domingo, 29 de março de 2020

Genealogia do neoliberalismo

 DARDOT, P. LAVAL, C. La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néolibérale. Paris: La Découverte, 2009 [ed. brasileira: A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal, SP: Boitempo, 2016

Foucault abordou o liberalismo e o  neoliberalismo no final dos 1970, ao traçar-lhe sua genealogia. A novidade de seu viés era a de tomar estas vertentes não como simples teorias econômicas, mas como governamentalidades, quer dizer, as formas de governar (que articulam saber e prática). É interessante notar que Foucault elaborou sua análise quando o neoliberalismo começava a se espraiar, indo além das experiências alemã e chilena, e chegando à Inglaterra e aos EUA. O curso em que Foucault analisou o liberalismo chamava-se O nascimento da biopolítica, estando esta e aquela ligados.

Dardot e Laval, pensadores franceses contemporâneos, em seu livro A nova razão do mundo, expandem a análise foucaultiana, mas seguem esta em suas linhas-mestras. Não se trata de uma história do pensamento liberal e suas vertentes; capítulos importantes dessa história, como o pensamento neoclássico em economia, são deixados de lado ou citados muito brevemente. Trata-se, para eles, de mostrar o neoliberalismo enquanto uma racionalidade, que dominou praticamente o mundo todo. Já tivemos oportunidade de analisar uma parte dessa racionalidade (que se pode conferir aqui http://www.revistas.usp.br/humanidades/article/view/106215), e mais recentemente, antes da leitura de Dardot e Laval, insistimos na ideia de tomar o neoliberalismo enquanto uma estratégia (em artigo no prelo). Não se trata, para essa vertente teórica foucaultiana, de pensar que o neoliberalismo seja apenas uma doutrina econômica, mas uma série de princípios que visam a reorganizar toda a sociedade, desde as relações pessoais, até a estrutura do estado, passando por plasmar um sujeito neoliberal, que Dardot e Laval chama de neosujeito. Eles mostram como a racionalidade neoliberal gerencial (managérial) se expandiu até mesmo para setores de esquerda, como o trabalhismo britânico e a social-democracia de maneira geral. Os autores insistem ainda no fato de que o neosujeito é o puro fruto de injunções políticas que objetivam acabar com a classe trabalhadora, visto que cada indivíduo é encarada enquanto uma empresa, assim, desvencilhado de direitos como férias e aposentadoria. Em tempos de uberização, o livro, que é recente, guarda muita atualidade. Assim, eles introduzem a ideia de um novo dispositivo disciplinar neoliberal, que visa enquadrar a classe trabalhadora para torná-la mais apta à exploração das novas formas de capitalismo.

Há diferenças nítidas em relação a uma das análises mais conhecidas no Brasil quanto ao neoliberalismo, a de Perry Anderson, publicada em 1995. O desnível de tempo e a comparação entre um simples capítulo e um livro de mais de quinhentas páginas, como o de Dardot e Lval, podem dar mostras de desonestidade intelectual; mas, se fazemos esta comparação, é para pontuar, sem reduzir o marxismo a uma única análise. Deve-se lembrar que quando Anderson escreve seu artigo, o curso de Foucault já completara quinze anos desde sua preleção, ou seja, o tipo de ideias que desenvolvem Dardot e Laval não eram mais novidade. Anderson afirma que o neoliberalismo surgiu com a sociedade Mont Péllerin, um erro segundo Dardot e Laval (e Foucault), visto que, mais de dez anos antes, os neoliberais se encontram no Colóquio Walter Lippman, e foi ali, inclusive, que surgiu o termo neoliberal. Outro erro de Perry Anderson, muito difundido no Brasil, é o de que o Chile de Pinochet foi a experiência-piloto do neoliberalismo, quando, em fato, foi a República Federal Alemã (Alemanha Ocidental) por ocasião da reconstrução do país no pós-guerra. Há ainda outra falha, verdadeiro chavão da esquerda brasileira, o qual afirma que o neoliberalismo é o retorno ao capitalismo do século XIX. Já Foucault mostrava como para o liberalismo clássico e para o neoliberalismo se tratam de ordens de problema totalmente diferentes, um visando criar, no interior de um estado absolutista, um espaço de liberdade econômica, o outro, como no caso do ordoliberalismo alemão, como construir o estado a partir de uma ordem econômica de mercado. Além disso, o neoliberalismo não é um todo, contando com correntes; Dardot e Laval distinguem em duas principais, seguindo Foucault: o neoliberalismo austro-americano e o ordoliberalismo alemão. Se distinguem, na medida em que este último está mais próximo das preocupaçõess sociais de Bentham, por exemplo, e formula uma verdadeira política de sociedade, uma estratégia para quebrar os fundamentos das sociedades moderna, com sua grande acumulação de homens e as consequências políticas que disto decorre. Já o austroliberalismo, que reúne nomes conhecidos como Hayek (apontado por Anderson como fundador do neoliberalismo, quando este título seria mais apropriado a Lippman) e Mises, este recentemente muito difundido no Brasil; para estes neoliberais, qualquer ação do estado na economia é danosa; além do que, capital é capital humano, de modo que cada um é uma pequena empresa.

