sábado, 27 de setembro de 2025

I.C.E.

 Nunca te conheci,

Silverio Villegas González,

Mexicano de Michoacan,

Pai de filhos,

Trabalhador no coração do Império.

Nunca te conheci,

Mas é como se fôssemos

Velhos amigos,

É como se nas dobras do tempo

Tivéssemos partilhado infância

Copo e mesa.

Nunca te conheci,

Mas te vejo todos os dias

Na América Latina nossa

Na América Latina que expulsa seus filhos

Para serem mortos pelos abutres do norte.

Nunca te conheci,

E, se tivesse te conhecido,

Teria dito: não vá!

Fica!

Mais vale tua vida e a dos teus,

Mais vale os nossos.

Nunca te conheci

Mas ao ver teu assassinato

Senti um gosto de sangue

Como se minha carne tivesse sido cortada.

O fascismo voltou, não sabias?

Ah, mas é claro que o sabias;

Do contrário, por que teria partido?

O fascismo permaneceu e segue matando gente como nós.

Para gente da gente, é sempre fascismo.

Até que nos cansemos,

Até que os caixões sejam outros e outras as lágrimas.

Mas, desta vez, serão lágrimas de alegria,

Porque o mundo será nosso!


RP, Primavera de 2025

Em memória de Silvério Villegas González, morto pela polícia política de Trump neste setembro de 2025

domingo, 10 de agosto de 2025

Petit IV

 

Ó Petit,


Sinto fogo imenso

Derrete minha bunda

Quando no seu pau penso

Se a Parca iracunda

Seu amor não me conceder

Quero não amar nunca mais

Prefiro morrer!

Se, no da vida cais,

eu não obter

A sua parte de trás

Que o mar me trague

Que o Orco me desvaneça

Só quero que minha mão pegue

Na sua parte e que ela cresça!

Declarei-me já

Agora responda

Devo abrir uma cerveja

Ou preparar morte hedionda?


Primavera de 2024

Do futuro

 Meu estômago já provou

O gosto amargo da miséria

O peso do vazio.

Já sofri as sete pragas

Que me vergaram.

Por hora, são passado.

Mas, no rio da vida,

Onde nos banhamos

Sem repetição,

Quem conhece as misérias

Que me aguardam?

Do futuro, quem sabe?

Do futuro, qual sabe?

Do futuro, qual, sabe?


RP, inverno de 2024

Wabstratinho

 Por tentativa e erro fiz a vida,

Por vezes acertada,

Noutras sofrida,

Mas sempre bem vivida.

De azar e sorte

Fiz carreira

E de estratégia, construí um norte.

Não deixei sobreira

Amei por esporte

Me fiz homem

Me fiz gente

E o se assim não me aceitem

Não faz mal, sou ser, sou ente.

Quando dá medo,

Me torno mais valente.

Medo do arremedo

De amor, medo de não te ver novamente.

Na hora da dor, meu coração por ti bate,

Minha pele por ti sente

Tenho certo que nós dois

Vamos seguir em frente

Como feijão com arroz,

Com amor que não mente.


RP, inverno de 2024

Descrição sumária dos inimigos

 Não,

Não é a fome que me preocupa,

Mas a sede.

A sede de sangue.

Intensa, fatal.

A obsessão com o sofrimento

O modo como se organiza o mundo

Para a dor.

Não há o que baste para saciar

Essa sanha.

Melhor seria se nosso dever fosse

O gozo.

Gozo intenso, gozo forte

Fruir fundo a vida,

Essa brisa que nos leva

Esse furacão que arrasta

Essa tempestade que assola.

Os negadores,

Os anacoretas do desconforto,

Os senhores do tormento,

Os profetas dos seres imaginários,

Os escravos do papel,

Os duques da moeda:

Eis o inimigos que não gozam.

Quando o humano aproveita,

É o próprio tempo que para.

É o tecido do universo

Que conosco vibra.

É a vida mesma que pulsa.

Não,

eles não gozam.


RP, inverão de 2024

Compromisso

 Quase não canto

A beleza da vida

Talvez por que a terra

Me pareça sofrida


Quase não falo

Da graça da população.

Se ela tivesse unidade,

Seríamos nação


Raramente digo

Como é bom respirar.

Pudera: tempo todo

Me concentro em não sufocar.


Mas há os os animais

Os bichinhos, as plantas

O solo mesmo e tais.


Estamos convosco.

Se vencermos,

Terão muito mais.


S.C. verão de 2024

Abstratinho II

 A fumaça eleva-se tórrida

Das plantações.

O sol já deitou seus raios

Que fulminam a terra

Cessando, enfim, o calor.

Mas, nas dobras do peito,

Há uma brasa, um ardor.

Não é solar

Nem puro fruto do coração.

É o desenrolar da vida

E do sentimento,

São os espíritos animais

Levando movimento aos membros.

É o cio da sensação

Que arrebata e conduz.

É o pensamento fixo,

Não nas montanhas ou nos lagos

Ou nos arcaicos paradoxos,

Mas pregado no corpo: no teu.

Mira certa na alma: a tua.

Desejo de expandir o quentume,

De me locupletar

Nas suas reentrâncias e protuberâncias,

De me saciar na tua fonte coberta

Oásis no deserto do ser.


S.C., verão de 2024

Máxima da razão libertina

 Comida e água

Bebida e mamada

Não se nega a ninguém,

Não se nega por nada.


Verão de 2024

Abstratinho

 A carruagem penetra na escuridão da estrada

Me afastando de você.

Outra vez, o mesmo erro:

O espelho que não reflete

A mão que não aperta

A boca que não beija.

Busca que segue.

Prendo a respiração,

E sou carregado para a treva funda.


