quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Por um conceito filosófico de estratégia



A filosofia grega nos legou a ideia de logos, introduzida por Heráclito, nos tempos da primeira ontologia grega. O termo é de difícil tradução, mas sempre guarda a ideia de proporção, daí uma de suas traduções por razão, ou a ideia de troca, visto sua relação com o verbo legein, dizer. Heráclito expressa sempre com a ideia de logos a noção de que o cosmos tem um logos, e que é necessário estar atento para ouvir este logos, de modo a desvelar o mundo. Em Heráclito, não encontramos o termo to on, que designaria o ser, mas os termos cosmos e physis, mundo e natureza. Ouvir o logos para desvela-lo significa desvelar a natureza e o mundo, para, enfim, descobrir sua real constituição. Ao mesmo tempo, Heráclito formula um pensamento essencialmente belicoso, colocando a guerra como fundo último do mundo, acima dos deuses e dos mortais, indicando, ao contrário, quem acederá a posição de deus e mortal, e quem será livre ou escravo. Há um caráter cósmico no conflito heraclitiano que deve envolver a própria teoria que o significa.
As teses de Heráclito foram muito debatidas e influenciaram muitos filósofos da Antiguidade. Herdeiro da filosofia milésia, Heráclito dá aos seus pensamentos um caráter de necessidade, tal como já havia feito, antes dele, Anaximandro. Dando um fundo ao mundo, dá-lhe também um fim. Heráclito acreditava que o kosmos passava por ciclos, um grande ano, no qual tudo seria consumido pelo fogo e o mundo poderia recomeçar, ciclo este já previsto, dentre outros, pelo mesmo Anaximandro.
Embora ciosos da sua liberdade, que contrapunham à servidão oriental, em Atenas especialmente, os gregos formularam, em termos de filosofia da natureza, uma tal que salientava os aspectos da ananke (necessidade), no sentido filosófico, isto é, um sine qua non. Primitivamente, as leis guardariam mesmo um caráter divino, indicado pelo vocábulo Themis, uma deusa, segundo a genealogia de Hesíodo.  Todos os campos do saber estudados pelos gregos tomaram este caráter de necessidade, inclusive aqueles da argumentação e da retórica. Assim, os tratados gregos se iniciavam com uma lógica, que era seguido de uma filosofia da natureza e, por fim, de uma ética. Colocavam, assim, toda a vida sob o signo da razão, indicando como proceder. Haviam tratados morais, de dietética, inventaram a gramática, deram azo a uma infinidade de regras para o enquadramento do mundo e da sociedade.
A liberdade de consciência vai ser introduzida com mais força na filosofia no período alexandrino, quando a sabedoria grega se viu diante do misticismo oriental. O pecado, entendido como questão ao mesmo tempo filosófica e teológica, é o grande responsável pelas noções de que somos livres, portanto, podemos ser culpabilizados pelas nossas ações. Não que os gregos clássicos não tivessem estas noções de culpabilização, responsabilidade e liberdade; havia processos, havia tribunais, havia a liberdade da assembleia escolher seus rumos e das cidades escolherem seu destino. Mas é com a intrusão primeiro do judaísmo, depois do cristianismo que estes elementos vão ganhar força inaudita, a ponto de marcar um novo período da filosofia, indicando, ao mesmo tempo, que a força da filosofia antiga esmorecia, e que soava a hora das discussões medievais. Queremos somente ressaltar estes dois aspectos, liberdade (eleutheria) e necessidade (ananke, chre). Um, de vertente grega, outro de vertente judaico-cristã.
            Este conflito entre filosofias da necessidade, ou do objeto, e da liberdade, ou do sujeito, percorreram, desde então, toda a história do Ocidente. Vão se manifestar nas disputas medievais entre realismo e nominalismo; entre o racionalismo, e seu inatismo, e o empirismo, com o liberalismo que é seu corolário. Conciliar a necessidade do mundo com a liberdade da vontade, eis um dos principais temas da filosofia.
            Mais hodiernamente, esta concepção aparece quando se trata das ciências humanas. As coisas, parece claro, não possuem vontade nem responsabilidade; seu comportamento segue regras, leis, que podem ser estudadas e matematizadas. Já quando se trata de analisar as humanidades, instaura-se a polêmica. Existiriam leis apodíticas que regem a sociedade? Leis do desenvolvimento histórico, da economia, da sociologia? Ou, por lidarem com a liberdade da vontade, estas ciências lidam com eventos que não são repetíveis? No mundo anglo-saxão, isto encaminhou para uma pesquisa quantitativa, uma sociografia, que tenta, a partir de dados estatísticos, estabelecer tendências futuras e regras de desenvolvimento. Já no mundo continental a partir dos trabalhos de filosofia da história, buscou-se uma pesquisa qualitativa, que nos provesse de leis do desenvolvimento histórico, sociológico e econômico. Há dissidentes, é claro, dos dois lados e correntes alternativas. Mas a tônica geral das pesquisas, até onde vão nossos conhecimentos, é essa.