Dardot e Laval mostram como foi o ordoliberalismo a pedra de toque na fundação da União Européia. Estes neoliberais compreendem que o Estado deve fornecer um quadro (uma armadura jurído-legal) que permita aos agentes econômicas perseguir seus próprios fins. Neste sentido, na UE, como também no Brasil mais recentemente, com a PEC 95/2016 (Lei do teto de gastos), a ordem neoliberal tenta se tornar constitucional, restringindo a ação dos governos, sejam de esquerda ou de direita, tudo em nome da segurança dos assim chamados agente econômicos, quer dizer, dos grande capitalistas. 

A psicanálise também entra no crivo dos autores, que, a partir sobretudo de Lacan, indicam a dessimbolização do mundo no sujeito levada a cabo pelo neoliberalismo e como este impõe um dispositivo de performance-gozo (jouissance), que deve auferir as ações de todos em termos de rentabilidade e de auditorias (audits). Não se trata de supor, como fazem alguns críticos, notoriamente muitos marxistas, que existiria um sujeito fundamental que é desfeito; mas de mostrar, em uma linha francamente fouco-deleuziana, que este sujeito é produzido, incitado, requerido, por uma malha complexa de instituições, discursos e práticas.

Outra ideia importante que os autores levantam é a de como, para os neoliberais, a democracia não é um "valor universal", para usar a formula de Coutinho. Se fazem a defesa da liberdade, é sobretudo a econômica. Hayek, citado no livro, afirma claramente que prefere uma ditadura economicamente liberal a uma democracia economicamente socialista. Mas, segundo os autores, não seria lícito distinguir tão rapidamente entre liberalismo político e liberalismo econômico, pois, conforme visto, este guarda profundos efeitos políticos. Dardot e Laval chegam mesmo a afirmar que a democracia tal qual conhecemos está ameaçada pelo avanço do neoliberalismo e de rua lei de ferro. 

As saídas desse emaranhado que nos cerca são dadas pelos autores sobretudo em outro livro (DARDOT, P. LAVAL, C. Commun. Essai sur la révolution au XXIe siècle. Paris: La Découverte, 2014; edição brasileira: Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI. SP: Boitempo, 2017), o qual será por nós analisado em breve. Em A nova razão do mundo há, somente, algumas indicações. Como, conforme mostram os autores, mesmo a esquerda vem replicando a governamentalidade neoliberal, trata-se, primeiramente, de criar uma governamentalidade de esquerda. Já o velho João Bernardo, um famoso marxista português, apontava como a esquerda não tinha inventado uma arte de governar, copiando, na maior parte de suas experiências históricas, modelos da economia de guerra alemã durante a I GM. Outra indicação é a de reforçar práticas que se contraponham à razão gerencial neoliberal, a qual incentiva a competição e o comportamento de empresa, mesmo no estado. Há alguns anos, João Bernardo, se indagava qual o sentido de defender a universidade pública se ela se assemelha mais e mais a uma empresa. É isso que Dardot e Laval questionam, quer dizer, o próprio estado é chamado a se organizar segundo a forma de uma empresa em nome de uma suposta modernização, nome máscara de privatização de seus meios. Para Dardot e Laval esta resistência deve-se dar em torno da reabilitação do comum - é como encerram o livro, sem dar maiores explicações, nos convidando a ler sua sequência.