Estrada, verão de 2023

Petit III

Ó Petit

Gigante

Entre os anões

Não descrito por Dante

Nem por Camões

Quero aprofundar

Nossas relações

Me entremelar

aos seus pelos

Reduzir-me a objeto

Estar aos seus joelhos

Estar sob o mesmo teto

Sentir-te no meu reto

De prazer arrancar-me os cabelos


Outono de 2022


Petit II

 Petit,

Meu amigo

Quero descer

Para abaixo de seu umbigo

Quero ver crescer

A vara túrgida

Me encontrar enfeitiçado

Pela peça úmida

Pelo pau rosado

Acima dos giôlhos

Ó, sim, gozar

Até virar os olhos

Me espatifar

Na pedra em riste, meu abrolho


Outono de 2022

Harém

 

Pica e cu,

Cu e pica

É isso que me excita


Foder de lado

Uma bunda bonita,

Um cu rosado


É o paraíso,

Como o retorno de Jesus.

Me desfaço de riso

De comer tantos cus


Primavera de 2021


Tesão

 

E na hora

Da loucura mais intensa

É sua pica que me chama

É em ti que minha mente pensa

É sua piroca que me inflama


Primavera de 2021

Primaveril

 

Ó mancebo,

Como é formoso

Mal concebo

Um corpo tão vistoso


Quero mergulhar nessa fonte

Quero beijar essa boca

Ver-te nu de fronte

Te amar até ficar louca


E, na hora do desatino, possuir-te, ó menino,

Completar nosso destino,

Me perder no seu caminho


Primavera de 2021

Petit

 Alexandre Tuma Júnior

Sei que as horas passam

Sei que o mundo é duro

A hora não chegou de desistir

É preciso perseverar

É preciso insistir

Ser professor não é brincadeira

Há a estafa, as brigas, a canseira


Precisamos de heróis cotidianos

Heróis que façam valer a pena

A dor, o cansaço, a quebradeira

Você não precisa de um poema épico

Coragem você já tem


Precisa perseverar, ir além

Assim, a escola ganha um soldado

Alguém que não pode ser comprado

Alguém que só vai contribuir


Sem medo, fazer o cotidiano cintilar

Nada de fugir:

Quando fores professor, o mundo há de ganhar

E tu serás admirado.

Então sorria, suporte o fado


Inverno de 2021

Profissão de fé II

 

Preciso de uma viado

Com muito fogo no rabo

Uma chama que se alimenta

Das picas que experimenta

Alguém tão libertino

Que não faz do amor escrutínio

Alguém tão fogoso

Que o cu seja meloso

Alguém para ser amado

Alguém para chamar de meu viado


RP, inverno de 2021

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Malazarte

Será por pena,

Senhor deus,

Será por amor?

Será por maldade,

Será sem candor?

Que não respondeis

Nossos apelos

Por um mundo

Sem dor?

Gritam as crianças

De Gaza

Choram abastância

As senhoras da Ucrânia

E não nos envia graça

Nem abundância.

Penso que isso,

Senhor deus,

É indicativo

De sua inexistência.

Quisera ter companheiro perene

Mas a vida,

Ah, a vida,

Ela me preme.

A verdade, senhor deus,

É que estamos sós,

Ocupados conosco.

A verdade,

Senhor deus,

É que nós somos nosso

Maior problema

E nossa solução.


A verdade? Que sabemos da verdade?

Sabemo-la toda, desde o primeiro

Trago de ar.

A verdade, hei-la, incômoda,

No teu calcanhar.

Em nosso mundo,

A verdade é uma nota de cem.

E nós, os despossuídos,

Os de baixo, carranca e verminose,

Nós somos a mentira.


- Verdade?

- Não, mentira malazarte.


RP, inverno de 2025


sábado, 2 de agosto de 2025

Retrato do militante quando jovem

A entrada na Universidade: a vida em Franca

Aprovado no vestibular para História na UNESP-Franca, mas reprovado para a USP, e com notal mil na redação do ENEM, me dirigi àquela cidade praticamente sem recursos, com R$ 50,00, que ganhara da mãe de um amigo e o mesmo valor que minha mãe me dera. Além disso, fora-me concedida a bolsa para estudar Direito na Universidade de Franca pelo PROUNI, acúmulo hoje proibido, mas, à época, na primeira turma desse programa, perfeitamente legal. Assim, minha vida era corrida: pela manhã, História na UNESP; à noite, Direito. Como não possuía dinheiro, não podia fotocopiar os textos nem mesmo me dar ao luxo de ir de ônibus até a UNIFRAN; ao passo que eu estava como agregado em uma república no centro, bem perto da UNESP, a UNIFRAN se situava no começo da cidade. A UNESP não me concedeu bolsa, por razões burocráticas, somente um auxílio aluguel de R$ 100. Assim, com preconceitos contra a moradia estudantil da UNESP, graças aquilo que ouvira falar, consegui dividir um quarto com um amigo de curso no centro da cidade. Com contas, totalizava exatamente o dinheiro da bolsa. Para comer, como eu cursava as duas universidades e não tinha tempo para trabalhar, dependia de minha família, que me enviava entre r$ 20 e R$ 30 reais por semana, insuficiente para almoçar e jantar no r.u. e aos finais de semana. Situação insustentável, especialmente pelas longas caminhadas noturnas que o regresso da UNIFRAN exigia, logo me vi forçado a abandonar Direito e me focar somente em História.

O curso de Franca era dividido, por parte dos professores, entre os adeptos da história das mentalidades, organizados em torno de um foucaultiano de direita, Jean Marcel, e aqueles mais tradicionais (historiadores econômicos, políticos, culturais, etc.), alguns marxistas muito bons, como o professor Moacir Gigante. Sem dinheiro para as fotocópias, eu dependia dos livros da biblioteca, das aulas e de algum eventual empréstimo de textos a fim de seguir o curso, no que me dei relativamente bem. Eu entrara na universidade marxista e busquei me aproximar do professor Alberto Aggio, um comunista que se manteve no PPS (partido surgido da liquidação do antigo PCB após a queda da URSS), gramsciano, que eu já ouvira falar em Ribeirão e até mesmo tinha assistido uma palestra na UGT. No Seminário o tema de debate era uma cooperativa que se estava formando em um bairro pobre de Ribeirão, e eu resolvera estudar autogestão com Aggio. Como ele me ignorou, pedi orientação ao nosso professor de história econômica, Pedro Tozzi, que me passou uma bibliografia a qual orbitava em torno da experiência iugoslava, além de textos sobre Bakunin, Produhon, etc. Eu almejava, como já dito, me tornar pesquisador e pretendia enviar um projeto FAPESP.