            No final do século XIX, e por todo o século XX, no entanto, com as pesquisas filológicas empreendidas, se recuperou uma das correntes de filosofia mais injustiçadas, os sofistas, bem como suas teses, que relativizavam a verdade e a ligavam ao poder.  Na República, diante das inquietações de Sócrates sobre o conceito de justiça e a cidade ideal, Trasímaco aponta que a justiça é o que convêm ao mais forte. Os dialógos socráticos são cheios dessa disputa entre os sofistas e sua plaidoirie do relativismo, e a defesa platônica de uma verdade realmente existente, no sentido mais forte que isto pode guardar. Esta recuperação do relativismo vem no momento mesmo do auge do cientificismo, quando as ideias de progresso e da necessidade de fundamentar-se em ciência pareciam mais fortes.
            Nesta linha e seguimento de debates aparece Foucault. Este, se apoiando na epistemologia francesa, nega o progresso nas ciências, preferindo as noções de descontinuidade. Calcado nos debates linguísticos, contudo, dissolve o real em práticas discursivas e, posteriormente, num poder onívoro, onde a verdade aparece tematizada sempre em termos relativos às disputas de forças e de narrativa. Os princípios ordenadores do mundo grego, como arché e logos, são desfeitos de um só golpe, e a velha oposição entre liberdade e necessidade, ou sujeito e objeto, é relegada para uma asserção sobre as relações. É na relação entre um sujeito, histórico e imerso em tramas de poder, e um objeto, também histórico e também social, que o conhecimento emerge, sempre interessado. A velha filosofia da história é descartada em benefício de uma filosofia do métier historiográfico, abrindo mão de encontrar no decurso dos acontecimento históricos e da sociedade qualquer lógica além do mero conflito de forças. A realidade social, porque não encontramos uma filosofia da natureza em Foucault, é tomada como conflito entre distintos interesses, que não deixa nada de fora, nem mesmo o corpo, que é fruto dos conflitos. Explicar algo, nesta acepção, é mostrar como e quando foi constituído em uma correlação de forças, e em quais correlações se entrou. Como sua filosofia das ciências é, também, apoiada nestas noções, podemos tentar chegar a uma tese filosófica passível de ser mais seriamente debatida; em homenagem a Wittgenstein podemos asseverar que o mundo não é totalidade nem das coisas nem dos fatos, mas das estratégias.
            Na História da loucura, em Doença mental e psicologia e n’O Poder psiquiátrico Foucault nos fornece teses radicalmente relacionais acerca da constituição da loucura enquanto doença mental, objeto da psiquiatria, que adotou uma verdadeira estratégia para poder tratar dos loucos. Nestes marcos, abstraindo, poderíamos dizer o que é uma estratégia; esta será a constituição do devir do objeto em uma correlação de forças. É necessário aparar as arestas para não soarmos confusos. Há muitos sentidos de estratégia, e faz-se mister distingui-los. Para a definição que acabamos de dar, utilizaremos o termo estratégia histórica.
            Foucault não abstraiu suas teses como estamos a fazer, posto acreditar que uma teoria totalitária conduz a uma sociedade totalitária. Antes, preferiu elaborar “flechas genealógicas”, fragmentos de crítica. Para nós, no entanto, o ofício de filósofo exige teses claras, passíveis de serem argumentadas. Fazendo profissão de fé é que, portanto, tratamos estas proposições.
            Primeiramente, um acerto com nossa terminologia. Estratégia. O conceito tem longa carreira. Surgido entre os gregos, designava as coisas do general, o stratego, originado do termo stratos, “exército, segundo CHANTRAINE (1968, p. 1061). Estava ligado à ideia de condução de exércitos. Como todo conceito, sua história passa por muitas vicissitudes até assumir a forma contemporânea. Até meados do século XIX, nem sempre foi utilizado, posto que alguns, como o próprio Napoleão, preferiam o termo “grande tática” para designar o que hoje chamamos de estratégia. Foi com Bülow, um autor militar da virada do século XVIII para o XIX, que se popularizou o termo, e Clausewitz e Jomini, dois dos maiores pensadores da guerra, já o utilizam abundantemente no sentido contemporâneo.

