinidades naturais, em uma suposta posição política, o assim dito gayzismo. Os LGBT formariam um poderoso lobby, uma verdadeira maçonaria que contaria com membros infiltrados em todas as esferas da vida social do Ocidente, capazes de influenciar pensamentos, posturas e ações.
Haveria, além disso, um componente tão maligno no movimento LGBT, que este teria criado uma doutrina para influenciar crianças na idade mais tenra a se tornarem LGBT através da educação e do movimento de professores. Esta posição seria expressa na assim chamada ideologia de gênero, a qual afirmaria que qualquer um pode ser qualquer coisa, enquanto o correto, diz Olavo, seria se adequar ao sexo biológico e funções designadas na Bíblia aos sexos. Às mulheres, os papéis tradicionais; aos homossexuais, o “armário”; tudo em nome da defesa da família contra o perigo comunista.
Que políticos conservadores tenham se assumido LGBT em várias partes do mundo, que a própria Igreja Católica tenha feito chamados contra a violência a esse segmento e que o Novo Testamento não traga palavras contra a prática, para a qual sequer existia termo preciso na época, pouco importa. A conspiração LGBT e feminista (chamada de “feminazista”) visaria acabar com as bases da sociedade, preparando o terreno para o advento do comunismo. Tudo isso seria condensado no “marxismo cultural”, uma guarda-chuvas teórico que coloca no mesmo balaio autores com diferenças tão grandes como Foucault e Marx, mas que estariam empenhados em destruir a família cristã.
Carlson (2011) observa como esse tipo de discurso que diminui a dignidade humana de grupos sociais é anteparo para a violência física, já que empodera o ódio. Caso acrescentemos na definição dada acima o ódio contra outras formas de pensamento, chegamos em uma posição onde o olavismo, a mixórdia de ideias equivocadas calcadas em Olavo, se mostra como um claro discurso de ódio. Basta pensarmos no verdadeiro linchamento virtual que sofre a esquerda e qualquer setor minimamente progressista no Brasil atual, linchamento este que, por vezes, descamba para violência física, assédio e até mesmo assassinato. O olavismo alimenta uma cultura do ódio no país, cujo desfecho, caso não seja contido, não pode terminar bem. O resultado do desprezo e do ódio às minorias, à democracia e a tudo quanto tenha o mínimo aspecto de modernidade, como a ciência, são quase 700 mil mortos oficiais (número que pode ser muito maior) por COVID-19 no momento em que este texto é escrito (março de 2022). Sem contar as vítimas de LGBTfobia, feminicídio, e o genocídio contra os povos indígenas. Todos os setores mais retrógrados da sociedade brasileira se sentiram empoderados diante da difusão do olavismo, e como que autorizados a transformar a aspereza das palavras em atos daninhos e até mesmo criminosos.
E a filosofia?
Conforme dito, Olavo é anti-iluminista. Definir Iluminismo passa por distinguir, no período em questão, as principais correntes envolvidas. Cassirer (1932), em seu famoso estudo sobre o período, não faz isto; ele toma os pensadores mais moderados como a vitrine do movimento e deixa de fora as vertentes radicais. É exatamente essa vertente que Israel (2001) considera. Assim, pode-se considerar que Cassirer, bem como Gay (1966) analisam o Iluminismo mainstream, o Iluminismo moderado, e não as capas mais avançadas do movimento. Por isso, Cassirer (1932) pode dizer que o Iluminismo não era contra a religião nem necessariamente materialista, mas, sim, se opunha à superstição. Do mesmo modo, ele afirma, no que aliás Olavo (CARVALHO, 1994) o segue, que o mecanicismo não era a filosofia dominante do período, mas restrito a determinados setores, ou seja, ao radical Enlightenment de que nos fala Israel (2001).
A fonte primeiro dos radicais do Iluminismo é Espinosa. Este, como se sabe, forjou uma filosofia monista, anti-superstição e que não divide deus e natureza. Mecanicista, Espinosa negava os milagres e elaborou um forte criticismo das Escrituras, opiniões que, na época, poderiam resultar em punição até mesmo na liberal Holanda, onde ele vivia. A filosofia de Espinosa foi proibida em vários países no período, e a acusação de espinosismo marca maior de perseguição. Em fato, ser taxado de espinosista significava ser considerado uma pária social, alguém atentando contra os fundamentos mesmos da sociedade, já que a crença em um deus transcendente, que recompensaria os bons e puniria os maus, e cuja maior prova de existência seriam os milagres narrados nas Escrituras — e negados por Espinosa —, era tomada como guardiã da paz social, do reinado dos reis e da pregação dos curas. Muitos pereceram no período por defenderem posições progressistas ou minimamente divergentes da religião majoritária, em um período de absolutismo, teocracia e desmandos.