Certo dia, na aula de Antropologia, com a professora Eliana Amábile Dancini, um estudante mais adiantado no curso se deteve na janela da sala e ficou ouvindo a aula. Eliana perguntou-lhe se ele ainda lia Foucault. Foi a primeira vez que ouvi falar nesse nome. Ao mesmo tempo, eu tivera acesso, na biblioteca da UGT, ao livro Reflexões sobre o socialismo, de Tragtenberg, um panfleto em defesa do socialismo libertário. Meu trotskismo já mambembe vacilou. Na minha sala, eu, que começara o ano defendendo Lênin e Marx, rapidamente me aproximei de uma dupla de estudantes anarquistas de Campinas, Petras, punk clássico (até hoje: velho punk!) e Bruno., que tinha uma veia artística. Eram dois estudantes de classe média, mas que não precisavam da moradia ou de bolsas de permanência. Bruno era vegetariano. Boa parte do primeiro semestre foi gasto com discussões com eles sobre anarquismo e revolução, arte, perspectivas de vida, além de eu ter acesso à pequena biblioteca que possuíam. Foi quando conheci Malatesta e Fabbri. Somado às leituras do projeto de pesquisa, logo me dirigi ao socialismo libertário.

Bruno e Petras queriam intervir na cidade através de meios artísticos. Franca, cidade muito conservadora do interior de São Paulo, ostenta no cruzamento entre duas avenidas a lastimável estátua de um padre de sotainas, com uma cruz na mão, a batizar um índio ajoelhado, em posição de submissão. Decidimos agir contra essa estátua. Assim, passamos a frequentar a praça defronte fantasiados a fim de levantar horários do local e, assim, descobrir a melhor hora para fazermos algo contra ela. A ideia era banhá-la de vermelho e vestir o padre com roupas da Ku Klux Klan. Íamos fantasiados até o local. Eu, já dissidente sexual declarado, me vesti de mulher e mulher fumante. Logo, estava viciado em cigarros. O ato contra a estátua, entretanto, nunca ocorreu; nossa expulsão o abortou.

Havia, na minha sala, uma jovem  da qual me aproximei, Nádia Paiva Neves. Ela, como eu, também cursava Direito, além de História, embora em outra universidade, o Brejão, faculdade municipal. Discutíamos muita literatura. Ela, filha de gerente de banco, plena de desconfianças em relação à esquerda e um tanto quanto ancorada em preconceitos que poderíamos dizer de classe, me apresentou boa parte das leituras literárias que fiz ao longo do ano, como Dickinson, C. Fernando Abreu, Camus, etc. Além disso, ela me fez conhecer um veterano de Relações Internacionais, cujo nome se esvaiu no movediço de minha memória. Esse estudante, típico produto da direita vira-lata, era anarco-capitalista e tinha como meta de vida imigrar para Las Vegas e trabalhar em um cassino lavando pratos. Mas, já concluinte do curso, tinha uma boa bagagem teórica. Assim, por meio dele conheci o estruturalismo, o que coadunava com meu recente interesse em Foucault. Pedi-lhe uma lista de obras relativas ao temas, a qual ele me forneceu; li alguns livros da lista, mas minha expulsão não permitiu que eu concluísse essa lista de leituras.

Outra porta de entrada para Foucault foi o professor Jean Marcel Carvalho França, filósofo de formação, mas professor de História do Brasil Colonial. Conforme dito, ele era foucaultiano, mas, corria à boca miúda, ligado ao PSDB. Fumante inveterado, dava aulas com o cigarro aceso, em uma época anterior às leis antitabaco paulista, instituídas por Serra lá em 2009. Discuti bastante proveitosamente com ele vários tópicos. Lembro-me de um dia no qual, ao buscar me introduzir no pensamento de Foucault, eu emprestei da biblioteca o livro de Deleuze sobre ele. Eu costumava passar as tardes após as aulas matutinas no vão central da universidade, nas escadarias que os estudantes apelidaram de Várzea, lendo obras, crescentemente filosóficas. Assim, Jean Marcel me flagrou durante minha tentativa de decifrar esse livro de Deleuze. Conhecendo minha vereda novidadeira pelo mundo das letras filosóficas, ele me respondeu: “Você não vai entender esse livro”, o que me fez rir gostoso, em um surto de prepotência juvenil; ele tinha razão, e até hoje considero esse um dos livros menos recomendáveis para quem quer conhecer Foucault, visto ser um volume dificílimo, eivado no vezo deleuziano de redação.

Outro estudante com o qual eu mantinha um debate produtivo era Aruan, um católico fanático, que, na última vez que vi, em 2008, tinha se tornado olavista e reclamava do socialismo que o PT teria metido o país. Soube por terceiros que agora trabalha como oficial da P.M. Eu já havia adquirido, conforme dito, o hábito da escrita, mas, agora, me dedicava a textos não só literários e lúdicos (como os de RPG), mas a textos filosóficos, dado que, conforme ia me aprofundando no pensamento de Foucault, meu interesse ia se deslocando de História para Filosofia. Em maio de 2005 eu já estava convencido a trocar de curso e cheguei a enviar um e-mail para a UNESP, em Marília, a fim de me inteirar das possibilidades de transferência. Escrevi, nessa época, aquilo que considero ser meu primeiro texto genuinamente filosófico, com alguma sustentação, uma defesa do ateísmo. Eu e Aruan passamos horas prazerosas debatendo esse e outros textos, a maioria quedando inconclusos ou meros projetos.