            Os estudos sobre a guerra eram dominados pela busca da estratégia perfeita, aplicável aos distintos conflitos, que sempre resultariam em vitória. Entendia-se a estratégia como um ciência à moda cartesiana, fundada em princípios que, se observados, seriam a chave da vitória. É nesse espírito que escrevem Jomini, Clausewitz, Liddell Hart e muitos outros. Nestes marcos, a estratégia aparecia como uma ciência praticamente exata. Caberia ao general aplicar seus fundamentos e vencer, ou ignorá-los e se condenar à derrota.
            Ao mesmo tempo, desde a Revolução Francesa, a guerra apareceria não mais como outrora, como mera guerra dinástica, restrita a exércitos pequenos de mercenários. A defesa da Revolução obrigou os generais franceses a travar uma guerra de mobilização total, onde toda a sociedade francesa se viu envolta. Prenunciava-se, assim, o que viriam a ser as guerras de fim absoluto, como diz Clausewitz, ou guerras totais, onde todos os recursos da nação são postos a serviço do conflito. Abandona-se a guerra entre casas reais, para se travar guerras entre nações, como outrora lutavam os gregos, romanos e egípcios, espírito este perdido desde meados da Antiguidade tardia e Idade Média.
            Como a guerra se tornou total, também a estratégia passou a ser vista como não estando restrita aos generais, mas envolvendo todos os recursos do país, ou, mais acertadamente, como diz MARTINS (1983), das Unidades Políticas, dadas as guerras irregulares, isto é, guerras entre exércitos regulares e formações não regulares, por exemplo, guerra de guerrilhas ou lutas contra o terrorismo. O conceito de estratégia, histórico, se adaptou aos novos tempos, se expandindo, dando azo, mesmo, a abusos. Passou-se a falar de estratégia comercial, estratégia de marketing, estratégia disso, estratégia daquilo. Neste sentido, estratégia é entendida como a adequação dos meios aos fins, ou como a coordenação de certos meios para se atingir o fim almejado. Segundo CASTRO, Foucault faz uma utilização de estratégia neste sentido, dentre outros.
            Com o general Beaufre, ganha força a ideia de que não existe uma estratégia universalmente válida, isto é, que abarque todas as situações. A estratégia é entendida como um método de pensamento, que deve se adequar as distintas situações para, assim, saber coordenar os recursos, em adequação a certa situação, destarte atingindo  a finalidade desejada, que é a submissão do inimigo à nossa vontade. Esta submissão não precisa ser obtida, diz Beaufre, pelas armas necessariamente, podendo ser fruto de uma estratégia comercial, diplomática, etc. Há muitos modos de obter a concreção de nossa vontade, sendo as armas apenas uma delas. A boa estratégia coordena todos os meios disponíveis para alcançar seus objetivos
            Desde pelo menos Sun Tzu se sabe que a guerra está submetida à política. Enquanto disciplina, é aparentada à Ciências Políticas, na verdade, é-lhe submissa. A filosofia política trata dos temas mais gerais de uma sociedade. A Ciência Política os operacionaliza e a Estratégia executa. Política e estratégia guardam, portanto, amplas relações.
            Foucault leu Clausewitz e o comenta. A proposição de Clausewitz segundo a qual a guerra é a política continuada por outros meios, é invertida por Foucault; para ele, a política é a guerra continuada por outros meios. Como o pensador francês é radicalmente historicista, resolvendo os problemas no binômio história-sociedade, podemos entender que, sendo a estratégia ciência que aborda a guerra, e sendo esta coextensiva ao corpo social, a estratégia também é coextensiva ao corpo social. Assim, os fatos sociais devem ser explicados em termos de estratégia, quer dizer, de luta entre posições e interesses distintos que vão, no próprio combate, encaminhando a sociedade a certa via ou outra. Por isso o mundo social é a totalidade das estratégia que se enfrentaram; por isso também a estratégia é a constituição do devir do objeto em certa correlação de forças.
            Assim, a história guarda uma lógica, a dos combates que a constituem enquanto tal. É na correlação de forças que se pode explicar certa característica. Explicar algo é mostrar as sucessivas correlações de força que o constituíram. Assim, conforme a coisa vai se forjando taticamente, ela aponta para certa finalidade estratégica. É isto que chamamos de estratégia histórica. Ela resolve aquele velho problema entre a liberdade e a necessidade; há liberdade de ação, nos marcos que a correlação permite. Há racionalidade nos fatos sociais, o da luta entre os diferentes interesses que clivam uma formação social. O logos da história é um polemos; com isto, retornamos a Heráclito e suas palavras que estão na aurora da filosofia: a guerra é de todas as coisas pai.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Sobre o livro Les misérables, de Victor Hugo, Tome I (contém spoilers)

