domingo, 16 de junho de 2024

Estamos em guerra!

A história das relações entre filosofia e guerra é de longa portada: das diatribes de um Tales, na aurora mesmo da filosofia, às escaramuças de um Foucault no Irã, as relações entre filosofia e guerra persistem no mundo. Até mesmo existe a disciplina subvalorizada e escamoteada da filosofia da guerra, que deveria, nos diz um manual do Exército brasileiro, tratar das concepções as mais gerais e teóricas relativas à guerra. Rappaport é claro: quando países entram em guerra, entram em prélio também suas concepções fundamentais de mundo, sociedade, política etc. Ou seja, no campo de batalha são, em último caso, filosofias que aspiram à dominância. A filosofia não é, como querem alguns, nem inerme nem inocente, muito menos candura da aspiração às verdades eternas. Trata-se uma disputa séria, de vida ou morte, sobre os destinos dessa espécie em constituição que é o humano.
Marilena Chauí, no clássico Convite à filosofia, distingue uma certa postura, a filosófica, de outra, a do senso comum. Enquanto este domina e opera através dos marcos da religião e da boca miúda, a filosofia propõe um aparato crítico a fim de nos situarmos no mundo. Ela é, pensa Deleuze, inimiga da tolice e das assim chamadas verdades cotidianas do bom senso e do senso comum, ela é inimiga do agir sem reflexão, da crença em dogmas, da mesquinhez do solipsismo das nossas convicções não refletidas. Não são poucos os manuais que datam a filosofia ou, ao menos, seu ganho de estatura em Sócrates, famoso filósofo ateniense. Ora, o que Sócrates fazia e que lhe custou a vida era precisamente interrogar o senso comum a fim de demovê-lo das crenças fáceis, mas equivocadas daqueles que pretendiam saber e exerciam funções públicas e privadas a partir disso para o peso da vida examinada, crítica, pautada no uso da razão. A clara distinção platônica entre a doxa e a noesis, entre a mera opinião, atada às imagens, e o conhecimento das formas puras é um cartão de visita do inimigo primeiro da filosofia.
Mas não só. A filosofia surge em um contexto de mudanças sociais marcantes em toda a bacia oriental do mediterrâneo, ao menos a filosofia ocidental. Na metrópole, conflitos de toda ordem pela posse de terras em uma sociedade constantemente polarizada obrigaram setores inteiros a abandonar a terra mãe em benefícios de campos incultos em outras paragens. A filosofia, diz Farrington, surge nas colônias porque lá não havia o peso das tradições aristocráticas e mentais que havia em uma Corinto, Esparta ou Athenas. A filosofia é inimiga das tradições, especialmente daquela religiosa, já que ela surge em contraposição ao mito.
Mesmo no momento mais tenebroso da filosofia, quando ela é capturada pela mística oriental naquilo que conhecemos como patrística e escolástica, sua verve atuava contrariamente a essa própria mística religiosa, na medida em que os postulados filosóficos agiam não no sentido prático de fundamentar uma crença religiosa, mas, em sua própria atuação, fortaleciam a razão, a qual, usada de forma crítica, fatalmente há de criticar, como criticou, o mito. A teologia, já disse um sábio, nasce da falta de fé.
Essa disputa contra as forças do mito se estende por toda a histórica da filosofia cujo ápice é, precisamente, o século XVIII, o século decisivo da história do mundo. Com antecedentes importantes no centênio então extinto, os Iluministas definem o que seria uma tarefa filosófica por excelência e o que seria antifilosófico. A noção de antifilosofia surge precisamente em meados do século XVIII a fim de lutar contra os pensadores que sacudiam, por toda a Europa ocidental, as relações milenares entre trono e altar, que redundava em uma massa inculta, atada à terra, débil, de vidas curtas e crentes que o mundo era sofrimento, não gozo, e que pagavam pena nesta terra somente pelo fato de serem como eram: humanos.
