No final de 2008, quando eu ainda era um jovem estudante em Marília,
na UNESP, decidimos, nós da Moradia Estudantil, criar um grupo de
estudos e ação que reunisse comunistas e anarquistas, o Moradas
Comuna, o qual acabou por render muitos bons frutos, diga-se de
passagem. Um dia, já em 2009, estava eu tranquilamente passeando
pela universidade quando um estudante marxista mais velho desse grupo
falou que havia alguém que queria me conhecer. Era Ivo Tonnet. Este
me disse que um autor havia chamado sua atenção no último período
e que ele queria conversar sobre ele com um anarquista. O autor era
Makhno. Eu logo lhe disse que gostava muito de Makhno, mas que
estudava Foucault. Tonnet então replicou: mas este é um liberal!
Tonnet
não está só em sua afirmação. Muitos autores, especialmente
marxistas, acusavam Foucault de ser um liberal, autores como Bidet,
que chega a se perguntar se Foucault não se reconhecia os autores
neoliberais que estudou no curso Nascimento da biopolítica.
Eu, que sempre entendi, desde o momento que comecei a lê-lo,
Foucault como mais próximo do anarquismo, acho descabida a
comparação. Mas, como aquele professor marxistas convicto de
Marília disse, o anarquismo é um liberalismo. Ou seja, não se pode
tomar a régua marxistas como parâmetro já que, tudo aquilo que,
para eles, não siga sua rígida cartilha, automaticamente está do
lado de lá e é defensor da burguesia, reacionário e outros belos
adjetivos que reservam a quem deles discorde.
Mas
também há conservadores que pensam Foucault como pertencente ás
suas hostes. Já escrevi aqui sobre um deles
(https://filosofiabrasileirapolitica.blogspot.com/2020/02/foucault-e-os-aplicativos-de-entrega.html).
Este autor, Gonsález, colombiano, pensa Foucault junto a Tomás de
Auino e Mises para fazer uma defesa esdrúxula do capitalismo, da
Igreja e do machismo. Não vale a pema ler.
Também
não estou só em pensar Foucault como um anarquista. Em um curso na
mesma UNESP de Marília, há mais de dez anos, Sílvio Gallo disse
que considerava Foucault anarquista, mas que ele não se assumira
exatamente por ser tão anarquista. Acrescentou o nobre professor que
ele também era anarquista, mas se acreditava o único no mundo.
Prontamente eu disse: eu também sou anarquista. E logo uns dez
outros estudantes, em um auditório com umas 60 pessoas, foram se
identificando como anarquistas. Sílvo Gallo estava no ninho das
serpentes e não sabia. No final, lhe dei de presente meu exemplar
pessoal do Anarquismo Social e Organização da FARJ. Espero que
tenha feito bom proveito.
Sílvio
Gallo é somente, dentre muitos outros, que não veem liberalismo em
Foucault, mas anarquismo, uma lista de autores que arrebanha gente
como Vaccaro, Passetti, Avelino, Rago, etc. Afinal, será Foucault um
liberal ou um anarquista?
Na
biografia que Eribon redigiu sobre Foucault há um trecho
interessante onde Foucault e Vuillemin, um filósofo da matemática,
trocam um diálogo. Foucaultt diz a Vuillemin, segundo Eribon, algo
do gênero: “o que nos separa é que você é um anarquista de
direita, enquanto eu sou um anarquista de esquerda”. Essa afirmação
é o ponto de partida do famoso texto de Vaccaro sobre Foucault e o
anarquismo, como se sabe.
O
que seri um anarquista de direita, é difícil de aquilatar, já que
o anarquismo é um tipo de socialismo. Claro, há aqueles liberais
delirantes que pensam a divisão esquerda-direita como ligada à
defesa do Estado ativo ou não na economia: quanto mais ativo, mais à
esquerda, quanto menos, até sua completa extinção, mais à
direita. Nesses termos, o anarquismo seria uma teoria de extrema
direita. Fantasia completa, uma vez que a dita divisão se resolve na
questão da divisão do produto social e da defesa das tradições
(opressões) sociais. Ou seja, quanto mais igualitário, mais
libertário.
Para
pensarmos se Foucault pode, fora da régua marxista, ser pensado como
um liberal, deveríamos, em primeiro lugar, exigir uma definição de
liberalismo. Esse se divide em liberalismo econômico, cujos
primórdios vão longe, mas cuja expressão madura se encontra em
Smith; e liberalismo político, vincado pela defesa da propriedade
privada como fundamento do poder político, e certamente sua origem é
mais antiga, remontando a Hobbes e Locke. Em ambos os casos, a defesa
da propriedade privada e do sujeito de direito são fundamentais para
ambos.
Quanto
ao liberalismo econômico, Fooucault não pode ser assimilado. Não
há, em sua obra, defesa da propriedade privada. Ao contrário, ele
aponta como o liberalismo se constitui em um primeiro marco da
biopolítica enquanto gestão da diversidade humana em sua
multiplicidade, em benefício de políticas que privilegiem uma
população saudável. No segundo caso, Foucault tampouco pode ser
entendido enquanto um liberal, uma vez que não se encontra uma
apologia da democracia burguesa, muito menos das ditaduras de tipo
Pinochet em seus escritos.
Além
da denúncia do liberalismo como desencadeador da biopolítica,
Foucault ainda denuncia, em Vigiar e Punir
e outras obras e intervenções, o momento de triunfo maior do
liberalismo, o século XIX, enquanto sociedades disciplinares, com
raízes mais antigas, mas que correspondem ao próprio processo de
formação do capitalismo. A disciplina deve ser entendida como uma
tecnologia de poder que visa obter “corpos politicamente dóceis e
economicamente úteis”.
Foucault
se especializou, em sua fase de estudos mais políticos, e até mesmo
antes, a criticar o tratamento o qual se reservava aos desviantes,
como os loucos, as bruxas e os criminosos,; as perseguições que
sofriam as minorias, como mulheres e homossexuais. Ele apontou o
racismo como constituinte da governamentalidade moderna; se aliou, na
vida política prática, com aqueles que lutavam contra ditaduras,
como no caso brasileiro, tunisiano ou espanhol, dentre outros;
denunciou a tirania e os regimes do leste ou oeste, ou seja,
estalinista ou capitalista. O próprio fato de pensar Foucault como
um teórico do liberalismo não possui consistência ou base
histórica.
Mas,
se Foucault não é um pensador de direita, nem comunista, o que
seria? A nosso ver, Foucault pode ser pensado, com maior justiça,
como um anarquista, mas um tipo com não muitas ligações com o
anarquismo tradicional. De alguma Forma, Foucault e outros
pós-estruturalistas, refundam o anarquismo. Lembremos que este havia
sido praticamente dizimado após a derrotada Revolução espanhola
(1936-1939). É no pós-68, sobretudo, que o anarquismo vai renascer
mundo afora.
Mas,
a maior parte das obras políticas de Foucault é descritiva. Ele
chegou a afirmar que era um “positivista feliz”, e Veyne, em seu
livro de memórias com Foucault, o descreve como alguém que amava os
fatos. Por Foucault recursar-se a exercer um papel de diretor de
consciência e muitas vezes se calar quando deveria falar (a nosso
ver), ele deu azo a muitos enganos e más interpretações. Foucault
faz lembrar a nós mesmos, quando pensávamos que os anarquistas não
deveriam dirigir processos. Com seu conceito amplo de governo como
“arte de conduzir condutas”, Foucault fez de tudo para evitar se
tornar um governante. Ao contrário, preferiu lutar e escrever ao
lado dos governados.