Nos últimos dias do primeiro semestre, li Raça e História, de Lévi-Strauss, texto o qual muito me agradou. No mesmo período, os estudantes souberam que, no dia 02 de agosto, o recém-empossado reitor, viria a Franca a fim de visitar a unidade; especulava-se que ele falaria algo relativamente ao novo campus. A UNESP-Franca era sediada em um convento do século XIX, um prédio todo feito para a vigilância, organizado em torno do modelo do panóptico. Em péssimas condições, funcionava sem alvará do Corpo de Bombeiros; partes dele estavam interditadas, outras estavam literalmente caindo. Havia um risco real de desabamento. Há mais de 25 anos o governo prometia a construção do novo campus, feito que nunca se realizava. Era uma espécie de lenda urbana do campus. No último dia letivo do semestre, assim, uma assembleia foi convocada a fim de debater o que seria feito para recepcionar o reitor, que viria justamente no segundo dia letivo do semestre seguinte. Assembleia esvaziada, deliberou-se que cada qual, grupo ou indivíduo, fizesse aquilo que lhe apetecesse. Bruno e Petras tinham uma ideia, se me a apresentaram, como também a outros estudantes. Concordamos em agir.

Nas férias, fui para Piracicaba, passar uns dias na casa de um amigo meu. Fomos de carona de Franca até Ribeirão, passamos alguns dias, depois descemos até Piracicaba, também de carona, minha primeira experiência com esse modelo de viagem. Na mala, levei O ser e o nada, de Sartre, e Psicologias, de vários autores. Passei gostosamente o tempo em Piracicaba lendo esses dois livros.

De volta a Ribeirão, Felipe, d’O trabalho, me chamou para um dia de militância em Jaboticabal. Apresentei o plano de ação contra o reitor, e ele, polidamente, disse se tratar de má ideia. Ao mesmo tempo, fi-lo saber de minha recente conversão ao socialismo libertário, imputando-a a Tragtenberg. Emprestei-lhe as Reflexões sobre o socialismo, livro o qual ele nunca mais me devolveu. Ainda em julho, participei, como mesário, das eleições internas do PT, última atividade partidária minha até a presente data.

Voltei para Franca no final do mês. Dia 02 de agosto, fizemos o ato contra o reitor: ao final da Congregação aberta onde ele estava, um estudante o interrompeu, estendeu um jornal no jornal no chão e se pôs a defecar; outro estudante entrou no Salão nobre com um balde e pôs-se a vomitar, enquanto vários outros se dirigiam à mesa e depositavam coquetéis molotov sobre a mesa, enquanto dizíamos palavras contra a universidade. O reitor, meio sem entender nada, ficou estático, bestializado. Abandonamos o campus e fomos almoçar. Quando retornamos, havia um enorme alvoroço, justificado, na universidade. Alguns professores queriam votar a expulsão dos manifestantes no mesmo dia, na sequência da Congregação. Estávamos no C.A. de História reunidos, esperando o desenrolar dos fatos; não fossem os representantes discentes do curso de Direito, que lembraram aos congregados a necessidade de uma comissão de sindicância, teríamos sido expulsos no mesmo dia. Um jornalista, que estava na Congregação no momento do ato, fez o furo de sua carreira; mais de 50 mil exemplares do Comércio da Franca, gazeta local, foram rapidamente comercializados, um número muito elevado para uma cidade de 300 mil habitantes, e mais ainda foram impressos.

A Assembleia de estudantes convocada após o ato foi muito tensa. Salão nobre absolutamente lotado. Não falei ao microfone; era demasiado tímido e demoraria anos antes de conseguir tomar a palavra em uma assembleia tão tensa. A direita do campus, a qual, pode-se imaginar, é grande em um local com os cursos de Direito e Relações Internacionais, nos acusava de ter “cagado em nossos diplomas”, de termos jogado o nome da universidade no lixo, de termos lhes destruído a carreira, etc. Sobressaiu-se em nossa defesa Isáias, um estudante concluinte de História, evangélico progressista, que fez nossa pronta defesa. Saiu vitoriosa dessa assembleia a posição contrária às expulsões, por não farta margem.

O M.E. ficou dividido, bem como partes da esquerda brasileira. Fato marcante naqueles anos, minha tia, que morava na Espanha, viu a notícia na TV espanhola. Enfim, houve muita repercussão. Poucos saíram em nossas defesas; de partidos, somente o PCO e siglas menores. PCdoB, majoritária no DCE da UNESP, nada fez, aceitando-a tacitamente.

A luta contra as expulsões se deu, assim, em um clima duro. A maioria dos professores a apoiava, à exceção daqueles mais à esquerda. Setores da Igreja católica também ficaram ao nosso lado. Lembro de uma reunião que tivemos com um padre; após uma exposição melancólica do professor Moacir Gigante, o padre nos disse: “Somos contra a expulsão, mas achamos que vocês serão expulsos. Preparem-se para outros meios de luta”, dando a entender que nos armássemos. Dois advogados locais nos contataram para a nossa defesa na sindicância; além dessa, a universidade abriu um boletim de ocorrência. 

Ainda no mês de agosto, calhou de um estudante da pós-graduação organizar um evento e convidar como palestrando o marxista heterodoxo português João Bernardo. Assistimos a sua palestra e, instado por um dos nossos, manifestou-se contrário à expulsão, Redigiu um artigo, publicado em vários veículos, inclusive na extinta Caros Amigos, onde não somente situava o ato na esteira da arte moderna, como nos defendia das expulsões e instava a reitoria a não nos punir. Esse texto me foi um farol por longos anos, a ele sempre retornando e sempre o recomendando àqueles que eu conhecia.

Fomos convidados para participar de um debate em Marília sobre as expulsões em meados de setembro. Petras e Bruno, os principais arquitetos do ato, já tinham abandonado o curso. Eu e uma amiga fomos até Marília. Aproveitei minha estadia para frequentar aulas do curso de filosofia. Vi uma aula sobre a Crítica da razão pura, de Kant; e outra sobre Peirce. Além disso, assisti a uma palestra com a Professora Ítala D’Otavianno, do CLE-UNICAMP. Nessa época eu já estava em contato com o Tractatus, de Wittgenstein, bem como com uma introdução ao pensamento dele, de A. C. Gray. Eu havia lido longos trechos de sua biografia. Wittgenstein e Foucault foram filósofos com os quais tive identificação pessoal, por muitos anos me comparando com ambos e tomando-os como modelos de intelectual.