Antifilosofia é um nome muito apropriado para dar conta das distintas manifestações que hoje abarcam a maior parte do mundo. De um lado, a velha esquerda e suas frações lutando por um novo mundo, racional, mas não a racionalidade burocrática d’O processo, que esmaga os humanos e lhes impõe uma vida de miséria. Mas contra o irracionalismo que pauta o sistema dominante, o qual vem acabando com a humanidade e o planeta. O liberalismo clássico, que assumiu formas revolucionárias na pena de um Locke, ainda que com os entraves que sua posição enquanto escravocrata implicava, desde muito tempo tornou-se antessala do fascismo.
As pessoas estão cansadas, maltratadas, doentes e desiludidas. Uma esquerda que deveria oferecer alternativas se ocupa em tornar o sistema melhor, como se quisessem borrifar sobre uma pilha de esterco um perfume francês. Ora, os inimigos da filosofia, os antifilósofos, os inimigos da humanidade, se comprazem com isso, uma vez que se alimentam justamente de sentimentos românticos, especialmente aqueles que afirmam a nostalgia por um passado onde as coisas eram melhores.
Trata-se de uma verdadeira contrarrevolução feita em nome de uma outra tradição ocidental contra a qual os filósofos têm se batido: a mística religiosa, os preconceitos de raça, o machismo, a homofobia, e, não menos importante, a guerra aos pobres e às colônias.
 Alliez e Lazzarato, em uma curiosa mistura de marxismo e pós-estruturalismo, e até mesmo Losurdo, mostram bem como o capitalismo faz, fez e se alimenta de guerras. Ora, trata-se de uma guerra civil planetária, cujo alvo é você, sou eu, somos todos, com a intenção de extrair lucros para uma minoria e condenar o restante à estafa, à exploração, à opressão e até mesmo à morte, como o faz a polícia brasileira com os jovens periféricos.
Agamben nos diz, em Stasis, que a guerra civil é um tema filosoficamente pouco desenvolvido e que estaríamos por esperar uma doutrina que dela desse conta. No correr do texto, ele examina Hobbes, autor do mais famoso tratado de apologia do absolutismo. Hobbes é apontado como materialista por muitos comentadores, ainda que dedique parte substancial do Leviatã a tratar de motivos bíblicos. Agamben mostra como a conexão é ainda mais profunda. Se Chevalier já mostrava como a famosa capa da edição original do livro era como que um resumo das ideias contidas no volume, Agamben opera com elementos de iconografia, a fim de mostrar como todo o edifício hobbesiano, famoso por se assentar na noção de que, no estado de natureza, é a guerra de todos contra todos que impera, é religioso de cabo a rabo.
Mas, já notara Foucault em seus cursos, Hobbes não propõe um pensamento que seja belicoso. Muito ao contrário: se há sociedade é porque a guerra de todos contra todos já se extinguiu e todos renunciaram a seu poder natural em benefício do poder soberano, único capa de domar as más paixões do homem lobo do homem. Foucault, por sua vez, opera com toda uma outra gama de conceitos, invertendo a fórmula de Clausewitz segundo a qual a guerra é a política continuada por outros meios. Assim, nos diz Foucault, é a política que é a guerra continuada por outros meios.
Política é um termo com muitas definições, que varia ao gosto do pensador ao qual se dirija a atenção. Ora, se pensarmos que o termo se liga à noção de pólis (termo de tradução ambígua, mas que podemos verter como cidade enquanto sinônimo de país), a política é a arte (porque nem ciência, nem técnica propriamente falando) de administrar a cidade. Tudo que está contido nos limites da cidade interessa a política. Nas relações humanas, bem pouco é ditado pela Ananke impiedosa, como a variedade de costumes, línguas, modos e formas de se portar bem indica. Assim, se tudo no interior da cidade importa e é determinado pela política, tudo poderia ser de outro jeito. Depende da liberdade humana que escolheu que fosse dessa forma, observados, obviamente, limites físicos e históricos.