Les misérables, de Victor Hugo, Tome I (contém spoilers)

disponível em https://beq.ebooksgratuits.com/vents/Hugo-miserables-1.pdf

Audiobook no Youtube e no Librivox

Na verdade, não li este livro, mas o escutei, a fim de treinar a audition em francês. No rol dos grandes literatos da humanidade, Victor Hugo ocupa um papel de cimeira, sendo muito lido e muito citado mundo afora. Les misérables é um de seus maiores romances, onde ele, através das desventuras de Jean Valjean, faz ácida crítica da sociedade francesa do século XIX, mostrando como os marginais, os que vivem à margem da sociedade, como prostitutas e ladrões, são frutos dessa própria sociedade, que lhes vira as costas. Jean Valjean é um galerien, um ladrão condenado a trabalhos forçados, que toma contato com Fantine, uma jovem que, por vários motivos, se viu compelida a prostituição. O livro principia com a narrativa da vida de Monsieur Bienvenu, bispo de uma pequena localidade no interior francês. Bievenu, "bem vindo" em português, é um homem santo, dedicando sua vida a cuidar dos pobres e maltrapilhos de sua vila, e, embora rico, leva uma vida frugal com sua irmã. Um dos pontos altos do livro, um volume com mais de setecentas páginas, é a discussão de Bienvenu com um antigo revolucionário das vagas de 1789. O discurso do velho revolucionário, à beira de morte, é completamente eletrizante, e constitui uma crítica mordaz do Antigo Regime e suas castas. Jean Vajean, antigo camponês preso por roubar para saciar sua fome em um ato de quase ingenuidade e desespero, após cumprir uma pena de mais de uma década nas galeras, entra em contato com Bienvenu e se torna outra pessoa. As relações com o bispo lhe entamam uma profunda revolução espiritual, verdadeira epifania, e Valjean se emenda, passando a levar uma vida honesta, também dedicada aos pobres e a remediar os males da nascente sociedade urbano-industrial francesa. Já Fantine, após uma juventude de alegrias, se vê criando uma criança sozinha. Enquanto mãe solteira, carrega um estigma, o que a impede de conseguir um emprego para sustentar sua filha, forçando-a a vagar de cidade em cidade e, por fim, abrir de mão de cuidar de sua filha, entregue a um casal de camponeses maldosos. Fantine é empregada em uma das fábricas que Valjean fundou em uma cidade do interior, e, como sua condição de mãe solteira é logo descoberta, se vê forçada a vender seus dentes para sustentar sua filha, à qual envia regularmente dinheiro, outro ponto alto do livro. Valjean, agora sob nova identidade, garante o sustento de muitas famílias na localidade de Montreuil-sur-mer. Logo, reduzida ao opróbrio, Fantine é acusada de um crime que não cometeu e perseguida pelo inspetor de polícia Javert, um homem dotado de verdadeiro espírito juncker prussiano. Valjean, sob o nome de Madeleine, tornado prefeito da cidade graças a sua ação benfazeja, intervem e salva Fantine da prisão, onde esta não poderia sustentar sua filha. Deste encontro, surgem novos fios do enredo, que não contaremos até o fim. Embora tenhamos exposto de uma forma direta, a narrativa é mais longa, e faz uma grande sondagem psicológica dos personagens, muito profundos, explicando suas ações segundo a personalidade de cada qual. O tema do livro, a miséria na França do século XIX e sua origem social, pode ligar o autor àquilo que Engels e depois Lênin viram como uma das contribuições da França à humanidade, as preocupações socialistas com o bem-estar do gênero humano, embora Hugo não mostre nem luta de classes nem a crença na transformação revolucionária da espécie, ao menos no primeiro tomo, posto que o segundo vai abordar alguns processos revolucionários, como analisaremos na sequência. É mister lembrar que a preocupação com as misérias sociais era constante no século XIX, atingindo mesmo autores liberais, como os ricardianos de esquerda, tal qual Sismondi, ou mesmo um liberal reformador, como Stuart Mill, e até mesmo a Igreja Católica, com suas encíclicas e tratados. O livro de Hugo possui qualidades literárias inegáveis e, como todo clássico, merece ser lido, ou ouvido, de preferência em sua língua original, que guarda belezas e dá uma tônica própria aos discursos e pensamentos dos personagens.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Sobre o livro "História da doutrina Militar"

