sexta-feira, 25 de junho de 2021

As duas vias do contemporâneo

A História (com H maiúsculo) passa e por vezes somente deixa rastros, legando a posteridade a dura tarefa de interpretação. Assim, levas de tintas foram gastas debatendo a origem de coisas tão cotidianas como leis, sociedade e estado. Como faltam documentos, sobra especulação, tema preferido dos filósofos modernos e contemporâneos.

Para alguns, o Estado surge da propriedade; para outros, da guerra de tribos ou povos; para outros ainda, da religião. Ou, senão, de um contrato que visava acabar com a insegurança dos tempos pristinos da humanidade. O mais certo é que o Estado existe e temos que lidar com ele.

Se acompanharmos o nascimento dos modernos Estados, seja na Europa, seja no Brasil, a resposta á questão combina duas vias. Em um contexto de conflito generalizado e de invasão de tribos bárbaras, com o concomitante estabelecimento da propriedade privada e a introdução de uma religião nova, surge o Estado, esta besta-fera.

Se surge o Estado, surgem leis. Não que as pessoas vivessem sem normas; havia costumes, leis da religião (themis), hábitos e a própria questão da convivência em comunidade, que parece impor, de per si, certos padrões mínimos de convívio. Mas, com o Estado, há uma separação entre quem faz ou dita as leis e as pessoas que devem obedecê-las; ou seja, os rudimentos de uma burocracia. Na Europa, essa burocracia já existia; nas terras colonizadas do Brasil, era coisa nova, visto que o poder do chefe, como mostra Clastres, é fluido e dependente do consentimento constante dos governados, o que dá azo para que ele fale em sociedade sem estado. Já no altiplano e no meio do continente, já existia burocracia, escribas, etc.

De todo modo, o surgimento do Estado como surgiu marca que exista uma dominação em curso. Se bem que sempre haja estado em uma comunidade, nas formas que ele vem assumindo historicamente há sempre um grupo social controlando-o e outro, maior, submetido. O por que a maioria se submete á minoria é sempre um enigma. Basta que todos se movimentem para que um caia. Á moda de La Boétie, a servidão voluntária de tantos é a esfinge que nos atormenta.

Se havia conflito, era porque, na Antiguidade, a maior parte dos cidadãos era formado de escravos, que servem como instrumento; do qual os bois são similares para os pobres, como diz Aristóteles. A situação de escravidão foi eventualmente terminada. Em seu lugar, adveio o instituto da servidão e, por fim, o trabalho livre, a competição da força de trabalho no mercado de trabalho em troca de um salário. As coisas não são tão esquemáticas quanto parecem á primeira vista. Formas mais antigas convivem com formas hodiernas e mesmo são seu sustento, como no caso brasileiro, onde uma empresa capitalista, o engenho, convivia com a escravidão de negros. 

Mas a história pode ser lida, como faz a vertente marxista e, mais recentemente, Negri e Hardt, como a luta dos oprimidos para sua libertação. Da objetificação completa na antiguidade, passando para um regime de liberdade maior na Idade Média e outro ainda maior no período do trabalho livre. Não nos restaria, portanto, esperar, visto as peias que nos constrangem no momento, um regime de liberdade completa, já projetado nas fileiras do socialismo, onde os constrangimentos que o trabalho capitalista nos impõem, seriam superados e dariam lume a uma sociedade onde os ideias que vem guiando a esquerda - Liberdade, igualdade, fraternidade - seriam, enfim, realizados?

Mas, há Estado, e ele é, como vimos, controlado pela minoria privilegiada sob os aplausos de uma maioria passiva. O que está entre o sonho de uma sociedade livre e o presente de escravidão salariada é muito pouco, mas as amarras são fortes. Desorganização dos excluídos, fatores discursivos ideológicos, forte poder de dominação dos privilegiados, etc.

Assim, ao invés de caminharmos para um futuro de uma sociedade livre, o que se desenha é uma sociedade de concomitantemente maior liberdade e maior escravidão, uma sociedade uberizada, onde a palavra de ordem é o empreendedorismo. Se cada cidadão for uma empresa, ele é mais livre, na medida em que pode escolher não vender seu serviço para este ou aquele consumidor (o patrão), controla melhor seus horários, et.; mas ele é mil vezes mais escravo, na medida em que todos os direitos trabalhistas lhe são tolhidos; nada de férias, periculosidade, constância; é a vida em um fluxo, sem nenhuma firmeza. É a lei da selva da concorrência implacável entre os excluídos, ao passo que, entre os donos do dinheiro, reina oligopólios e negociatas. Ao mesmo tempo, com esse golpe de morte, desfaz-se a própria ideia de classe trabalhadora e a luta de classes é ganha por w.o., já que os excluídos, os periféricos sequer se reconhecem como classe trabalhadora.

O primeiro passo da esquerda para evitar um destino tão catastrófico, verdadeira estratégia histórica das classes dominantes, é traçar uma estratégia que implique em acolhimento. Ou seja, criar comunidades de interesses na sociedade, que se contraponha á atomização da classe em empreendedores concorrentes. Torcidas organizadas, associações de bairro, grêmios estudantis, movimentos sociais e, claro, sindicatos, fortalecendo-os. Enquanto não se opor á concorrência do mercado capitalista a solidariedade dos dominados, continuaremos perdendo e, sem o futuro de uma sociedade livre de iguais, haverá o devir de uma sociedade de empreendedores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário