quarta-feira, 2 de abril de 2025

Poema plano

 Quando nasci, anjo nenhum veio me acolher

Porque anjos não existem,

Mas minha mãe disse: 

vai Fê, ser grande na vida.


Herdei o ódio à religião

Dos ateus do iluminismo

Mas foi com a razão que

O desenvolvi.


Nas ruas, ninguém espia ninguém

Só o governo e as corporações

Espiam todos.


Vou caminhando até o centro.

Um crente, dois crentes, três crentes.

Ó mundo, para que tanto crente?

O mundo nada me responde

Mas meu coração sabe

De tudo


Há tanto templo cheio

De pessoas ocas

Tanta verborragia, tanta mentira,

Tanto engodo, tanto pilantra


A hipocrisia é o feno da religião.

Um homem hipócrita atrás do bigode

E a mulher falsa atrás do óculos

São os típicos religiosos.


Ó mundo, como odeio religião.

Deus, se não existe, porque nos

Atormenta? Se fosses real,

Todos saberiam. Mas o humano é fraco.


Religião, religião

Malvada religião,

Mas malvado é do religioso

O coração.


Por isso vou te dizer: tome um gole

Dessa cerveja. Ela nos deixa mole mole

Azeita o cérebro, e comove a gente

Como louco


RP, outono de 2025

Na origem do político a guerra?

 

No latim abstraho significa “separar de”, “destacar de”, “afastar de”. É um verbo de uso corrente, como também do português, origem quase intacta de onde sorvemos este como muitos outros vocábulos. Meillet e Ernout, no seu Dicionário etimológico do latim, não notam o termo o que dificulta a tarefa de precisar suas origens. Mas temos um palpite. Assim como nas línguas modernas como alemão e russo, e também o português, muitas palavras do latim são formadas justapondo termo mais primitivos. No caso, são claros os termos originais: a preposição ab-, grafada abs-, e o verbo traho. Ab indica um movimento para fora, um afastamento, uma separação, ao passo que traho indica tirar, arrastar, puxar. Assim, abstraho indica o movimento de puxar para fora, de arrancar de um lugar interno para outro, desta vez externo. Do termo abstraho, veio o nosso abstrair e os vocábulos derivados, como abstrato, abstração, etc.

Na virada do século retrasado para o passado, Windelband, em plena onda neokantiana na Europa, introduziu dois termos para tratar do problema que estava posto e que já era o de Kant: o descompasso entre as ciências naturais e as humanas. As primeiras faziam progressos a olhos vistos, calcadas na matematização da natureza e em um caminho que parecia seguro, com resultados práticos que se tornavam mais e mais acessíveis a todos através das conquistas da técnica. Já as segundas, envoltas em querelas, escolas e seitas, se debatiam em um sem fim de polêmicas, que, na comparação, pareciam lhes tornar infrutíferas e bizantinas. A distinção que Windelband introduziu foi aquela entre as ciências nomotéticas e as ciências idiográficas. As primeiras buscam por leis universalmente válidas, por constantes aplicáveis a qualquer parte do kosmos, cujos resultados serão sempre os mesmos; ao passo que as segundas se debruçam sobre eventos específicos, sobre acontecimentos que ocorrem uma vez somente e são irrepetíveis no tempo e no espaço: é a lógica do acontecimento.

Essa distinção não fazia muito sentido para muitos dos cientistas das humanidades. Estávamos no tempo do positivismo e mesmo o marxismo parece ter pretensões nomotéticas. Ao mesmo tempo, desenvolvia-se um forte apelo idiográfico nas humanidades, uma busca por compreender os fenômenos em seus vincos específicos, em seus contornos que os particularizavam na miríade do plasmado.

Ora, esse debate se estende, a bem da verdade, até hoje, se pensarmos, por exemplo, na oposição entre foucaultianos e marxistas. Foucault situava a própria contemporaneidade filosófica no opúsculo kantiano sobre as Luzes, onde, nos diz, a questão é saber e delimitar o que torna o presente presentemente este presente, e não um outro. É a sua ontologia de nós mesmos, ontologia histórica ou outro nome que se dê. Já os marxistas se apoiam em outra sorte de pressupostos, ao menos se dermos razão a Lukács; ora, nos diz, o fundamento de toda coletividade humana é o trabalho, de modo que é a ele que devemos nos dirigir caso busquemos compreender e fundar uma ciência social.

Assim, Foucault vai se interrogar, especialmente em seu período mais político, o que constitui o presente como tal, o que o tornou exatamente isto que ele é. Um dos traços que ele parece notar é que a política é compreendida como guerra. No curso Em defesa da sociedade marco absoluto de seus trabalhos, ele vai se interrogar: onde a política foi pensada, pela primeira vez, como guerra? Retornando no tempo, ele se detém nos processos que conduziram ao fim da Idade Média e começo da modernidade, não à toa, a nosso ver (como também no de Alliez e Lazzaratto), o mesmo período onde se armava o capitalismo. Fica nas entrelinhas de Foucault que teria sido com o capitalismo que primeiro se pensou a sociedade e as relações políticas como organizadas em torno de termos e práticas belicosas. Assim, profetizam Alliez e Lazzaratto, nosso trabalho consiste em por fim a isso e pensar a política em outros termos, que eles não indicam.