História da Doutrina Militar (Da Antiguidade a II GM), RJ: AMAN, 1979

Trata-se de um manual já antigo do Exército brasileiro (1979), o que não diminui o valor dos seus ensinamentos, visto que ele abrange desde a Antiguidade Clássica até a Segunda Guerra Mundial. Por "doutrina militar" compreende-se a junção da ciência militar com a arte da guerra. A ciência militar inclui a estratégia, a logística, a geografia militar, etc. Já a arte da guerra é a própria utilização dos exércitos no Teatro de Operações, sendo este conceito mais recente, mas já amplamente difundido na doutrina. O livro é sumário, muito resumido, e deve ser complementado com um bom atlas e uma história militar. Mas, sendo livro de formação, contém boas indicações de como se travou a guerra ao longo dos séculos, resumindo pensamento de líderes, tipos de tropas empregadas, situações políticas e desenvolvimento técnico. É um livro excessivamente centrado na Europa, deixando de lado doutrinas importantes, como as tribais, como os maori, e de civilizações mais expressivos, como indianos e chineses, que tem muito a contribuir à doutrina, como mostra Sun Tzu e Kautilya. Por isso os livros de Keagan (Uma história da guerra) e de Chaliand (Anthologie mondiale de la stratégie) são bons complementos à leitura. Neste manual do exército encontra-se algumas asserções estratégias, que já revelam a própria doutrina do exército brasileiro, sistematizada em autores como Golbery e Meira Mattos. O livro fornece boas informações, no entanto, aos estudiosos da estratégia, de história militar e de Brasil. Raro, somente pode ser encontrado em sebos. No site da ECEME havia uma versão com muitas diferenças até bem pouco tempo; a possuo e posso disponibilizar aos interessados. O livro é bastante recomendável a neófitos e especialistas.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Sobre o livro "o legado de Foucault"