Sem esses verdadeiros campeões do livre pensar as sociedades ocidentais contemporâneas seriam bem diferentes. Provavelmente, a ideia de uma democracia com múltiplas vozes sendo ouvidas, as noções de tolerância, o reconhecimento da igualdade de todos perante a lei, a separação entre Estado e igreja e o direito de divergir da maioria não seriam tal qual hoje se dão. Sem contar os incríveis avanços em termos materiais que sentimos desde o Iluminismo, verdadeiros fundadores do mundo moderno.
René Guénon foi um pensador místico francês que enxergava uma decadência no mundo moderno, conforme dito. Para ele, a perda de centralidade dos saberes tradicionais, como a alquimia e a astrologia, marcaria o mergulhar da sociedade contemporânea em um abismo. Por isso, Guénon estudou as sociedades tradicionais da época (primeira metade do século XX), nas quais o espírito moderno não tinha chegado, como a indiana (de castas) e a muçulmana (teocrática). Outro traço que, para ele, marcaria o declínio do Ocidente seria a perda do papel de deus e da fé enquanto pontos focais dessas sociedades, o que as arrastaria para um mar de lama. Por isso, Guénon se converteu ao islamismo e foi terminar seus dias no Egito muçulmano (GUÉNON, 2013).
Diz Guénon (2013) que “o espírito especificamente moderno não é, com efeito, como nos o mostraremos mais a frente, nada outro senão o espírito antitradicional” (p. 17). Olavo recomendava Guénon para os adeptos de seu curso e o tinha como uma de suas principais influências. Olavo é, assim, amigo do rei, partidário de uma sociedade antimoderna. É a revolta da intuição contra a razão, a revolta dos mais reacionários partidários da antiga ordem contra o novo mundo que se perfila à nossa frente. Não à toa, criptofascista, já que, para os fascistas, o passado sempre é melhor que o presente e o melhor que o futuro pode nos proporcionar é o reviver do passado, ainda que em novas bases.
O problema é que esse passado que se quer reviver é um passado de violência, autoritarismo, medo, desconfiança e repressão. Um passado onde mulheres não tinham vida pública, negros eram vendidos em mercados, LGBT’s eram queimados vivos e qualquer pensamento dissidente punido. Um passado onde não haviam direitos trabalhistas e liberdade de pensamento era um privilégio ao qual nem todos podiam se dar o luxo. Um passado que custou muito sangue para que nos livrássemos e que pode ser contemplado em países como Arábia Saudita. Um passado que a maioria dos brasileiros, acreditamos, realmente não deseja.
Conclusões
Olavo é a expressão, no campo do pensamento, das camadas mais reacionárias da sociedade brasileira: neonazistas, integralistas, fascistas, anarcocapitalistas, saudosistas da ditadura militar. Enquanto servia para atacar os governos de centro-esquerda do PT, encontrava voz na grande mídia. Depois da massificação da internet, migrou para as plataformas digitais e, aos poucos, acumulou forças, formando gerações de pessoas pseudo intelectualizadas e, ao mesmo tempo, radicalizadas em suas posturas de extrema-direita. O fato da maior parte da mídia ser liberal e apoiar a ordem internacional do pós-guerra, com seu lastro em direitos humanos, tornou os contrários a esta ordem vozes minoritárias, o que alimentava o discurso de Olavo de que ele seria um paladino da direita contra a ameaça esquerdista.
Caso leiamos Locke, vemos ali um liberalismo muito diferente daquele praticado hodiernamente. Locke ecoa os interesses de capas sociais ciosas por mais poder político e em luta com o Antigo regime e suas bases feudais. Em outros termos, Locke expressa uma posição de uma burguesia ainda revolucionária. Olavo expressa os interesses de camadas que foram tolhidas pelas vagas revolucionárias de séculos atrás. Por isso, para ele, os direitos humanos, expressão de um liberalismo ilustrado, se constituem em “pensamento esquerdista”. Se vivêssemos no século XVIII, Olavo estaria contra o fim do Antigo regime e a separação entre Estado e Igreja.