O livro é muito bem escrito, fluente e agradável na leitura. Os atores são, também, muito capacitados para tratar do tema. Para aqueles que buscam uma análise bem informada sobre um dos principais tópicos da contemporaneidade, vale a leitura. Um feito do livro em terras tupiniquins é ser publicado pela Boitempo, editora marxista. Prova que, quando o trabalho é fecundo, mesmo os rivais se dobram a ele. 

quarta-feira, 25 de março de 2020

Foucault com Marx

BIDET, Jacques. Foucault avec Marx. Paris: La Fabrique, 2014 [Edição em inglês: Foucault with Marx. London: Zed Books, 2016] 

A esquerda é múltipla, comportando muitas influências teóricas, que vão desde autores oriundos de revoltas populares até de pesquisas mais acadêmicas. Mas há "correntes" e, dentro destas, muitas vezes subcorrentes, caso notório do socialismo. Mas o mainstream da esquerda contemporânea comporta, basicamente, duas correntes teóricas distintas, a socialista e suas brigas entre marxistas e anarquistas, e, dentro destas linhas, disputas internas, proverbiais no caso dos trotskistas; e os pós-estruturalistas, eles mesmos divididos em muitas frações, segundo a predileção por Deleuze, Foucault, Lyotard, etc. De modo geral, como aponta Bidet, as principais lutas contemporâneas giram em torno de três eixos: classe, raça e gênero. Para as primeiras, a influência dominante é o velho socialismo, para as outras se utiliza o pós-estruturalismo francês. Claro, isto tudo é muito esquemático, e deixa de fora campos de luta importante, como a ecologia.

É possível unir estas correntes, ou, antes, tratam de coisas separadas? A extrema-direita elegeu ambas como inimigas, rejeitando, simultaneamente o que chamam de comunismo, a existência do racismo e a imaginária teoria de gênero, que é identificada com a dita esquerda pós-moderna, vide a recepção de Butler nos aeroportos do Brasil. Para o maior inimigo de ambas, elas representam o mal. Para os marxistas, corrente mais difundida do socialismo, os pós-estruturalistas são irracionais e tachados pejorativamente de pós-modernos, termo que Lyotard reivindica com orgulho, mas, por exemplo, Foucault rejeita; para os pós-estruturalistas, ou alguns deles, o marxismo é totalitário e avesso ao esprit du temps. Jacques Bidet crê, no entanto, que é possível uma reconciliação entre o maior nome dos pós-estruturalistas, Foucault, e o maior nome dos socialistas, Marx. É sobre essa ponte que ele escreve em seu livro Foucault avec Marx, publicado em 2014, na França.

Bidet é um marxista experiente e um professor de renome. Publicou estudos sobre Marx e atua no sentido de difundir sua obra. Mas se trata de um heterodoxo. Ele propõe uma refundação da teoria social, naquilo que ele chama de teoria metaestrutural. No livro em questão, ele não aborda em profundidade a questão, mas há lampejos que possibilitam entrever sua proposta. Do ponto de vista do estilo, ele escreve em um francês elegante, sem concessões para devaneios poéticos ou floreios. É direto. Talvez possa se objetar que sua bibliografia é limitada; quanto a Marx, ele se foca somente no estudo maior que é O capital; quanto a Foucault, praticamente toda a produção anterior a 1971, e aquela posterior a 1979 é escanteada. No pós-1979 é que Foucault fará sua proposta ético-política mais séria, e onde boa parte dos estudos mais hodiernos se focam. 

Como Bidet procede a síntese do absolutamente heterogêneo? Para ele, haveria dois eixos de dominação na sociedade contemporânea, o eixo de mercado e o eixo da organização. Marx teria exposto o funcionamento daquele do mercado, conquanto Foucault teria feito a analítica do  outro. O eixo da organização é dominado pela outra classe da sociedade capitalista, a dos dirigentes-competentes (dirigéants-compétents), que dominam porque exercem um poder-saber, conceito caro a Foucault. Já o poder da classe capitalista é aquele econômico, de mercado. Assim, Foucault e Marx podem dialogar no sentido do estabelecimento da teoria moderna da sociedade.