O capitalismo se fez, nos dizem, não somente através de guerras reais, onde exércitos se enfrentam, mas também, e sobretudo, através daquilo que chamam de guerras de subjetividade, onde populações inteiras foram enquadradas visando formar esse bicho estranho, esse que é o servo voluntário: o cidadão moderno, passivo, submisso, mandável, “fútil, cotidiano e tributável”. Na Idade Média e em boa parte do período posterior não era desse modo: as revoltas eram constantes, os massacres também e as guerras, sem estarem organizadas em torno de um poder centralizado, de um Estado soberano, se faziam e desfaziam às milhares.

Foucault, entretanto, erra ao indicar que a política e a sociedade foram pensadas como guerra primeiramente nos estertores da Idade Média. Já na Antiguidade um outro filósofo pensou a política e, mesmo, o kosmos como guerra e foi Heráclito, como se pode ler em vários fragmentos, especialmente no 53 DK. Claro, antes dele, já com Anaximandro e, depois, com Empédocles, já se entrevia outros usos para a noção de guerra além daquele estritamente bélico. Esses usos outros estão espergidos pela história do pensamento, seja em formas metafóricas (como Agostinho na Cidade de deus), seja em proposições mais diretas, como Hobbes e sua guerra de todos contra todos.

O uso que Foucault identifica no crepúsculo do medievo é a noção de guerra de raças, a qual, segundo ele, foi redundar no nazismo. Essa noção de que existem raças e de que elas estão em luta teria surgido, nos diz, especialmente durante a revolução inglesa, mas não como um discurso de opressão, como foi o nacionalsocialismo, mas, sim, como uma arma de guerra dos setores oprimidos, contra uma nobreza de origem estrangeira, normanda. Mas já durante o Iluminismo teria sido recuperado por setores da nobreza francesa a fim de pressionar o rei absolutista por mais direitos.

De toda forma, enquanto a prática política mais bem acabada da noção de guerra de raças é o nazismo, sua expressão teórica prévia encontra-se formulada por uma série de teóricos do século XIX, como Gobineau, Gumplowicz e Chamberlain. Os textos desses autores não guardam o mesmo estatuto. Os dois primeiros se pretendiam cientistas e faziam a ciência de seu tempo. Já Chamberlain escreveu uma espécie de manifesto racista, ainda que fundado nas pesquisas de autores, tais quais os previamente citados. Era o clima do século, onde a medicina e a biologia faziam avanços incríveis e as bases do período seguinte, calcado em massacres, se punham. É o século de afirmação das diferentes nacionalidades, do chauvinismo, no triunfo do Estado-nação, no positivismo, enfim.

Gobineau escreveu muitos livros, já envoltos em um dos mitos do periodo, o arianismo. No Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, livro gigantesco, em vários tomos, ele escreve uma espécie de história racial do mundo, narrando como a organização global contemporânea e as antigas civilizações são fruto de um festim de povos, que se massacram, fusionam e dão à luz diferentes civilizações Cada povo seria dotado inatamente (hoje diríamos, geneticamente) de qualidades próprias. Uns, espertos, fortes, decididos, teriam características para serem senhores; outros, pusilâmines, fracos, desprovidos de potência, deveriam ser mandados. Gobineau escreve nos marcos de um pensamento ainda religioso, se diz cristão e crê na salvação dos brancos dos perigos das civilizações femininas e emasculadas, como ele as divide.

Esse gênero de pensamento encontra ecos em Gumplowicz, o qual radicaliza Gobineau e vai propor modelos abstratos a fim de se pensar o desenvolvimento histórico. Para ele, em uma paródia de Comte no Curso de filosofia positiva, haveria vários níveis de processos na realidade: cosmológico, físico, químico, vegetal e animal. Ora, esses processos vão do mais abrangente, o qual, portanto, determina os demais, ao menos abrangente, que é determinado pelos demais, assim como, para Comte, as ciências naturais mais gerais, como a álgebra e a geometria, determinam a física social, mais concreta e menos abstrata, passando pela física, química, etc. Para Gumplowicz, a história do mundo é a história de como as raças dominaram umas as outras, como impuseram entre si regimes políticos, visando favorecer um povo em detrimento do outro. A noção de raça que ele se vale, não, é, no entanto, biológica. Ele cita vários termos, como Stamme (estirpe), Nation (nação), Volk (povo), Rasse (raça), etc. No princípio haveriam famílias isoladas. Estas, organizadas em torno de um patriarca, seriam a origem do Estado. Uma família de uma mesma tribo dominaria a outra, dando origem, destarte, aos diferentes Estados, com o pater famíliae aparecendo enquanto embrião do rei. Formado um povo, este invadiria outro povo mais pacífico e lhe imporia sua organização social, formando, assim, com o tempo, um novo povo, uma nova raça, em um crescendum que foi redundar nos grandes e coevos Estados-nação.