O legado de Foucault

L. Scavone,  C. Alvarez, R. Miskolci (org.), SP: EDUNESP/FAPESP, 2006

As publicações sobre Foucault e mesmo livros inéditos deste têm se sucedido com grande velocidade, dificultando a tarefa do estudioso ou do diletante em selecionar, no mar de obras, aquelas que valem a pena serem lidas. O legado de Foucault é um livro de comentários, baseado em um Congresso ocorrido na UNESP-Araraquara em 2004. Conta, assim, com textos de especialistas no tema ou de leitores argutos, professores universitários. Sendo um livro de artigos, há variados temas abordados, desde o estado dos arquivos de Foucault, até textos sobre a relação do filósofo francês com outros autores, tais quais Wilde, Hegel e Rousseau. Conste também textos polêmicos, como um que giza os laços de Foucault com a fenomenologia, especialmente em seu primeiro período, ou das relações entre o pensamento foucaultiano e o feminismo contemporâneo, relações estas tensas. O melhor texto do volume, sem dúvida, é o de José Carlos Bruni sobre "Foucault e o silêncio dos sujeitos". Embora seja um texto antigo, fruto de um artigo, o autor busca articular as obras de Foucault em uma totalidade, ao contrário dos demais textos, que focalizam sempre um traço específico das produções do mestre francês. O livro é recomendável para iniciantes ou especialistas, seja pela bibliografia que fornece sobre temas específicos, seja pela qualidade das reflexões. Não se espere, contudo, um fio condutor, que atravessaria os distintos capítulos; eles são independentes, tornando as reflexões rápidas, à exceção dos textos sobre feminismo, que se complementam. Cada capítulo poderia ser desenvolvido em livro independente, e alguns o foram, ou são resultados de teses de doutorado, que empreenderam esta ampliação. Enfim, o livro, facilmente adquirível e disponível em uma boa biblioteca, há de se mostrar útil. Para nossa atual pesquisa, ao menos, ele certamente será.

domingo, 11 de agosto de 2019

Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno

Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno [1992]

João Evangelista, SP: Cortez, 2002, 3ª edição

Trata-se de um pequeno volume, onde o autor expõe as principais críticas ao marxismo des um ponto de vista que ele chama de pós-moderno, e enseja certas respostas. O principal ataque ao marxismo, na contemporaneidade, seria a de que a teoria envelheceu, dadas as mudanças nas sociedades coetâneas, onde o velho proletariado revolucionário teria cedido espaço a novos movimentos, com novos agentes, consequentemente demandando novas teorias para serem analisados e potencializados. Para o autor, de vertente simultaneamente lukásiana e gramsciana, estas seriam balelas propagadas pelo que ele chama de irracionalismo, na esteira de Lukács. O autor dedica exíguas páginas a definir o tal irracionalismo, mas, tomando-o como dado contemporâneo, centra críticas ao pós-estruturalismo francês e a alguns autores marxistóides como Sader, para o qual o movimento operário teria perdido a centralidade nos processos de transformação social. Apoiando-se em clássicos do marxismo, João Evangelista pretende demonstrar que o marxismo abrange estes novos movimentos, os quais devem ser orientados para a luta de classes, na qual o destino de nossos tempos se resolvem. O marxismo não somente não teria envelhecido, como sua resposta aos problemas contemporâneos seria a mais adequada e verdadeira, visto, precisamente, que o marxismo é um dos herdeiros do Iluminismo, capaz de articular conceitos como sujeito, verdade, revolução, etc. A chave para a atualidade do marxismo seria o conceito de práxis, tal como desenvolvidos pelos clássicos desta vertente, que rompe com velhas dicotomias o pensamento ocidental, como sujeito-objeto ou consciência-realidade. Para João Evangelista, o marxismo não só se mantem atual, mesmo frente aos ataques dos irracionalista, como, ademais, é a teoria que deve impulsionar os movimentos sociais, a classe trabalhadora, rumo às transformações revolucionárias, cada vez candentes e necessárias, ao menos a seu ver. Como literatura de divulgação, o livro se presta bem; mas, por ser demasiado pequeno, responde mal aos autores dito pós-modernos, mesmo por que eles não constam em sua bibliografia. O principal foco de atenção do autor é mesmo Emir Sader, teórico do petismo . Sendo livro já antigo, de 1992, não se pode dizer, contudo, que seja datado. Suas ideias podem ser desenvolvidas e ampliadas. Como texto feito para cimentar convicções, se presta bem. Já como crítica minuciosa, deixa a desejar.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

O camelo defecando no rio, de Esopo [tradução]

O camelo defecando no rio

"Atravessava rio de forte correnteza um camelo. Tendo defecado, viu as fezes avançarem a ele devido a forte correnteza, e falou: 'Que é isso? O que estava atrás de mim agora vejo me ultrapassando'.