Bidet certamente ignora o trabalho de autores como Tragtenberg e João Bernardo, marxistas heterodoxos, que denunciavam (e denunciam, no caso de João Bernardo) a classe dos gestores. Esta classe, não a dos trabalhadores, é que teriam tomado o controle do Estado, em países como URSS e China. O socialismo, para estes autores, e outros, como Castoriadis, além dos anarquistas, significa autogestão. É a via libertária do socialismo e o marxismo de conselhos. A teoria de Bidet pode ser aproximada desses autores.

Tragtenberg intentou unir anarquismo e sua crítica política e marxismo e sua crítica econômica. Na análise de Bidet, a crítica política anarquista é substituída pelas fecundas análises de Foucault. Bidet distingue entre o socialismo (democracia econômica) e comunismo (democracia política), posto ser avesso ao estalinismo. Não que, exatamente, se ignore a ampla crítica política que o marxismo fez; mas o livro se chama "Foucault com Marx" não "Foucault com o marxismo", o que redunda em uma bibliografia magra, conforme indicado.

Bidet distingue Foucault em dois tempos, aquele da análise da sociedade disciplinar, cujo escopo é uma crítica do capitalismo; e o Foucault que emerge mais no final da década de 70, centrado na analítica do liberalismo e neoliberalismo e seu duplo, a população,  e o decorrente disto, o dístico governantes-governados. Marx analisa outro elemento, a formação e estrutura do capitalismo. Marx e Foucault se distinguiriam porque aquele elabora uma análise estrutural (entre as classes), enquanto Foucault faria uma análise nominalista (entre indivíduos); assim, Bidet separa rapports (relações) entre as classes e relations (relações) entre os indivíduos.

A proposta de Bidet não é dissolver Foucault em Marx, nem este naquele, mas fundar um metamarxismo, que dê conta, ao mesmo tempo, das críticas que ambos os pensadores elaboraram. Ele debate, mais no final do livro, uma estratégia, ou seja, fornece saídas. É a primeira vez que nos deparamos com uma discussão mais profunda sobre o conceito de estratégia em Foucault, nosso objeto de mestrado. Conforme dito, Bidet ignora a parte da obra de Foucault onde ele propõe uma estratégia, a constituição de outro sujeito ético e de outros modos de vida. Fiando-se em entrevistas e colocações mais esparsas, como as que constam no Dits et écrits, Bidet pensa que se trata de dois eixos de lutas, um vertical, marcado pela luta contra os dois pólos da dominação contemporânea (mercado e organização), e o eixo horizontal, onde as relações da classe fundamental (classe trabalhadora) devem ser equalizadas.

A tentativa de Bidet é interessante, e merece muito ser lida, especialmente por marxistas empedernidos, para que seu horizonte se amplie. Vimos insistindo que, para um marxista, como ademais para todos os herdeiros de Hegel, não se trata de simplesmente excluir, mas, sim, de suprassumir. A crítica foucaultiana é pertinente e documentada, extrapolando o campo da filosofia e se espraiando por muitas áreas. Certos conceitos de Foucault, como o de biopolítica, se tornaram moeda comum das Humanidades. Ao mesmo tempo, o marxismo se renova constantemente e sua crítica permanece atual.

Consegue Bidet fundir as duas correntes? Se considerarmos que ele reivindica uma democracia radical, contra os desvarios do estalinismo; e que ele reinscreve Foucault em um horizonte de classes, pode-se dizer que sim. Mas perguntas restam. Para a análise das classes, dialética, e para análise da organização, genealogia? E o intento marxista de fundar uma crítica da totalidade contra a pretensão foucaultiana de lançar flechas genealógicas? Como conciliar o projeto marxiano de uma ontologia do trabalho e aquele foucaultiano de uma ontologia do presente? E a heurística de pesquisas futuras, como proceder? São apenas algumas questões que, a nosso ver, Bidet não responde a contento. Claro, pode-se ler o livro como uma primeira aproximação, como um desafio ou como um projeto de pesquisa. Mas, para aqueles que, até então, se viam como inimigos mortais, especialmente os marxistas, que acusam Foucault de liberal, é um primeiro passo, mas que somente pode ser dado pelos não-dogmáticos.  