Diz Olavo que
Ideologia é isso: um discurso que, partindo de uma falsa visão do presente, atrai os homens para a construção de um futuro que, depois de pronto, é feio demais para que suportem reconhecer nele a obra de suas mãos. Por isso os desiludidos de ideologias criminosas raramente se apresentam como aquilo que são: cúmplices fracassados de um crime sem recompensa. Apresentam-se como vítimas traídas pelo destino. Falseiam o passado como falsearam o futuro (CARVALHO, 2013, p. 328-329)
É impressionante como as palavras de Olavo, destinadas a combater a esquerda, se adéquam tão bem a seu próprio percurso. Olavo, que ganhou fama maior após as Jornadas de Junho, saindo das trevas da internet para as grandes editoras e livrarias, ajudou a dar consistência teórica ao bolsonarismo, fornecendo uma cabeça àquilo que só tinha mãos. Um pensamento, quando se apropria das massas, se torna força política. As Jornadas de Junho, que eram, na prática ,manifestações contra o governo que demandavam mais direitos, foram apropriadas pela direita. Havia uma correlação de forças desde o fim da ditadura empresarial-militar que colocara a esquerda em uma posição de combate, em um crescendum que terminou nas eleições dos ultracautelosos governos do PT. As Jornadas quebram essa situação e colocaram a direita na ofensiva. Por uma série de manobras, que envolvem, em fato, conspiração de derrotados, lawfare, interesses escusos e, certamente, dólares, construiu-se um governo antipovo, que somente pôde ganharas eleições a partir de fraudes e de uma população constantemente exposta aos malfeitos do PT, através de uma campanha orquestrada pelos bilionários do país, que buscavam, a todo custo, maximizar seus lucros. O resultado foram as eleições de 2018, onde Olavo tinha candidato.
O governo deste candidato, desastroso como não poderia deixar de ser, acabou por escantear Olavo, malgrado o pensamento deste o abastecesse com um fundo ideológico que a família presidencial, deficitária em termos cognitivos, não seria capaz de prover. Olavo, como Dr. Frankenstein, se assustou com a criatura, a qual constantemente atiçava para medidas aventureiras, como um golpe de Estado, mas que permanecia fiel aos militares que, no fim das contas, detém a vice-presidência. Assim, renegou ele sua criação e, opositor das vacinas e da Pepsi-Cola, provavelmente terminou morto por uma doença para a qual já existiam medidas profiláticas. A profecia de Olavo, exposta acima, cumpriu-se. Pelo menos uma.
Olavo trabalhava com temas de filosofia, mas não era filósofo. Não pelo caso de sua ausência de educação formal, mas pelo fato do trato que dava aos textos, faltando-lhe rigor, linguagem adequada e reconhecimento dos pares. Byford (2011) afirma que é inútil e até mesmo pernicioso debater com teóricos da conspiração, o que termina por considerá-los interlocutores sérios. O livro dele data de uma década atrás; quanta coisa mudou em uma década. As teorias da conspiração chegaram à Casa Branca, ao Planalto, dentre outros palácios presidenciais. Criticar Olavo significa mostrar como sua “teoria” é desprovida de bases, meios, e que só possui fins: restaurar um mundo caduco, manter privilégios de super-ricos, matar pessoas, acabar com a diversidade humana. A ausência de interlocutores foi sentida como superioridade argumentativa pela sociedade, o que redundou na força que o olavismo, parte intelectualizada do bolsonarismo, ganhou, trazendo-nos à presente situação.
Conforme dito, para Cassirer, o alvo primeiro do Iluminismo foi a superstição, o misticismo, em uma Europa que ainda queimava pessoas na fogueira por bruxaria. Olavo perpetua o novo mistiscismo, calcado nas inúmeras fake news e delírios. Assim como naquele período, o principal combatente contra o novo misticismo, turbinado por mensagens instântaneas e poderosos interesses, é a filosofia. Assim, esperamos dar nossa contribuição à luta contra esse misticismo ao mostrar como Olavo nada mais foi senão um ideólogo, defensor do indefensável, sem bases para afirmar o que afirmava, e que somente acertou em suas análises caso estas sejam dirigidas contra ele mesmo. Afinal, ate relógio quebrado acerta as horas duas vezes por dia. E Olavo era um baita de um relógio quebrado.
Bibliografia
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