Ora, essa escolha não se dá de forma clara. Não são sujeitos plenamente conscientes, capazes de avaliar coerente e racionalmente os destinos de seu país, porque o humano, como mostrou Freud, não é só razão. Nele operam forças maiores, anteriores à razão e coparticipes nos processos decisórios nos quais o humano tem seu quinhão. Para alguns, como Mandeville, seria justamente essas forças as mestras do destino da espécie, não a razão cartesiana de um cogito onipotente. Essas conclusões são tanto mais válidas quanto industrializada for uma sociedade, onde as forças do dito mercado operam de maneira constante de modo a forjar sujeitos aptos às exigências desse próprio mercado. A disciplina, como mostrou Foucault, nos aurores da modernidade constitui elemento fundamental para a constituição dos sujeitos propícios à exploração econômica e à servidão política. Hoje, bombardeados por propagandas, treinados desde pequenos ao consumo, manipulados por eslogans e estratégias de marquetim, moldados por um sistema de ensino que lhes prepara para a passividade, as pessoas são enquadradas em uma lógica de aço onde comprar é a medida de todas as coisas. Trata-se, no dizer de Alliez e Lazzaratto, nas pegadas de Foucault, de uma guerra de subjetividades; no jargão marxista, de uma guerra ideológica.
A política, retomando o fio da meada, trata, pois, da administração das coisas da cidade. Ora, todo o planeta se tornou cidade. Já Hakim Bey, no clássico TAZ, observava como já não há mais território selvagem. O Google mapeou todo o planeta, e os satélites captam em tempo real as mais ínfimas mudanças na superfície do globo. Dessa maneira, a Terra toda se tornou um campo de disputa da política. 
Mas só há política justamente porque poderia ser de outra forma, ou, dito de outro modo, porque há liberdade. A administração da cidade faz-se porque o humano é livre e pode escolher que o mundo não seja da forma como é em seu âmbito. Se as coisas tomaram o rumo que tomaram foi porque escolhas existenciais, como diz Vieira Pinto, que refletiram no formatar da sociedade foram tomadas. Essas escolhas, no caso de nossa civilização, têm repercussão estratégica e foram tomadas sem que os sujeitos envolvidos tivessem dimensão do alcance dessas decisões. Quem primeiro plantou uma semente não poderia imaginar que esse singelo ato redundaria em uma agricultura robotizada. 
Quando Tales resolveu substituir às explicações míticas do mundo uma outra, desdivinizada, ele não poderia estar consciente do impacto de suas ideias, nem os e as milhões de trabalhadores e trabalhadoras que, em um processo multimilenar, foram criaram e aperfeiçoaram as técnicas que redundariam na revolução industrial. Ocorre que essas mudanças se acumulam, são reinterpretadas, alteram o rumo, e têm efeitos sobre a cidade.
Quando os gregos passaram a cultivar um dos tipos de filosofia, eles fizeram uma escolha existencial: privilegiar o logos em detrimento do mito escanteado. Quando os atenienses adotaram a democracia, fizeram outra escolha: declarar a igualdade de todos perante a lei, perante a cidade. Quando os gregos deram justificativas racionais a fim de provar a existência de deus, já se mostrava a maquinaria que estava por se constituir, a racionalização do kosmos visando controlá-lo. O mito, claro, já indica um posicionamento de explicação do mundo, mas há um salto qualitativo entre a cosmogonia hesiódica e o fragmento de Anaximandro. Os gregos optavam, dessa forma, não por uma inspiração divina na forma das musas, por uma verdade revelada pelos deuses para explicar o mundo, mas pelo engendrar de cadeias causais de raciocínio que dessem conta de explicar a totalidade. Ao rei, os atenienses substituíram pelo povo como poder constituinte, à religião, a filosofia, à fantasia e inspiração, a razão.
