Já desde há muito se sabe que as coisas possuem história, que os
costumes variam conforme a geografia e os povos, enfim, que há diferentes
maneiras de se portar no mundo e se relacionar com ele. Mas há coisas cuja descoberta
da historicidade é recente e outras que, talvez, não tenhamos descoberto a
história ainda.
Neste quadro, não é de se
espantar o impacto que Foucault causou ao publicar uma história da loucura,
mostrando que, até bem pouco tempo, tendo em vista os parâmetros históricos, o Ocidente
tinha uma outra experiência da loucura, quando os loucos vagavam pelas cidades
comunicando com o divino. O racionalismo clássico deitou isto por terra,
criando as bases para o internamento da loucura, em uma experiência que ainda é
nossa, onde a sociedade, em parâmetros higienistas, que varrer o diferente para
debaixo do tapete, medicalizando os comportamentos ditos anormais e causando
extremo sofrimento psíquico nos desviantes.
Diz-se que a juventude é o momento da desmesura. “Aos vinte, se é incendiário,
aos trinta, bombeiro”. O raiar da vida seria o momento do excesso, e as faltas
do jovens muitas vezes são perdoadas por essa atmosfera de que, no princípio,
as faltas são justificáveis, afinal, ainda não aprendemos a ter a medida das
coisas, nos falta o tato da moderação, da mediação; enfim, nos falta a
capacidade de mensurar, nos falta a razão das coisas. Razão, como se sabe,
guarda muitos sentidos, indicando tanto uma faculdade, quanto os
motivos e, também, a proporção. O jovem não saberia ter proporção, e o dente do
juízo marca quando esta começa a se manifestar, dando seus primeiros sinais.
Esta perspectiva, certa ou errada, pode ser aplicada a muitos casos.
Minha juventude foi marcada pelos excessos de toda ordem. Poeta, dedicava-me a versificar a vida, a morte, as delícias do sexo, as drogas, a política, enfim,
queria-me na posição que, n’As Horas, Virginia Woolf profere; querendo
matar alguém em seu romance, ela escolhe o poeta, segundo ela, o visionário. Eu
acreditava firmemente que minha poesia deveria comunicar com o desenrolar da
história; meu ideal era exprimir em poucas palavras, ditas em um tom profético
e grandissonante, o deslindar das coisas, sua estrutura última, A Verdade do
Ser. Influenciado pelos poetas, especialmente Ginsberg e Solomon, com os quais,
à noitinha, eu me comunicava, ditava em versos a armação do real. Até mesmo um
dos livros de poesia que escrevi, nenhum publicado, chamei de profesia.
Em meu périplo poético, valiam-me as noites com meu petit comité,
nosso poeta sonhador Júnior, e nosso outro amigo, este mais prático e
libidinoso, o bom e velho Alonso. Regadas a vinho, nossas soirées, que
em nada deviam às noitadas de Marinetti, se davam em sucessivas epifanias
alcoólicas, influenciados pelos marginais de outrora, pela psicogeografia, pela
experiência do 68 francês. Nada podia nos parar, nada deveria estar no caminho
de nossa triunfante marcha poética rumo à essência das coisas e o cristalino do
universo. Guiava-me por Pessoa: “para ser todo, sê inteiro, nada teu, ou
exagera ou exclui...”.
Este ethos do excessivo, com a arrogância que lhe acompanha,
também me guiava na militância. Pudera, comecei cedo, aos treze anos, não
organizando apoio aos republicanos espanhóis, como fazia Ginsberg e os seus,
mas marchando contra as guerras do imperialismo, lutando pelas melhorias na
escola, pelo passe-livre, pela educação. Tampouco distribuímos panfletos
hipercomunistas na Times Square, mas, sim, imprimimos às centenas, com a
verba do Grêmio estudantil do qual eu era presidente, poemas de Brecht, o analfabeto
político, e entregamos pelas ruas de Ribeirão Preto, nossa pequena Paris do
sertão. Na universidade, no curso de história, guiávamo-nos pela luta contra a
precarização da educação e a exclusão dos pobres, e assim, também como outro
louco, fui expulso da universidade, com outros, por desafiar o reitor,
mostrando-lhe a merda que ele estava fazendo. Nosso reitor parecia não muito
afeito a poesia, ou certamente teria se lembrado de Artaud e suas transmissões
alucinadas pelas noites da França: “aonde há merda, há ser”.
Ingressando no curso de filosofia, minha vida oscilava entre os pólos da
loucura induzida por substâncias, teoria e política. Particularmente, eu me
locupletava enfrentando a autoridade, sentindo-me vivo ao ver que pulsava com
as massas estudantis e nossas pequenas rebeliões, nossas assembleias, nossos
atos. Tudo que me cheirava a autoritarismo, eu enfrentava, mesmo correndo o
risco de cacetadas; na verdade, apanhando muito, tomando tiros de bala de borracha
e respirando o ar contaminado de sprays e bombas. Fizemos grandes
manifestações, tomamos de assalto o ápice do poder acadêmico no estado de São
Paulo, a reitoria da USP. Enfrentando o governo, fizemos ele recuar, derrotamos
os neoliberais. Corria o ano de 2007, eu tinha 19 anos e era um primeiranista
efusivo e completamente dedicado à subversão da ordem.
