A filosofia grega nos
legou a ideia de logos, introduzida
por Heráclito, nos tempos da primeira ontologia grega. O termo é de difícil
tradução, mas sempre guarda a ideia de proporção, daí uma de suas traduções por
razão, ou a ideia de troca, visto sua relação com o verbo legein, dizer.
Heráclito expressa sempre com a ideia de logos a noção de que o cosmos tem um
logos, e que é necessário estar atento para ouvir este logos, de modo a
desvelar o mundo. Em Heráclito, não encontramos o termo to on, que designaria o
ser, mas os termos cosmos e physis, mundo e natureza. Ouvir o logos para
desvela-lo significa desvelar a natureza e o mundo, para, enfim, descobrir sua
real constituição. Ao mesmo tempo, Heráclito formula um pensamento
essencialmente belicoso, colocando a guerra como fundo último do mundo, acima
dos deuses e dos mortais, indicando, ao contrário, quem acederá a posição de
deus e mortal, e quem será livre ou escravo. Há um caráter cósmico no conflito
heraclitiano que deve envolver a própria teoria que o significa.
As teses de Heráclito
foram muito debatidas e influenciaram muitos filósofos da Antiguidade. Herdeiro
da filosofia milésia, Heráclito dá aos seus pensamentos um caráter de
necessidade, tal como já havia feito, antes dele, Anaximandro. Dando um fundo
ao mundo, dá-lhe também um fim. Heráclito acreditava que o kosmos passava por
ciclos, um grande ano, no qual tudo seria consumido pelo fogo e o mundo poderia
recomeçar, ciclo este já previsto, dentre outros, pelo mesmo Anaximandro.
Embora ciosos da sua
liberdade, que contrapunham à servidão oriental, em Atenas especialmente, os
gregos formularam, em termos de filosofia da natureza, uma tal que salientava
os aspectos da ananke (necessidade), no sentido filosófico, isto é, um sine qua
non. Primitivamente, as leis guardariam mesmo um caráter divino, indicado pelo
vocábulo Themis, uma deusa, segundo a genealogia de Hesíodo. Todos os campos do saber estudados pelos
gregos tomaram este caráter de necessidade, inclusive aqueles da argumentação e
da retórica. Assim, os tratados gregos se iniciavam com uma lógica, que era
seguido de uma filosofia da natureza e, por fim, de uma ética. Colocavam,
assim, toda a vida sob o signo da razão, indicando como proceder. Haviam
tratados morais, de dietética, inventaram a gramática, deram azo a uma
infinidade de regras para o enquadramento do mundo e da sociedade.
A liberdade de
consciência vai ser introduzida com mais força na filosofia no período
alexandrino, quando a sabedoria grega se viu diante do misticismo oriental. O
pecado, entendido como questão ao mesmo tempo filosófica e teológica, é o
grande responsável pelas noções de que somos livres, portanto, podemos ser
culpabilizados pelas nossas ações. Não que os gregos clássicos não tivessem
estas noções de culpabilização, responsabilidade e liberdade; havia processos,
havia tribunais, havia a liberdade da assembleia escolher seus rumos e das
cidades escolherem seu destino. Mas é com a intrusão primeiro do judaísmo,
depois do cristianismo que estes elementos vão ganhar força inaudita, a ponto
de marcar um novo período da filosofia, indicando, ao mesmo tempo, que a força
da filosofia antiga esmorecia, e que soava a hora das discussões medievais. Queremos
somente ressaltar estes dois aspectos, liberdade (eleutheria) e necessidade
(ananke, chre). Um, de vertente grega, outro de vertente judaico-cristã.
Este
conflito entre filosofias da necessidade, ou do objeto, e da liberdade, ou do
sujeito, percorreram, desde então, toda a história do Ocidente. Vão se
manifestar nas disputas medievais entre realismo e nominalismo; entre o
racionalismo, e seu inatismo, e o empirismo, com o liberalismo que é seu
corolário. Conciliar a necessidade do mundo com a liberdade da vontade, eis um
dos principais temas da filosofia.
Mais
hodiernamente, esta concepção aparece quando se trata das ciências humanas. As
coisas, parece claro, não possuem vontade nem responsabilidade; seu
comportamento segue regras, leis, que podem ser estudadas e matematizadas. Já
quando se trata de analisar as humanidades, instaura-se a polêmica. Existiriam
leis apodíticas que regem a sociedade? Leis do desenvolvimento histórico, da
economia, da sociologia? Ou, por lidarem com a liberdade da vontade, estas
ciências lidam com eventos que não são repetíveis? No mundo anglo-saxão, isto
encaminhou para uma pesquisa quantitativa, uma sociografia, que tenta, a partir
de dados estatísticos, estabelecer tendências futuras e regras de
desenvolvimento. Já no mundo continental a partir dos trabalhos de filosofia da
história, buscou-se uma pesquisa qualitativa, que nos provesse de leis do
desenvolvimento histórico, sociológico e econômico. Há dissidentes, é claro,
dos dois lados e correntes alternativas. Mas a tônica geral das pesquisas, até
onde vão nossos conhecimentos, é essa.