Gumplowicz mostra, nesse como em outros textos, certa preocupação científica. Para ele, ao contrário de Comte, o qual ele censura, a ciência deveria entender, não colocar o que poderíamos chamar de axiologia em seus julgamentos, muito menos fins enquanto eixos organizadores do discurso, tal como fez o positivismo, com sua religião da humanidade, por exemplo. Vale, para ele, a máxima de Espinosa: nem rir, nem chorar, compreender.

A obra de Gumplowicz é um verdadeiro marco. Se bem ele morra ainda nos princípios da 1ª Guerra, já se formava todo o caldo cultural do nazismo, o qual conduziria o mundo a seus dias mais sombrios. Ora, essa noção de “guerra de raças” é retomada por teóricos nazistas e pelo próprio Hitler. Em Mein Kampf, há uma construção do judeu como uma espécie de vírus social, com intenções hegemônicas e efeitos deletérios. O judeu, diz, polui a raça, envenena o sangue puro dos alemães, é uma mácula que deve ser extirpada. Enquanto Gumplowicz, bem como Gobineau, e mesmo Chamberlain, outro teórico com profundas influências no nazismo, sabiam que “não há raça pura”, uma vez que todas são frutos de múltiplas mestiçagens ao longo da história, Hitler defende uma espécie de higiene genética no povo alemão. E isso é só a ponta do iceberg. As mulheres, por exemplo, deveriam ser donas-de-casa e procriar. O próprio modelo de país que Hitler nutria era um no qual não haveria grandes cidades, mas pequenas vilas, onde os perigos da vida urbana, com seu ambiente que convida ao desregramento moral, seria cortado pela raiz. Para que o povo alemão, superior em tudo aos demais, especialmente aos judeus e negros, pudesse sobreviver e, assim, se constituir em uma raça de senhores de toda a humanidade, ele precisaria de um espaço vital, de uma ampla área dotada de recursos naturais, de onde ele pudesse retirar seu sustento. Um povo pelo qual Hitler nutre particular desprezo são os eslavos. Lembremos que Hitler era oriundo do Império Austro-húngaro, e que este compreendia várias etnias eslavas. Há, em Mein Kampf, queixas e mais queixas sobre uma eslavização do Império, sobre como os eslavos, feito ratos, invadiam as dependências do outrora pasteurizado povo austríaco-germânico. Sabemos o resultado desse gênero de pensamento.

Ora, e o que tudo isso, exposto nos últimos parágrafos, tem a ver com os primeiros parágrafos, sobre ciência nomotética ou idiográfica? Tudo. Gumplowicz pensava que a guerra de raças seria a base de uma sociologia científica, verdadeiro ponto arquimediano que prometia explicar todas as vicissitudes da vida social. Era, assim, nomotético. Já Foucault, um século depois, com um mundo já calejado pela experiência do nazismo, recupera bem a raiz dessa noção, os trabalhos de Boulainvilliers, um pensador que, segundo Jonathan Israel, estudioso do século XVIII, seria já iluminista. Boulainvilliers, um nobre francês com idade e tempo de vida próximos aos de Leibniz, escreveu como a nobreza francesa era de origem germânica, ao passo que o povo é galorromano. Ao longo do tempo, esse gênero de noção foi desembocar em autores como Gumplowicz, Gobineau, etc.

Por outro lado, as duas outras vertentes das ciências humanas nomotéticas, o marxismo e o liberalismo, redundaram no estalinismo, ao qual Foucault não via com bons olhos, e no neoliberalismo, o qual ele também denuncia. Assim, para Foucault, é como se as ciências nomotéticas as leis da história e da sociedade, as histórias de todas as formações sociais, as constantes espaçotemporais, as ontologias (em sentido duro), etc. trouxessem consigo o perigo de regimes opressores. Todas elas redundaram em formas de organização da sociedade que acabavam com a liberdade humana, promoviam miséria e massacres. Foucault era, decididamente, um idiográfico.

Por isso, Roberto Machado, grande intérprete brasileiro de Foucault, podia afirmar que não havia em sua obra teoria do poder, somente descrições históricas, precisa e recortadas. Como notamos em alguns textos, entretanto, e fomos rechaçados pelos pares, há pressupostos ontológicos na obra de Foucault, como não poderia deixar de haver. Esses pressupostos são, eles mesmos, de ordem conflitual, assumem que o mundo é um espaço vincado por querelas e completamente artificial, isto, não natural. Tudo é politizável, nada brotou da terra nas sociedades humanas; ao contrário, são frutos da liberdade criativa e multifacetada de uma espécie cujo único laço é o liame biológico, pois todo resto a separa. É como se Foucault, querendo se esconder do Sol, somente se expusesse aos raios lunares, desconhecendo, destarte, que esses também são raios solares. Pode-se dizer, pois, que mesmo uma ciência idiográfica carrega consigo traços nomotéticos, os quais são impossíveis de se fugir, já que estão embutidos nas concepções mais gerais e fundamentais filosóficas? — do autor. Ou, em outros termos, para poder jogar fora a escada de Wittgenstein, Foucault, primeiro, teve que trepá-la. E ele subiu alto, bem alto.