O ano corria e as eleições para o C.A. chegaram. Resolvemos montar uma chapa, na qual eu, mesmo tendo como certo que seria expulso, adentrei. Ela era montada por um grupo decididamente de esquerda, a maior parte marxista, exceção feita de mim mesmo e de outros. Articulamos no campus com outras chapas de esquerda dos demais cursos (Serviço Social, Direito e Relações Internacionais). O debate político em Franca era difícil. O curso de Direito, especialmente, atrai jovens conservadores distintos daquilo que hoje chamamos de “tiozão do zap”. São conservadores instruídos, intelectualizados, ricos, heterossexuais, brancos, religiosos distintos do mero reprodutor de preconceitos e posições alheias, muitas vezes contrárias aos seus próprios interesses. Fazíamos reuniões com os membros de todas as chapas, produtivas, onde divergências grandes eram apresentadas, mas nada que impedisse uma frente de ação. As chapas à esquerda de História e Serviço Social venceram, as demais sendo derrotadas.

Boa parte do segundo semestre foi gasta na luta contra as expulsões, em reuniões, depoimentos, de modo que descuidei um pouco do curso e das leituras, mas sempre buscava me manter intelectualmente ativo. Em novembro, saiu a decisão da comissão de sindicância. Expulso da universidade com 18 anos, retornei a Ribeirão (não sem deixar de levar na mala uma enorme quantidade de textos do curso), nas férias escrevi meu primeiro artigo científico sobre “Modernidade e pós-modernidade”, me baseando em diferentes autores, sobretudo Harvey e Chauí. 

Em 2006, já decidido a cursar filosofia e estudar Foucault, peguei emprestado de bibliotecas em Ribeirão o Em defesa da sociedade, livro o qual me marcou profundamente. Com a professora Eliana, que morava em Ribeirão, pegue emprestado As palavras e as coisas e As etapas do método sociológico, de Aron. Além disso, eu já começara a constituir uma modesta biblioteca. Li Descartes, Bacon, Platão, muitos textos do curso de história e muita literatura, como Sartre, Cervantes, Borges, etc. Além disso, adquiri um caderno e comecei a escrever profusamente poesias nele. A fim de pagar os advogados em relação ao processo de expulsão, eu passei a vender um encarte de poemas que escrevi, intitulado Alegria Plástica; este pode ser considerado meu primeiro livro, ainda inédito.

Passei a frequentar as bibliotecas municipais de Ribeirão, inclusive aquela do Museu de Artes. Nela emprestei Hegel, livros de semiótica, de crítica literária de psicanálise. Basicamente, eu lia tudo que me caísse nas mãos. Em uma das visitas ao museu, fui informado de que se encontrava aberta uma chamada para novos artistas. Pensei em expor, já que além de poeta, eu possuía alguns trabalhos em artes visuais; mas os valores necessários a fim de se fotografar as obras era excessivo; sem dinheiro, dificilmente um artista plástico consegue sucesso, lição que logo aprendi.

Passei o ano de 2006 entre Franca e Ribeirão. Ainda no começo do ano, uma delegação do PCO foi até Franca a fim de desenvolver uma série de reportagens sobre o ato. Alguns de seus militantes, estudantes na UNESP-Araraquara, estavam sofrendo sindicância e também ameaçados de expulsão. Fui com eles até São Paulo e dei uma entrevista, a qual ficou no ar em seu site por muitos anos. Lá também tive a oportunidade de conhecer, na república dos militantes da juventude do partido, estudantes mais adiantados no curso de filosofia da USP, com os quais mantive profícuo diálogo.

Na moradia da UNESP, local que eu passara a frequentar, tive produtivos debates sobre socialismo, marxismo e teoria em geral. Um dos calouros do curso de História em 2006, apelidado de mano Mojica, punk paulistano, influenciou-me decisivamente em vários pontos, teóricos e práticos, já que me tornei vegetariano por sua influência e cimentei as crenças libertárias.


quarta-feira, 16 de julho de 2025

Sobre a natureza do cosmos

 Aquilo que os sábios tolificados

Cantaram como divino,

Ó imensidão negra que se derrama

No sem fim de sistemas estelares,

Peço que reveles como mudo

E sem alma,

Universo ingente,

Pelos cosmos estendido.

Sendo desprovido de espírito,

É mera convenção a ti dirigir-me

Como é mera convenção todo o resto,

Especialmente a crença no além túmulo

E no etéreo que habitaria a matéria.

Já me deste tudo que preciso

Para cantar o hercúleo de tuas proporções

Para que o mais comum dos mortais caia em si

E repare bem que nos entremeios do ser, 

nas dobras recônditas do universo infindo

Nada há de inefável ou secreto

Senão a mesma arte que lhes permite.

Porque é por arte que chegamos até aqui

E há de ser pela mesma que nos espalharemos,

Tal rama de abóbora,

Por outros confins

Até que todo o universo se nos seja casa,

Até que anos luz

Nos sejam segundos

E a estrutura mesma do existente

Só guarde mistério para o bruto que não quiser se formar na decifração do infinito.

Assim, Universo, massa gargantíca,

Te invoco não por ti mesmo,

Mas pela tolice de meus com-espécies.

Preparaste já o caminho,

Na longa estrada da humanidade,

Lufada de vento para ti,

Mas existência toda para nós;

Nos forneceu terra, ar e viandas,

Deu-nos o solo fértil onde pudemos brotar

Acepipes e legumes

Onde fizemos pascentar as bestas.

Agora é hora de cantarmos em teu louvor.

Não basta, veja bem,

O adubo que brota da geia e do átomo;

Por isso não há civilização das vacas nem peixicidade:

É mister o gênio, a invenção, o fogo prometeico

Da inteligência, a qual, por ora, apenas humana sabemos.

Assim, tendo em vista formar

Com arte e artifício

O humano rústico e entregue aos desvarios da humanidade,

Vou cantar a história do mundo e da inteligência,

Não no miúdo, é certo,

Mas no geral, segundo a força da espécie, 

e no particular, conquanto concerna à ilustração de minha gente.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Ricardo Reis

 Não quero, Marcela,

A tristeza de teus últimos suspiros

Nem o desespero aflorante em tuas linhas.