No
final do século XIX, e por todo o século XX, no entanto, com as pesquisas
filológicas empreendidas, se recuperou uma das correntes de filosofia mais
injustiçadas, os sofistas, bem como suas teses, que relativizavam a verdade e a
ligavam ao poder. Na República, diante das inquietações de
Sócrates sobre o conceito de justiça e a cidade ideal, Trasímaco aponta que a
justiça é o que convêm ao mais forte. Os dialógos socráticos são cheios dessa
disputa entre os sofistas e sua plaidoirie do relativismo, e a defesa platônica
de uma verdade realmente existente, no sentido mais forte que isto pode
guardar. Esta recuperação do relativismo vem no momento mesmo do auge do
cientificismo, quando as ideias de progresso e da necessidade de fundamentar-se
em ciência pareciam mais fortes.
Nesta
linha e seguimento de debates aparece Foucault. Este, se apoiando na
epistemologia francesa, nega o progresso nas ciências, preferindo as noções de
descontinuidade. Calcado nos debates linguísticos, contudo, dissolve o real em
práticas discursivas e, posteriormente, num poder onívoro, onde a verdade
aparece tematizada sempre em termos relativos às disputas de forças e de
narrativa. Os princípios ordenadores do mundo grego, como arché e logos, são
desfeitos de um só golpe, e a velha oposição entre liberdade e necessidade, ou
sujeito e objeto, é relegada para uma asserção sobre as relações. É na relação
entre um sujeito, histórico e imerso em tramas de poder, e um objeto, também
histórico e também social, que o conhecimento emerge, sempre interessado. A
velha filosofia da história é descartada em benefício de uma filosofia do
métier historiográfico, abrindo mão de encontrar no decurso dos acontecimento
históricos e da sociedade qualquer lógica além do mero conflito de forças. A
realidade social, porque não encontramos uma filosofia da natureza em Foucault,
é tomada como conflito entre distintos interesses, que não deixa nada de fora,
nem mesmo o corpo, que é fruto dos conflitos. Explicar algo, nesta acepção, é
mostrar como e quando foi constituído em uma correlação de forças, e em quais
correlações se entrou. Como sua filosofia das ciências é, também, apoiada
nestas noções, podemos tentar chegar a uma tese filosófica passível de ser mais
seriamente debatida; em homenagem a Wittgenstein podemos asseverar que o mundo não é totalidade nem das coisas nem
dos fatos, mas das estratégias.
Na
História da loucura, em Doença mental
e psicologia e n’O Poder psiquiátrico Foucault nos fornece teses radicalmente
relacionais acerca da constituição da loucura enquanto doença mental, objeto da
psiquiatria, que adotou uma verdadeira estratégia para poder tratar dos loucos.
Nestes marcos, abstraindo, poderíamos dizer o que é uma estratégia; esta será a constituição do devir do objeto em uma
correlação de forças. É necessário aparar as arestas para não soarmos
confusos. Há muitos sentidos de estratégia, e faz-se mister distingui-los. Para
a definição que acabamos de dar, utilizaremos o termo estratégia histórica.
Foucault
não abstraiu suas teses como estamos a fazer, posto acreditar que uma teoria
totalitária conduz a uma sociedade totalitária. Antes, preferiu elaborar
“flechas genealógicas”, fragmentos de crítica. Para nós, no entanto, o ofício
de filósofo exige teses claras, passíveis de serem argumentadas. Fazendo
profissão de fé é que, portanto, tratamos estas proposições.
Primeiramente,
um acerto com nossa terminologia. Estratégia. O conceito tem longa carreira.
Surgido entre os gregos, designava as coisas do general, o stratego, originado
do termo stratos, “exército, segundo CHANTRAINE (1968, p. 1061). Estava ligado
à ideia de condução de exércitos. Como todo conceito, sua história passa por
muitas vicissitudes até assumir a forma contemporânea. Até meados do século
XIX, nem sempre foi utilizado, posto que alguns, como o próprio Napoleão,
preferiam o termo “grande tática” para designar o que hoje chamamos de
estratégia. Foi com Bülow, um autor militar da virada do século XVIII para o
XIX, que se popularizou o termo, e Clausewitz e Jomini, dois dos maiores
pensadores da guerra, já o utilizam abundantemente no sentido contemporâneo.
Os
estudos sobre a guerra eram dominados pela busca da estratégia perfeita,
aplicável aos distintos conflitos, que sempre resultariam em vitória. Entendia-se
a estratégia como um ciência à moda cartesiana, fundada em princípios que, se
observados, seriam a chave da vitória. É nesse espírito que escrevem Jomini,
Clausewitz, Liddell Hart e muitos outros. Nestes marcos, a estratégia aparecia
como uma ciência praticamente exata. Caberia ao general aplicar seus
fundamentos e vencer, ou ignorá-los e se condenar à derrota.
Ao
mesmo tempo, desde a Revolução Francesa, a guerra apareceria não mais como
outrora, como mera guerra dinástica, restrita a exércitos pequenos de
mercenários. A defesa da Revolução obrigou os generais franceses a travar uma
guerra de mobilização total, onde toda a sociedade francesa se viu envolta.
Prenunciava-se, assim, o que viriam a ser as guerras de fim absoluto, como diz
Clausewitz, ou guerras totais, onde todos os recursos da nação são postos a
serviço do conflito. Abandona-se a guerra entre casas reais, para se travar
guerras entre nações, como outrora lutavam os gregos, romanos e egípcios,
espírito este perdido desde meados da Antiguidade tardia e Idade Média.
Como
a guerra se tornou total, também a estratégia passou a ser vista como não
estando restrita aos generais, mas envolvendo todos os recursos do país, ou,
mais acertadamente, como diz MARTINS (1983), das Unidades Políticas, dadas as
guerras irregulares, isto é, guerras entre exércitos regulares e formações não
regulares, por exemplo, guerra de guerrilhas ou lutas contra o terrorismo. O
conceito de estratégia, histórico, se adaptou aos novos tempos, se expandindo,
dando azo, mesmo, a abusos. Passou-se a falar de estratégia comercial,
estratégia de marketing, estratégia disso, estratégia daquilo. Neste sentido,
estratégia é entendida como a adequação dos meios aos fins, ou como a
coordenação de certos meios para se atingir o fim almejado. Segundo CASTRO,
Foucault faz uma utilização de estratégia neste sentido, dentre outros.
Com
o general Beaufre, ganha força a ideia de que não existe uma estratégia
universalmente válida, isto é, que abarque todas as situações. A estratégia é
entendida como um método de pensamento, que deve se adequar as distintas
situações para, assim, saber coordenar os recursos, em adequação a certa
situação, destarte atingindo a
finalidade desejada, que é a submissão do inimigo à nossa vontade. Esta
submissão não precisa ser obtida, diz Beaufre, pelas armas necessariamente,
podendo ser fruto de uma estratégia comercial, diplomática, etc. Há muitos
modos de obter a concreção de nossa vontade, sendo as armas apenas uma delas. A
boa estratégia coordena todos os meios disponíveis para alcançar seus objetivos
Desde
pelo menos Sun Tzu se sabe que a guerra está submetida à política. Enquanto
disciplina, é aparentada à Ciências Políticas, na verdade, é-lhe submissa. A
filosofia política trata dos temas mais gerais de uma sociedade. A Ciência
Política os operacionaliza e a Estratégia executa. Política e estratégia
guardam, portanto, amplas relações.
Foucault
leu Clausewitz e o comenta. A proposição de Clausewitz segundo a qual a guerra
é a política continuada por outros meios, é invertida por Foucault; para ele, a
política é a guerra continuada por outros meios. Como o pensador francês é
radicalmente historicista, resolvendo os problemas no binômio
história-sociedade, podemos entender que, sendo a estratégia ciência que aborda
a guerra, e sendo esta coextensiva ao corpo social, a estratégia também é
coextensiva ao corpo social. Assim, os fatos sociais devem ser explicados em
termos de estratégia, quer dizer, de luta entre posições e interesses distintos
que vão, no próprio combate, encaminhando a sociedade a certa via ou outra. Por
isso o mundo social é a totalidade das estratégia que se enfrentaram; por isso
também a estratégia é a constituição do devir do objeto em certa correlação de
forças.
Assim,
a história guarda uma lógica, a dos combates que a constituem enquanto tal. É
na correlação de forças que se pode explicar certa característica. Explicar
algo é mostrar as sucessivas correlações de força que o constituíram. Assim,
conforme a coisa vai se forjando taticamente, ela aponta para certa finalidade
estratégica. É isto que chamamos de estratégia
histórica. Ela resolve aquele velho problema entre a liberdade e a
necessidade; há liberdade de ação, nos marcos que a correlação permite. Há
racionalidade nos fatos sociais, o da luta entre os diferentes interesses que
clivam uma formação social. O logos da história é um polemos; com isto,
retornamos a Heráclito e suas palavras que estão na aurora da filosofia: a
guerra é de todas as coisas pai.
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