No ano seguinte, comecei a sentir os primeiros sinais da loucura. Ataques
de pânico, sudorese, mal-estar. Leitor da psicanálise, pensava que estava desenvolvendo
alguma neurose. Assim, cortei as drogas e passei a me dedicar a somente dois
excessos, os da política e os da teoria, sendo agraciado com uma bolsa de
iniciação científica para estudar, ironia da história, epistemologia política
da psiquiatria, ciência da qual eu era muito crítico. Eleito para o DCE da
UNESP, organizamos atos, greves, ocupações, trancaços, enfim, lutas contra o
poder reitoral, o empresariado e o governo neoliberal de plantão. Dedicava-me
com afinco na construção do poder estudantil e do anarquismo organizado. Seguia
a senda de On the road, e rodava o estado de carona, construindo as
lutas estudantis e populares. Orador hábil, conquistava a audiência por onde
passava, construindo uma biografia militante e organizações políticas.
Nosso ápice foi a greve no ano louco de 2013, quando a força das massas
se mostrou. Nesse ano, paralisamos quase toda a UNESP, lutando por uma
universidade popular e democrática. Fomos presos, sindicados, apanhamos, fomos
roubados, mas vencemos a batalha. Meus pequenos excessos com as drogas davam
sinais, e, nas belas praias de Ubatuba, eu acreditava estar sendo perseguido
pela polícia, grampeado, vigiado e admoestado pelas forças da ordem. Tudo
delírio? Em partes sim, mas que revelavam a potência que havia se manifestado.
Então, tempos depois, já no ano de 2015, estes pensamentos paranoicos foram tomando vida. Agora, não apenas eu acreditava firmemente estar sendo
treinado pelos russos, para o grande combate contra as trevas neoliberais, como
conseguia me comunicar, graças a aparelhos de rádio instalados em minha cabeça,
com outros espiões. Tornado agente de uma potência estrangeira, eu via as
conspirações por todo lado, nos pequenos atos, nas disposições do móveis, nos
olhares tortos. Logo, estava completamente enredado em uma grande trama
internacional, com Putin, Dilma e Lula.
Logo, o que era apenas algo de minha cabeça se manifestou externamente.
Para não ter que militar defendendo o governo, que eu tomava como pouco
radical, rasguei e incinerei todas as minhas roupas. Vendi livros, os quais eu
demorara anos para comprar. Meus amigos me diziam que eu estava mal, que
precisava de ajuda; mas eu, em meu excesso, em minha empáfia, do alto de minha
arrogância, dizia que, tendo estudado a psiquiatria, eu não precisava de
médicos. Destarte, em uma longa noite de 2015, passei doze horas andando em
círculos em uma casa da moradia estudantil da UNESP-Marília, acreditando estar
sendo orientada por uma psiquiatra telepaticamente.
Fui medicado e psiquiatrizado, reduzido a objeto de cientistas. Deram o
diagnóstico: esquizofrenia paranoide. Na anamnese, emergiram os pródromos da
moléstia. Senti-me vencido, envergonhado, entrei em depressão. Aos poucos, me
recuperei, aceitei o diagnóstico, retomei os estudos, reconquistei minha vida.
Para os antigos gregos, a falta maior era a hybris. A tradução não
é simples. Se tomarmos que a virtude superior era a moderação, podemos traduzir
a hybris como desmesura. É ser excessivo: comer demais, beber demais,
ler demais. Enfim, exagerar, desafiar os deuses, chamar o universo à luta. Mas,
a experiência da loucura fez com que eu me sentisse frágil, sujeito a doenças,
dependente de medicamentos; enfim, humano. Antes, eu estava acima da história,
inclusive querendo ditar os rumos desta, determinar o próprio ser. A loucura me
ensinou a moderação; não abrir mão de seus projetos, mas modulá-los de acordo
com suas forças, com os limites humanos que nos marcam. Aprendi, enfim, a lição
da humildade. A loucura me curou de minha arrogância, de minha hybris.
Preparou-me para a vida de acordo com a medida, aproximando-me dos gregos, que
eu amo tanto, não só por ser filósofo, mas pelo brilhantismo de sua
civilização, pelas marcas que deixaram.Inclusive, aprendi o grego depois de minha lição; e
não só o grego, como o alemão e o italiano. Formei-me, hoje curso mestrado.
Rompendo com a hybris por força da loucura, curei-me e me tornei humano.
Parece até que os gregos te enviaram um recado: “Tá bom de exagero, hein?”. No final, a loucura te fez poliglota e filósofo, comprovando que até as mentes mais fervilhantes precisam de uma boa dose de moderação... ou de medicação! rsrs Abraços, amigo, sua jornada é digna de um best-seller!
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