Me dirijo à leveza da chuva que cai

Ou à tranquilidade do filósofo que atingiu a verdade.

Por que essa agonia?

O que tanto te dói do mundo?

Que seja vão?

Que não haja propósito?

Que a vida não tenha sentido?

Há sentido demais na falta de sentido,

Pense bem

Se houvesse sentido,

Se houvesse um divino que,

Flanando ébrio no veio íntimo da matéria,

Se nos impusesse escolhas e acepções,

Que nos sobraria senão a revolta?

A verdade, Marcela, é simples como o pensamento de um tolo;

A verdade, Marcela, é mais expressa no poema

Do que na ciência:

Se lha agarramos toda com intuição,

Com o súbito dar-se conta,

Após a noite de estudos.

Não me digas que devemos chorar

Pelo fundo ausente do significado.

Bem ao contrário,

Da indiferença ríspida das rosas

Advém sua beleza

Da transparência profunda do ser

Surge o solo de aí estarmos.

Então, não te apresses:

A terra há de nos devorar, é certo.

Até lá, toma teu licor

E aprecie o lento transcorrer

Mudo-tagarela do mundo.


R.P., inverno de 2025

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Königsberg


Ah, Kant

Embora pequeno,

Foi gigante

Calmo e sereno,

Moveu o monte

Da filosofia, do pensamento.

Sapere aude!

A razão é o instrumento

Da libertação.

Contra a tirania,

A censura e a escravidão

Nos dotou dos meios

De nossa emancipação.

Viva Kant, viva o Iluminismo!

Na luta contra o arbítrio e o fascismo,

Melhor remédio só socialismo


RP, outono de 2024

Estagirita

 Me sinto cogumelo

Que brota na herdade

Viçoso e vermelho

Após a chuva da tarde


Me sinto como a garota

Mais desejada da cidade,

Uma bem viva garoupa

no rio em tempestade.


Sinto a potência,

Sinto-me a arma final da humanidade

Contra a desvalença

E seu grande flagelo, a maldade


Tudo isso porque te encontrei,

Teleologia do homem, felicidade.

E nem foi em coxas que busquei,

E sim em seu par, a verdade.


RP, inverno de 2025

domingo, 22 de junho de 2025

Felicidade

 

Que me bastem os livros,

Que me baste o álcool moderado,

Que esteja entregue ao pensamento

E que, nos entremeios do devir,

Tenha fundado a seara recôndita

Onde descanso e medito

Em paz e satisfeito.

Que as promessas dos homens do norte

Se me afigurem como tolice,

Castelos de água,

Tijolos de fumaça,

Palavras que o vento leva,

Expressão da vaidade

E do descalabro.

Pois, concluí,

Não é sobre ter,

Mas sobre devir,

Sobre se formar.

No reticular processual do sendos,

A verdade escancarada

O sentido puro:

Um espelho.

Contemple-se,

Aquilo que vês

É o mundo que desejaste

Pois foi o mundo que tu fizeste.

Agora se levante

Me dê a mão.

Somos companheiros de viagem

Em pé de igualdade

E em igualdade faremos

Deste o mundo que quisermos.


RP, inverno de 2025


quarta-feira, 2 de abril de 2025

Poema plano

 Quando nasci anjo nenhum veio me acolher

Porque anjos não existem,

Mas minha mãe disse: 

vai Fê, ser grande na vida.


Herdei o ódio à religião

Dos ateus do iluminismo

Mas foi com a razão que

O desenvolvi.


Nas ruas, ninguém espia ninguém

Só o governo e as corporações

Espiam todos.


Vou caminhando até o centro.

Um crente, dois crentes, três crentes.

Ó mundo, para que tanto crente?

O mundo nada me responde

Mas meu coração sabe

De tudo


Há tanto templo cheio

De pessoas ocas

Tanta verborragia, tanta mentira,

Tanto engodo, tanto pilantra


A hipocrisia é o feno da religião.

Um homem hipócrita atrás do bigode

E a mulher falsa atrás do óculos

São os típicos religiosos.


Ó mundo, como odeio religião.

Deus, se não existe, porque nos

Atormenta? Se fosses real,

Todos saberiam. Mas o humano é fraco.


Religião, religião

Malvada religião,

Mais malvado é do religioso

O coração.


Por isso vou te dizer: tome um gole

Dessa cerveja. Ela nos deixa mole mole

Azeita o cérebro, e comove a gente

Como louco


RP, outono de 2025

Na origem do político a guerra?

 

No latim abstraho significa “separar de”, “destacar de”, “afastar de”. É um verbo de uso corrente, como também do português, origem quase intacta de onde sorvemos este como muitos outros vocábulos. Meillet e Ernout, no seu Dicionário etimológico do latim, não notam o termo o que dificulta a tarefa de precisar suas origens. Mas temos um palpite. Assim como nas línguas modernas como alemão e russo, e também o português, muitas palavras do latim são formadas justapondo termo mais primitivos. No caso, são claros os termos originais: a preposição ab-, grafada abs-, e o verbo traho. Ab indica um movimento para fora, um afastamento, uma separação, ao passo que traho indica tirar, arrastar, puxar. Assim, abstraho indica o movimento de puxar para fora, de arrancar de um lugar interno para outro, desta vez externo. Do termo abstraho, veio o nosso abstrair e os vocábulos derivados, como abstrato, abstração, etc.

Na virada do século retrasado para o passado, Windelband, em plena onda neokantiana na Europa, introduziu dois termos para tratar do problema que estava posto e que já era o de Kant: o descompasso entre as ciências naturais e as humanas. As primeiras faziam progressos a olhos vistos, calcadas na matematização da natureza e em um caminho que parecia seguro, com resultados práticos que se tornavam mais e mais acessíveis a todos através das conquistas da técnica. Já as segundas, envoltas em querelas, escolas e seitas, se debatiam em um sem fim de polêmicas, que, na comparação, pareciam lhes tornar infrutíferas e bizantinas. A distinção que Windelband introduziu foi aquela entre as ciências nomotéticas e as ciências idiográficas. As primeiras buscam por leis universalmente válidas, por constantes aplicáveis a qualquer parte do kosmos, cujos resultados serão sempre os mesmos; ao passo que as segundas se debruçam sobre eventos específicos, sobre acontecimentos que ocorrem uma vez somente e são irrepetíveis no tempo e no espaço: é a lógica do acontecimento.

Essa distinção não fazia muito sentido para muitos dos cientistas das humanidades. Estávamos no tempo do positivismo e mesmo o marxismo parece ter pretensões nomotéticas. Ao mesmo tempo, desenvolvia-se um forte apelo idiográfico nas humanidades, uma busca por compreender os fenômenos em seus vincos específicos, em seus contornos que os particularizavam na miríade do plasmado.

Ora, esse debate se estende, a bem da verdade, até hoje, se pensarmos, por exemplo, na oposição entre foucaultianos e marxistas. Foucault situava a própria contemporaneidade filosófica no opúsculo kantiano sobre as Luzes, onde, nos diz, a questão é saber e delimitar o que torna o presente presentemente este presente, e não um outro. É a sua ontologia de nós mesmos, ontologia histórica ou outro nome que se dê. Já os marxistas se apoiam em outra sorte de pressupostos, ao menos se dermos razão a Lukács; ora, nos diz, o fundamento de toda coletividade humana é o trabalho, de modo que é a ele que devemos nos dirigir caso busquemos compreender e fundar uma ciência social.

Assim, Foucault vai se interrogar, especialmente em seu período mais político, o que constitui o presente como tal, o que o tornou exatamente isto que ele é. Um dos traços que ele parece notar é que a política é compreendida como guerra. No curso Em defesa da sociedade marco absoluto de seus trabalhos, ele vai se interrogar: onde a política foi pensada, pela primeira vez, como guerra? Retornando no tempo, ele se detém nos processos que conduziram ao fim da Idade Média e começo da modernidade, não à toa, a nosso ver (como também no de Alliez e Lazzaratto), o mesmo período onde se armava o capitalismo. Fica nas entrelinhas de Foucault que teria sido com o capitalismo que primeiro se pensou a sociedade e as relações políticas como organizadas em torno de termos e práticas belicosas. Assim, profetizam Alliez e Lazzaratto, nosso trabalho consiste em por fim a isso e pensar a política em outros termos, que eles não indicam.

O capitalismo se fez, nos dizem, não somente através de guerras reais, onde exércitos se enfrentam, mas também, e sobretudo, através daquilo que chamam de guerras de subjetividade, onde populações inteiras foram enquadradas visando formar esse bicho estranho, esse que é o servo voluntário: o cidadão moderno, passivo, submisso, mandável, “fútil, cotidiano e tributável”. Na Idade Média e em boa parte do período posterior não era desse modo: as revoltas eram constantes, os massacres também e as guerras, sem estarem organizadas em torno de um poder centralizado, de um Estado soberano, se faziam e desfaziam às milhares.

Foucault, entretanto, erra ao indicar que a política e a sociedade foram pensadas como guerra primeiramente nos estertores da Idade Média. Já na Antiguidade um outro filósofo pensou a política e, mesmo, o kosmos como guerra e foi Heráclito, como se pode ler em vários fragmentos, especialmente no 53 DK. Claro, antes dele, já com Anaximandro e, depois, com Empédocles, já se entrevia outros usos para a noção de guerra além daquele estritamente bélico. Esses usos outros estão espergidos pela história do pensamento, seja em formas metafóricas (como Agostinho na Cidade de deus), seja em proposições mais diretas, como Hobbes e sua guerra de todos contra todos.

O uso que Foucault identifica no crepúsculo do medievo é a noção de guerra de raças, a qual, segundo ele, foi redundar no nazismo. Essa noção de que existem raças e de que elas estão em luta teria surgido, nos diz, especialmente durante a revolução inglesa, mas não como um discurso de opressão, como foi o nacionalsocialismo, mas, sim, como uma arma de guerra dos setores oprimidos, contra uma nobreza de origem estrangeira, normanda. Mas já durante o Iluminismo teria sido recuperado por setores da nobreza francesa a fim de pressionar o rei absolutista por mais direitos.

De toda forma, enquanto a prática política mais bem acabada da noção de guerra de raças é o nazismo, sua expressão teórica prévia encontra-se formulada por uma série de teóricos do século XIX, como Gobineau, Gumplowicz e Chamberlain. Os textos desses autores não guardam o mesmo estatuto. Os dois primeiros se pretendiam cientistas e faziam a ciência de seu tempo. Já Chamberlain escreveu uma espécie de manifesto racista, ainda que fundado nas pesquisas de autores, tais quais os previamente citados. Era o clima do século, onde a medicina e a biologia faziam avanços incríveis e as bases do período seguinte, calcado em massacres, se punham. É o século de afirmação das diferentes nacionalidades, do chauvinismo, no triunfo do Estado-nação, no positivismo, enfim.

Gobineau escreveu muitos livros, já envoltos em um dos mitos do periodo, o arianismo. No Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, livro gigantesco, em vários tomos, ele escreve uma espécie de história racial do mundo, narrando como a organização global contemporânea e as antigas civilizações são fruto de um festim de povos, que se massacram, fusionam e dão à luz diferentes civilizações Cada povo seria dotado inatamente (hoje diríamos, geneticamente) de qualidades próprias. Uns, espertos, fortes, decididos, teriam características para serem senhores; outros, pusilâmines, fracos, desprovidos de potência, deveriam ser mandados. Gobineau escreve nos marcos de um pensamento ainda religioso, se diz cristão e crê na salvação dos brancos dos perigos das civilizações femininas e emasculadas, como ele as divide.