segunda-feira, 23 de março de 2020

Crítica da razão negra

MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre, Paris: La Découverte, 2013 [edição brasileira: Crítica da Razão Negra, s/l: n1 Publicações, 2018]

Na primeira metade do século passado, em um mundo onde a África e quase toda a Ásia eram colônias das nações européias e dos EUA, alguns intelectuais negros se encontraram em Paris por ocasião de estudos, dando início a variadas reflexões sobre a situação do negro, o que redundaria na Présence Africaine, editora que publicou alguns dos clássicos do estudo do continente negro. O marco da filosofia africana é, no entanto, o livro do padre Tempels sobre a filosofia banto (publicado por aquela editora), onde se eleva o pensamento deste povo ao mais alto nível de abstração e se os afirma como capazes de filosofar, quebrando um dos pilares do racismo colonial, a inferiorização do negro. Mas a filosofia africana ficou muito tempo presa nos marcos de sua possibilidade: discutia-se se era viável uma filosofia africana, se havia uma tradição filosófica negra, se os egipcíos eram negros, etc. - algumas destas questões são marcos também para os debates de filosofia brasileira e outras etnofilosofias. O processo todo é muito bem descrito por Montoya em "Introducción a la filosofia africana" (2010), e nos mesmos já tivemos oportunidade de debater a filosofia africana em alguns trabalhos. Com Mbembe se está em outro nível; já não se trata de perguntar se é possível a filosofia africana e de a justificar: se a faz. E Mbembe vem ganhando repercussão internacional, especialmente com a introdução do termo necropolítica, na esteira dos trabalhos de Foucault, conceito este que aparece com cada vez mais constância no debate brasileiro. 

Este livro em específico, a Crítica da razão negra, pode ser dividido em quatro partes: a introdução, uma análise histórica da formação do mundo negro, crítica literária de algumas obras africanas e análise de algumas das principais personalidades da razão negra, além do epílogo, o corolário do livro, parte extremamente importante. Mbembe mobiliza saberes de diferentes disciplinas, como se pode prever, mas três influências se sobressaem: o pós-estruturalismo francês (Foucault, Deleuze) e Frantz Fanon, redundando em uma análise muito interessante. Apartamos a introdução do restante do livro posto que nela ele introduz a noção de devir-negro do mundo, que não é devidamente trabalhada no restante da obra; por ela se indica a precarização dos modos de vida no planeta em decorrência do neoliberalismo. Já na parte histórica, faz uma análise bastante competente da formação do mundo negro, com farta bibliografia, mas focado na França, nos EUA e no Caribe; o caso brasileiro, maior destino de negros cativos no mundo, é citado de passagem, falta que é, a nosso ver, injustificável. Além disso, Mbembe começa o livro anunciando que a Europa já não é mais o centro do mundo, como o era durante o período colonial e escravista; mas ignora a própria realidade africana, não trabalhando a contento a produção mais contemporânea da filosofia africana e da razão negra. Dado o peso da análise discursiva, se poderia afirmar que o livro é uma espécie de arqueogenealogia no mundo negro, mas faltam alguns elementos, como apontado acima. Um dos focos, como o título indica, é a crítica da razão negra; por esta deve-se entender a maneira como aqueles intelectuais negros, que foram para Paris se formar no século passado, adotaram algumas das categorias do próprio colonialismo para pensar a própria realidade do negro no mundo, visto que este é uma criação do Outro; por exemplo, Mbembe aponta que o próprio conceito de nègre (negro) era reservado aos cativos, conquanto noir (negro) se aplicava aos africanos que quedaram em África. O autor chega a afirmar que o objetivo é um mundo sem raças, quer dizer, um mundo de diferentes, mas de uma humanidade enfim constituída como tal, não mais mercantilizada nem minorizada pelo racismo. Este, no entender de Mbembe, que, neste ponto como em outros segue Foucault, é tomado como a forma privilegiada da mecânica do poder contemporâneo, onde a população é segmentarizada e, sobre uma parte dela, tomada como inferior ou perigosa, se aplicam medidas de contenção ou, in extremis, ela é tomada, como ele aponta em outros textos, como passível de ser morta (necropolítica).