Já se contou a história do Ocidente como a luta contra o obscurantismo religioso. A Idade Média, cognominada Idade das trevas, onde a teologia era mater suma, foi vencida pela recuperação precisamente dos antigos gregos, naquilo que ficou conhecido como Renascença, raiz mesma da modernidade. Evidentemente, os renascentistas beberam das fontes medievais, mas as rupturas são maiores que as continuidades, as forças que impeliam a mudança foram superiores àquelas conservadoras que queriam manter o mundo como estava. A vitória da luz da razão sobre as trevas do mito parecia ganha no século XVIII, cujo coroamento fora a Revolução francesa.
É comum que se oponha a razão à força. Temos insistido, com Trasímaco, no direito positivo e no fato de que, em uma sociedade, a razão é a conveniência do mais forte. O mais forte não se confunde com a maioria, mas, sim, com o mais organizado, o que facilita que grupos pequenos logrem grande influência caso estejam coesos e determinados. Assim, as massas silenciosas passam o cheque em branco para aqueles que conseguem manipulá-las. Ora, os interesses, outra palavra fundamental da política, que se opunham a uma radicalização do processo de desdivinização e racionalização do mundo, conhecido como socialismo, vertente consequente do Iluminismo, se aperceberam que esse iluminismo jogava contra suas posições. Assim, recuaram e adotaram elementos próprios do mito. Na forma política, isso se transformou no fascismo, nesse romantismo político que paira sobre nossas cabeças no atual momento.
O fascismo declara guerra às raízes mesmas da civilização, declara guerra à razão. Ele não fruto da razão, como querem alguns, somente se vale dela como meio, não como fim. Seu objetivo não é racionalizar o mundo, mas mistificá-lo. Seu objetivo não é, como manda a razão, assumir que os humanos são iguais entre si, mas declarar uma parte superior a outra. Seu objetivo não é garantir a todos as mesmas condições, mas perpetuar as desigualdades. Para tanto o fascismo pode assumir várias formas. No Brasil, as forças fascistas assumiram a forma do bolsonarismo.
Em um verdadeiro movimento preventivo, partes importantes da classe dirigente brasileira tomaram o partido do fascismo, a fim de impedir a radicalização do processo progressista iniciado na década de 70, com as greves operárias do ABC. Em uma lenta maturação, esses interesses foram acumulando forças, com apoio da mídia hegemônica e de embaixadas estrangeiras, até mostrar suas caras há uma década e originar organizações políticas fascistas. Calcados em notícias falsas e domínio das tecnologias de ponta, iniciaram uma guerra aberta contra os poucos avanços que que as forças populares tinham arrancado das classes dirigentes em momento de ascenso.
Esse processo não é só tupiniquim, mas global. Forças espúrias, que querem mitificar o mundo, dotados de recursos providos por bilionários com consciência de classe, atuam para impor uma derrota em todas as frentes às classes trabalhadoras globais e ao próprio planeta entendido como sistema. Como a Terra toda se tornou política e, para que o planeta permaneça habitável, necessitamos racionalizar o uso dos recursos, essa articulação de forças fascistas declarou guerra ao planeta como um todo, a vida mesma. Biopolítica in extremis.
Enquanto as forças iluministas não reconhecerem e agirem como se estivéssemos em uma guerra cujas trincheiras é a possiblidade de vida no planeta continuaremos a perder espaço. Os fascistas estão na ofensiva porque estamos enfraquecidos. Meio século de ataques neoliberais enfraqueceu de tal forma a classe trabalhadora, única força capaz de se opor, com suas organizações, ao avanço fascista, que hoje estamos vivendo uma surra de classes ― e somos nós nas cordas.
Reconhecer que estamos em guerra e que o socialismo é a única saída para os problemas estruturais significa garantir um futuro para o planeta. Socialismo ou destruição da civilização. Eis a palavra de ordem de nossos dias.

Um comentário:

  1. Felipe, adorei seu texto precisamos nos organizar para combater o Fascismo que mata nossa Nação. E a Filosofia é a arma da crítica perfeita para nós libertar dessa obscuridade chamada Bolsonarismo/Neofascismo. Gratidão!

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