Esse gênero de pensamento encontra ecos em Gumplowicz, o qual radicaliza Gobineau e vai propor modelos abstratos a fim de se pensar o desenvolvimento histórico. Para ele, em uma paródia de Comte no Curso de filosofia positiva, haveria vários níveis de processos na realidade: cosmológico, físico, químico, vegetal e animal. Ora, esses processos vão do mais abrangente, o qual, portanto, determina os demais, ao menos abrangente, que é determinado pelos demais, assim como, para Comte, as ciências naturais mais gerais, como a álgebra e a geometria, determinam a física social, mais concreta e menos abstrata, passando pela física, química, etc. Para Gumplowicz, a história do mundo é a história de como as raças dominaram umas as outras, como impuseram entre si regimes políticos, visando favorecer um povo em detrimento do outro. A noção de raça que ele se vale, não, é, no entanto, biológica. Ele cita vários termos, como Stamme (estirpe), Nation (nação), Volk (povo), Rasse (raça), etc. No princípio haveriam famílias isoladas. Estas, organizadas em torno de um patriarca, seriam a origem do Estado. Uma família de uma mesma tribo dominaria a outra, dando origem, destarte, aos diferentes Estados, com o pater famíliae aparecendo enquanto embrião do rei. Formado um povo, este invadiria outro povo mais pacífico e lhe imporia sua organização social, formando, assim, com o tempo, um novo povo, uma nova raça, em um crescendum que foi redundar nos grandes e coevos Estados-nação.

Gumplowicz mostra, nesse como em outros textos, certa preocupação científica. Para ele, ao contrário de Comte, o qual ele censura, a ciência deveria entender, não colocar o que poderíamos chamar de axiologia em seus julgamentos, muito menos fins enquanto eixos organizadores do discurso, tal como fez o positivismo, com sua religião da humanidade, por exemplo. Vale, para ele, a máxima de Espinosa: nem rir, nem chorar, compreender.

A obra de Gumplowicz é um verdadeiro marco. Se bem ele morra ainda nos princípios da 1ª Guerra, já se formava todo o caldo cultural do nazismo, o qual conduziria o mundo a seus dias mais sombrios. Ora, essa noção de “guerra de raças” é retomada por teóricos nazistas e pelo próprio Hitler. Em Mein Kampf, há uma construção do judeu como uma espécie de vírus social, com intenções hegemônicas e efeitos deletérios. O judeu, diz, polui a raça, envenena o sangue puro dos alemães, é uma mácula que deve ser extirpada. Enquanto Gumplowicz, bem como Gobineau, e mesmo Chamberlain, outro teórico com profundas influências no nazismo, sabiam que “não há raça pura”, uma vez que todas são frutos de múltiplas mestiçagens ao longo da história, Hitler defende uma espécie de higiene genética no povo alemão. E isso é só a ponta do iceberg. As mulheres, por exemplo, deveriam ser donas-de-casa e procriar. O próprio modelo de país que Hitler nutria era um no qual não haveria grandes cidades, mas pequenas vilas, onde os perigos da vida urbana, com seu ambiente que convida ao desregramento moral, seria cortado pela raiz. Para que o povo alemão, superior em tudo aos demais, especialmente aos judeus e negros, pudesse sobreviver e, assim, se constituir em uma raça de senhores de toda a humanidade, ele precisaria de um espaço vital, de uma ampla área dotada de recursos naturais, de onde ele pudesse retirar seu sustento. Um povo pelo qual Hitler nutre particular desprezo são os eslavos. Lembremos que Hitler era oriundo do Império Austro-húngaro, e que este compreendia várias etnias eslavas. Há, em Mein Kampf, queixas e mais queixas sobre uma eslavização do Império, sobre como os eslavos, feito ratos, invadiam as dependências do outrora pasteurizado povo austríaco-germânico. Sabemos o resultado desse gênero de pensamento.

Ora, e o que tudo isso, exposto nos últimos parágrafos, tem a ver com os primeiros parágrafos, sobre ciência nomotética ou idiográfica? Tudo. Gumplowicz pensava que a guerra de raças seria a base de uma sociologia científica, verdadeiro ponto arquimediano que prometia explicar todas as vicissitudes da vida social. Era, assim, nomotético. Já Foucault, um século depois, com um mundo já calejado pela experiência do nazismo, recupera bem a raiz dessa noção, os trabalhos de Boulainvilliers, um pensador que, segundo Jonathan Israel, estudioso do século XVIII, seria já iluminista. Boulainvilliers, um nobre francês com idade e tempo de vida próximos aos de Leibniz, escreveu como a nobreza francesa era de origem germânica, ao passo que o povo é galorromano. Ao longo do tempo, esse gênero de noção foi desembocar em autores como Gumplowicz, Gobineau, etc.

Por outro lado, as duas outras vertentes das ciências humanas nomotéticas, o marxismo e o liberalismo, redundaram no estalinismo, ao qual Foucault não via com bons olhos, e no neoliberalismo, o qual ele também denuncia. Assim, para Foucault, é como se as ciências nomotéticas as leis da história e da sociedade, as histórias de todas as formações sociais, as constantes espaçotemporais, as ontologias (em sentido duro), etc. trouxessem consigo o perigo de regimes opressores. Todas elas redundaram em formas de organização da sociedade que acabavam com a liberdade humana, promoviam miséria e massacres. Foucault era, decididamente, um idiográfico.

Por isso, Roberto Machado, grande intérprete brasileiro de Foucault, podia afirmar que não havia em sua obra teoria do poder, somente descrições históricas, precisa e recortadas. Como notamos em alguns textos, entretanto, e fomos rechaçados pelos pares, há pressupostos ontológicos na obra de Foucault, como não poderia deixar de haver. Esses pressupostos são, eles mesmos, de ordem conflitual, assumem que o mundo é um espaço vincado por querelas e completamente artificial, isto, não natural. Tudo é politizável, nada brotou da terra nas sociedades humanas; ao contrário, são frutos da liberdade criativa e multifacetada de uma espécie cujo único laço é o liame biológico, pois todo resto a separa. É como se Foucault, querendo se esconder do Sol, somente se expusesse aos raios lunares, desconhecendo, destarte, que esses também são raios solares. Pode-se dizer, pois, que mesmo uma ciência idiográfica carrega consigo traços nomotéticos, os quais são impossíveis de se fugir, já que estão embutidos nas concepções mais gerais e fundamentais filosóficas? — do autor. Ou, em outros termos, para poder jogar fora a escada de Wittgenstein, Foucault, primeiro, teve que trepá-la. E ele subiu alto, bem alto.