As passagens do texto onde o autor se propõe a analisar três obras literárias são morosas, mais interessantes, fazendo lembrar, pelo estilo e foco, o Raymond Roussel de Foucault. Mas são as outras três partes as mais importantes. Naquela onde ele analisa algumas das principais personalidades da razão negra (Garvey, Césaire, Fanon, Mandela) passa-se em revista as contribuições de cada um. O peso de Fanon aqui, como em outras partes do livro, é marcante. Se Mbembe se inscreve na continuidade fanoniana, falta-lhe, no entanto, a veia revolucionária deste. Claro, são autores de períodos muito distintos, e o foco de Mbembe é a crítica ao racismo e à formação da razão negra e do mundo negro; mas, nunca é demais lembrar, o racismo moderno surge de uma empresa capitalista. Para muitos partidos e movimentos marxistas e anarquistas, não é possível capitalismo sem racismo; para Mbembe, que não aponta uma estratégia nem um programa de luta, não foi possível capitalismo sem racismo. Ou seja, é concebível elaborar uma apropriação moderada de seu pensamento, talvez, mesmo, liberalismo. Cremos que o elo entre o pensamento de Mbembe e o socialismo precisava ser mais claro; ele faz elogios ao tratamento que os anarquistas davam a questão colonial e critica Jaurès, o que pode fornecer pistas, mas muito vagas; nestes termos, segue Foucault e as alusões deste ao anarquismo e à revolução, sem compromissos mais profundos.

O autor é fanoniano ainda em outro sentido: na clínica, ou na mobilização de elementos clínicos para analisar o mundo negro. Em Peau noire, masques blanches (Peles negras, máscaras brancas), Fanon, que tem formação médica, dedica a maior parte do livro a mostrar como o colonialismo destrói a subjetividade do colonizado. Neste ponto, a ruptura de Mbembe com o pós-estruturalismo é clara, visto que Foucault e Deleuze não pensam que exista um sujeito fundamental, mas que este é criado; em Deleuze, até mesmo o inconsciente deve ser produzido. Já Mbembe parece pensar nos termos do universalismo criptohegeliano de Fanon, que afirma a existência de uma humanidade destroçada pelo colonialismo, mas que cumpre reconciliar consigo mesma. 

O livro é bem escrito e, malgrado as falhas apresentadas acima, bem argumentado. Recomenda-se como uma boa análise das questões étnico-raciais. Deve desagradar marxistas (pela filiação pós-estruturalista) e liberais (pela insistência em modelos de luta e crítica ao neoliberalismo), mas faz bem o papel de dar seguimento às pesquisas pós-estruturalistas e decoloniais sobre a temática do racismo.

sábado, 21 de março de 2020

O que é lugar de fala?

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?, BH: Letramento: Justificando, 2017

