sábado, 11 de março de 2023

Era Foucault um liberal? Breves palavras

 

No final de 2008, quando eu ainda era um jovem estudante em Marília, na UNESP, decidimos, nós da Moradia Estudantil, criar um grupo de estudos e ação que reunisse comunistas e anarquistas, o Moradas Comuna, o qual acabou por render muitos bons frutos, diga-se de passagem. Um dia, já em 2009, estava eu tranquilamente passeando pela universidade quando um estudante marxista mais velho desse grupo falou que havia alguém que queria me conhecer. Era Ivo Tonnet. Este me disse que um autor havia chamado sua atenção no último período e que ele queria conversar sobre ele com um anarquista. O autor era Makhno. Eu logo lhe disse que gostava muito de Makhno, mas que estudava Foucault. Tonnet então replicou: mas este é um liberal!

Tonnet não está só em sua afirmação. Muitos autores, especialmente marxistas, acusavam Foucault de ser um liberal, autores como Bidet, que chega a se perguntar se Foucault não se reconhecia os autores neoliberais que estudou no curso Nascimento da biopolítica. Eu, que sempre entendi, desde o momento que comecei a lê-lo, Foucault como mais próximo do anarquismo, acho descabida a comparação. Mas, como aquele professor marxistas convicto de Marília disse, o anarquismo é um liberalismo. Ou seja, não se pode tomar a régua marxistas como parâmetro já que, tudo aquilo que, para eles, não siga sua rígida cartilha, automaticamente está do lado de lá e é defensor da burguesia, reacionário e outros belos adjetivos que reservam a quem deles discorde.

Mas também há conservadores que pensam Foucault como pertencente ás suas hostes. Já escrevi aqui sobre um deles (https://filosofiabrasileirapolitica.blogspot.com/2020/02/foucault-e-os-aplicativos-de-entrega.html). Este autor, Gonsález, colombiano, pensa Foucault junto a Tomás de Auino e Mises para fazer uma defesa esdrúxula do capitalismo, da Igreja e do machismo. Não vale a pema ler.

Também não estou só em pensar Foucault como um anarquista. Em um curso na mesma UNESP de Marília, há mais de dez anos, Sílvio Gallo disse que considerava Foucault anarquista, mas que ele não se assumira exatamente por ser tão anarquista. Acrescentou o nobre professor que ele também era anarquista, mas se acreditava o único no mundo. Prontamente eu disse: eu também sou anarquista. E logo uns dez outros estudantes, em um auditório com umas 60 pessoas, foram se identificando como anarquistas. Sílvo Gallo estava no ninho das serpentes e não sabia. No final, lhe dei de presente meu exemplar pessoal do Anarquismo Social e Organização da FARJ. Espero que tenha feito bom proveito.

Sílvio Gallo é somente, dentre muitos outros, que não veem liberalismo em Foucault, mas anarquismo, uma lista de autores que arrebanha gente como Vaccaro, Passetti, Avelino, Rago, etc. Afinal, será Foucault um liberal ou um anarquista?

Na biografia que Eribon redigiu sobre Foucault há um trecho interessante onde Foucault e Vuillemin, um filósofo da matemática, trocam um diálogo. Foucaultt diz a Vuillemin, segundo Eribon, algo do gênero: “o que nos separa é que você é um anarquista de direita, enquanto eu sou um anarquista de esquerda”. Essa afirmação é o ponto de partida do famoso texto de Vaccaro sobre Foucault e o anarquismo, como se sabe.

O que seri um anarquista de direita, é difícil de aquilatar, já que o anarquismo é um tipo de socialismo. Claro, há aqueles liberais delirantes que pensam a divisão esquerda-direita como ligada à defesa do Estado ativo ou não na economia: quanto mais ativo, mais à esquerda, quanto menos, até sua completa extinção, mais à direita. Nesses termos, o anarquismo seria uma teoria de extrema direita. Fantasia completa, uma vez que a dita divisão se resolve na questão da divisão do produto social e da defesa das tradições (opressões) sociais. Ou seja, quanto mais igualitário, mais libertário.

Para pensarmos se Foucault pode, fora da régua marxista, ser pensado como um liberal, deveríamos, em primeiro lugar, exigir uma definição de liberalismo. Esse se divide em liberalismo econômico, cujos primórdios vão longe, mas cuja expressão madura se encontra em Smith; e liberalismo político, vincado pela defesa da propriedade privada como fundamento do poder político, e certamente sua origem é mais antiga, remontando a Hobbes e Locke. Em ambos os casos, a defesa da propriedade privada e do sujeito de direito são fundamentais para ambos.

Quanto ao liberalismo econômico, Fooucault não pode ser assimilado. Não há, em sua obra, defesa da propriedade privada. Ao contrário, ele aponta como o liberalismo se constitui em um primeiro marco da biopolítica enquanto gestão da diversidade humana em sua multiplicidade, em benefício de políticas que privilegiem uma população saudável. No segundo caso, Foucault tampouco pode ser entendido enquanto um liberal, uma vez que não se encontra uma apologia da democracia burguesa, muito menos das ditaduras de tipo Pinochet em seus escritos.

Além da denúncia do liberalismo como desencadeador da biopolítica, Foucault ainda denuncia, em Vigiar e Punir e outras obras e intervenções, o momento de triunfo maior do liberalismo, o século XIX, enquanto sociedades disciplinares, com raízes mais antigas, mas que correspondem ao próprio processo de formação do capitalismo. A disciplina deve ser entendida como uma tecnologia de poder que visa obter “corpos politicamente dóceis e economicamente úteis”.

Foucault se especializou, em sua fase de estudos mais políticos, e até mesmo antes, a criticar o tratamento o qual se reservava aos desviantes, como os loucos, as bruxas e os criminosos,; as perseguições que sofriam as minorias, como mulheres e homossexuais. Ele apontou o racismo como constituinte da governamentalidade moderna; se aliou, na vida política prática, com aqueles que lutavam contra ditaduras, como no caso brasileiro, tunisiano ou espanhol, dentre outros; denunciou a tirania e os regimes do leste ou oeste, ou seja, estalinista ou capitalista. O próprio fato de pensar Foucault como um teórico do liberalismo não possui consistência ou base histórica.

Mas, se Foucault não é um pensador de direita, nem comunista, o que seria? A nosso ver, Foucault pode ser pensado, com maior justiça, como um anarquista, mas um tipo com não muitas ligações com o anarquismo tradicional. De alguma Forma, Foucault e outros pós-estruturalistas, refundam o anarquismo. Lembremos que este havia sido praticamente dizimado após a derrotada Revolução espanhola (1936-1939). É no pós-68, sobretudo, que o anarquismo vai renascer mundo afora.

Mas, a maior parte das obras políticas de Foucault é descritiva. Ele chegou a afirmar que era um “positivista feliz”, e Veyne, em seu livro de memórias com Foucault, o descreve como alguém que amava os fatos. Por Foucault recursar-se a exercer um papel de diretor de consciência e muitas vezes se calar quando deveria falar (a nosso ver), ele deu azo a muitos enganos e más interpretações. Foucault faz lembrar a nós mesmos, quando pensávamos que os anarquistas não deveriam dirigir processos. Com seu conceito amplo de governo como “arte de conduzir condutas”, Foucault fez de tudo para evitar se tornar um governante. Ao contrário, preferiu lutar e escrever ao lado dos governados.

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