Em cidades onde os últimos e ignorantes reinam em lugar dos primeiros e inteligentes; a estas cidades se aplica esta história".

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio

De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio

Gonçalo Armijos Palácios, Editora UFG, 1997


Demorei muito tempo para começar a ler esse texto. O autor esteve em Marília para debater suas posições, mas eu, infelizmente, não compareci, embora tenha debatido com o professor Lúcio, no mesmo evento, teses que se aproximam muito das defendidas por Palácios, fruto sobremaneira de minha passagem pelo curso de História, exatamente da disciplina de História Econômica, onde se discute a diferença entre métodos de economia e métodos de história econômica, de onde decorre que haja uma diferença entre economistas e historiadores da economia. O ônus pelo atraso na leitura deste livro é todo meu já que, neste curto texto marginal, publicado por uma pequena editora universitária, por um autor desconhecido até mesmo do público filosófico especializado, há uma reflexão metafilosófica que supreende. Surpreende porque o autor vai ao cerne da produção filosófica brasileira, questionando este fazer filosófico nesta terra brasilis marcado por formas, teses e métodos específicos. Já tivemos a oportunidade de apontar que forma e conteúdo estão intimamente relacionados e de como uma determina e é determinada pelo outra. Do mesmo modo, na vasta produção filosófica brasileira, há formas muito bem marcadas que se espera de uma tese, logo, certo conteúdo a ser expresso: o conceito de algo em alguém, eis a forma-conteúdo básica de uma dissertação ou tese de filosofia no Brasil. Outras teses, que rondaram e rondam o panorama filosófico, é o privilégio de certos idiomas, tomados como o suprassumo de veículo filosófico, o que se expressa, muito claramente, nas línguas exigidas nos programas de pós-graduação. Do mesmo modo, certos métodos de leitura filosófica, fundamentalmente o estruturalismo francês, são martelados na cabeça dos neófitos como o método de leitura filosófica por excelência, se não o único. Palácios trabalha com estes problemas, mostrando como estas teses (forma-conteúdo, privilégio linguístico e forma-glosa) moldaram o panorama filosófico nacional, constituindo-se em verdadeiro empecilho nas tentativas de filosofar. Outro entrave à filosofia seria a cultura da formação do erudito em detrimento da escrita; o erudito, isto é, o leitor de muitas obras, não necessariamente será um filósofo, tampouco o escritor, mas este tem a vantagem de expressar suas ideias, torná-las clara, tentar se explicar. Exatamente por quê escrevemos para ser entendidos, deve-se minorar as tentativas de leituras exóticas sobre os autores distintos, especialmente os velhos gregos, ao menos segundo Palácios. O autor também discute a oposição entre filosofia e história da filosofia, chegando a uma posição média: não abandonar nem uma nem outra, ou seja, nem ser meros comentadores de obras que já não interessam a ninguém, à exceção de meia dúzia de especialistas, nem ignorar que outros já trataram de nossos problemas. Há variadas posições filosóficas contidas nas teses do autor, o que não diminui sua importância, aliás, a engrandece, posto que Palácios ousou filosofar, defendendo precisamente isto: chega de nos fiarmos em autores estrangeiros, virando as costas à nossa realidade. A filosofia é característica comum dos humanos, que são curiosos por natureza; neste ínterim, a filosofia deve servir para ajudar-nos a dar novas respostas a velhos problemas, ou, mesmo, criar novos problemas, sempre orientados para o presente, para nossa época, posto que o saber tem história e geografia. Os grandes filósofos se destacaram por se ater a seu tempo, aos problemas prementes de uma era. Façamos como eles: ousemos filosofar, não ignorando o passado, mas sem sermos prisioneiros dele. Orientamos nosso pensamento ao porvir. Este é o caminho para a produção filosófica autoral nesta terra de colonos, sujeita às influências atlânticas, como mostra Cruz Costa, mas com perspectivas do sertão, nossas raízes mais profundas.