Muito se discute sobre o "pós-moderno", suas consequências, origens, enfim, seu ser. E, neste debate, especialmente nas redes sociais, salta aos olhos a noção de "lugar de fala", que é amplamente utilizada como forma de deslegitimar sujeitos que estão abordando realidades que não são as suas. Essa é a vulgata. Mas há produções teóricas sérias sobre o tema e é sobre estas que iremos tratar, resenhando e, também, criticando um dos livros brasileiros mais conhecidos sobre o tema, da feminista Djamila Ribeiro, chamado "O que é lugar de fala?". Odiada por marxistas e outros setores da chamada old leftdesqualificada como liberal ou pós-moderna, Djamila vem galgando posições na mídia, sendo frequentemente convocada a se pronunciar sobre questões como mulheres negras, sua especialidade, feminismo, racismo, etc. O livro em questão é bem pequeno, e nela a autora articula diferentes questões a fim de responder a questão que o intitula. É marcante a presença de autoras estadunidenses, embora o debate brasileiro também conste em suas páginas. A autora principia o texto com questões relativas sobretudo ao que viria a ser o feminismo negro, defendendo a especificidade da posição da mulher negra nas sociedades ocidentais, especialmente aquelas que foram marcadas pelo escravismo colonial. A dar razão a ela, dentro do próprio feminismo a perspectiva das mulheres negras seria constantemente apagada e questões como aquelas da primeira onda feminista, tais quais o direito ao trabalho, não fariam sentido para as mulheres negras que, uma vez cativas, sempre trabalharam. Outros elementos, como saúde ou educação, índices em que as mulheres negras são classificadas sempre abaixo daquelas brancas, também serviriam como índice para apontar que a mulher negra merece tratamento especial.  A partir disso, ela passa a desenvolver o conceito de lugar de fala. Além das críticas particularmente teóricas, pode-se endereçar à Djamila outras, como  a falta de uma definição precisa; a partir do relatado sobre o feminismo, o conceito de lugar de fala é mais intuído que definido. Trabalhando o ponto de vista feminista (feminist standpoint), conceito proposto por autoras estadunidenses, ela aponta como em uma sociedade todos temos um lugar de fala, que não é individual, mas social; as referências a Foucault e seu conceito de discurso, são explícitas. Para Djamila, nessa estrutura que determina quem pode dizer e o que pode ser dito, os subalternos são desclassificados pela epistemologia dominante em benefício de uma ciência afirmada como neutra. A referência à ciência é vaga; como ela cita Benjamin e seu postulado da necessidade de fazer a história dos excluídos, podemos pensar que se trata das ciências humanas, mas críticos mais mordazes podem apontar que a crítica de Djamila implica o questionamento da objetividade da ciência, e aí entraríamos em um outro patamar, onde se poderia aproximar a autora de terraplanistas e antivacinas - mas seria ir longe demais, a nosso ver. Escrever a história dos subalternos sob o ponto de vista destes, isto é, de modo a que eles ocupem seu espaço, eis seu programa. Claro que se poderia objetar que não basta ser negro para defender um ponto de vista de luta contra o racismo; Holiday e o novo presidente da fundação Palmares ou, mesmo, Morgan Freeman, estão aí para provar. Mas Djamila aponta que não se tratam de experiências individuais, mas, sim, coletivas. O lugar de fala indica uma posição social, não uma mera coleta de experiências. Muitos elementos comumente apontados como próprios ao lugar de fala, e que a própria Djamila incorre em suas redes sociais, como, por exemplo, que que brancos não poderiam falar sobre racismo, são desfeitos pela autora. Ela também faz um apelo a uma mudança social profunda, ou seja, é crítica ao capitalismo. Mas há claramente um direcionamento reformista em sua fala, o que marxistas empedernidos leem como adesão ao sistema estado-capital. Suas referências teóricas vão dos frankfurtianos aos pós-estruturalistas, com foco nestes, passando por Sartre, além das múltiplas feministas, a maior parte das quais também bebendo na French theory. 

Entendemos que ser humano é ser diferente. Quem solapa as diferenças e homogeniza todos nas formas do kitsch, ou na repetição de slogans e propagandas, é o capitalismo e as formas de poder estatal, dividindo a sociedade entre os normais e anormais, buscando pasteurizar a humanidade, reduzida a categoria de consumidores e empresários de si mesmo (empreendedores). Lutar para que possamos ser diferentes pode ser uma luta anticapitalista e antiestatista. Isto não significa, portanto, negar as lutas pela igualdade, mas compreender que a igualdade radical é o sine qua non da construção de um mundo diverso, posto que, por onde passa, o capitalismo faz terra arrasada das diferenças humanas em benefício de um jargão comercial que afirma a humanidade na pertença a uma sociedade de massas. Dar a voz às próprias pessoas, educadas politicamente, eis o que nos é negado a todo momento, ou, mais recentemente, capturado pelo poder na forma do Big Data e disparos de Whatsapp. A reflexão de Djamila é muito interessante e atual, embora, como dissemos de princípio, poderia ser aprofundada, embora o propósito da coleção seja ser uma mera introdução ao tópico. Lembro-me de um filme do grupo francês Dziga Vertov, oriundo do maio de 68; entrevistava-se um operário e sua esposa sobre as condições de vida; as perguntas direcionadas à mulher eram respondidas pelo homem, de modo que ela queda muda durante todo o filme. Ressoar a voz dos oprimidos e inscrevê-los na ordem do discurso, eis, talvez, o chamado de Djamila e seu lugar de fala, que passa longe dos excessos que vemos comumente nas mídias sociais.