quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

O deus dos filósofos

 

“Epicharmos, pois, os deuses são, diz,

vento, água, terra, sol, fogo, astros;

eu penso que úteis são os deuses

[como] dinheiro [argyrion, prata] nosso e ouro somente”


Menandro


Afora o ainda indecifrado sistema de escrita Linear A (de Creta, no mar Egeu, predecessores dos gregos) e daqueles do Linear B (que descrevem a organização e vida social dos micênicos, antecessores dos gregos tal qual os conhecemos e que ajudaram a destruir as bases da civilização cretense), a Ilíada e a Odisseia constituem os documentos mais antigos do futuro Ocidente. Nessas duas obras máximas de poesia épica se narram as peripécias dos gregos em torno da guerra de Tróia. A Ilíada é mais conhecida, já que virou um filme hollywoodiano, Troia, com Brad Pitt no papel de Aquiles. Várias noções distribuídas pela cultura popular se originaram da Ilíada, como as expressões ‘cavalo de Troia” ou “presente de grego”, em referência às astúcias dos gregos a fim de vencer os troianos: o famigerado cavalo de madeira, cujo conteúdo escondia poderosos guerreiros. O cavalo foi ideia de Odysseus ou, em sua versão latinizada, Ulysses, protagonistas da Odisseia, que narra seu retorno à casa após os eventos da guerra.

Sobre o mundo grego ou pré-grego de então, Finley escreveu memoráveis páginas em O mundo de Ulysses, onde, a partir dos poemas épicos de Homero, autor da Ilíada e da Odisseia já no século VIII antes da Era Comum (enquanto os eventos dos dois poemas se passaram antes da assim chamada Idade das Trevas grega, originada com a invasão de outra tribo helênica, do norte, os dóricos, em torno o século XII a.E.C.), desagregando, assim, o mundo micênico —, a estrutura social do período é explicitada. Tratava-se de uma sociedade organizada em torno de senhores, de cortesia, de troca de presentes e favores. Uma sociedade de nobres, por assim dizer.

Snell, em A descoberta do espírito, lembra-nos da distinção que ocorre em poucos séculos na cultura helênica. Homero, antes do século de Péricles (século V a.E.C.) era lido como descrevendo fatos históricos. Já nos escritos de Aristóteles, na Poética, o Estagirita distingue entre a Historia, que narra fatos, e a Épica, fruto da imaginação de um autor. Homero e seus versos perderam o status de veracidade em benefícios de estudos como os de Heródoto ou Tucídides, historiadores sérios e lidos até hoje com embasbacamento.

Os gregos eram politeístas, embora houvesse entre eles defensores do monoteísmo, mas a primeira via era a dominante. A religião grega era uma religião cívica, ou seja, estava ligada com os cargos públicos, com a liturgia da cidade, embora não houvesse culto oficial, somente deuses protetores das distintas poleis e lugares de culto, como os santuários.

Na Ilíada, como na Odisseia e, também, em Hesíodo, outro poeta que canta os feitos e presença dos deuses, as divindades não são encaradas como separadas do mundo. Claro, reinam sobre plagas do real, sob a égide de Zeus, mas são divindades personalizadas, presentes, atuantes, que interferem no mundo a todo instante segundo seus caprichos. Por exemplo, logo no começo da Ilíada, Aquiles, principal soldado grego, está furioso com Agamenon, líder das tropas gregas, e pensa em ferir-lhe com a espada. Athena, deusa da sabedoria, contém sua mão e Aquiles embainha a espada. A deusa interferiu diretamente no processar dos fatos, fez-se presente e está tão preocupada com o correr do mundo quanto consigo mesma, já que é de seu interesse que os mortais, pelos quais se afeiçoa, prosperem e encontrem glória.

Trata-se de um deus-interventor. A mitologia grega está cheia de exemplares assim: deuses se imiscuindo com os assuntos de mais baixa estatura, segundo seu capricho, e, assim, decisivamente alterando o desenrolar dos fatos. Zeus tem vários filhos com mortais, filhos prodigiosos. Dionísio preside festivais Diana abençoa os caçadores, Eros influencia em nossas paixões, etc. O mesmo ocorre em Hesíodo, onde os deuses regem os assuntos terrestres; eles basileuontai: dominam, reinam, são imortais e poderosos.

Séculos depois, Xenófanes de Colofão (c. 570-528 a.E.C.) rirá desses deus antropomorfizados, feitos á imagem e semelhança dos humanos. Deuses que sentem ira, que se encolerizam, que se apaixonam por mortais, que brigam. Ele diz que os etíopes pensavam que seus deuses eram negros do nariz achatado, assim como os gregos pensam que seus deuses são brancos do nariz fino. Xenófanes defendia não um deus-interventor, mas um deus como princípio de organização do mundo. Xenófanes, um monoteista entre politeístas (e cujo nome significa emblematicamente algo como “aparição estrangeira”), não utiliza o termo princípio (archē) mas é assim que Simplício o comenta. O deus dos filósofos não é o deus da religião. O deus dos filósofos é um deus que serve como princípio de explicação do mundo, não como veículo de crença, ainda que o filósofo seja religioso, pio e casto.

O deus dos filósofos serve como primeiro motor, como causa sui, móvel imóvel, não como deus ex machina, ou seja, como um recurso que se utiliza quando já não se sabe bem como proceder. O deus da religião é um deus interventor, que predica aos mortais o que fazer, como agir, o que pensar, que fornece respostas que a filosofia e a ciência não podem (por ora) fornecer. É um deus que conforta e, porque o que se exige dele é conforto, deve possuir a aparência e os traços humanos; afinal, é pouco provável que alguém se conforte com uma pedra ou um galho.

O deus dos filósofos advém do raciocínio, de uma sequência de causas e efeitos que conduz a asserção de que há um princípio do kosmos, que uma mente assim o ordenou e que, da mesma forma, assim o mantém. Já o deus da religião é um deus revelado e cujo forma de se mostrar divino é, precisamente, o milagre, ou seja, uma alteração sobrenatural dos rumos e caminhos que a natureza encontrou para si própria. Sem milagre, toda a narrativa bíblica perde sentido e o Cristo se torna somente outro profeta que vagou na terra dos judeus.

Isso não quer dizer que a religião seria totalmente irracional. Ao contrário, muito ao contrário: algumas das mentes mais poderosas que pisaram o planeta eram religiosas e dedicaram-se a provar a existência de deus e interpretar as escrituras. Tratam-se, em fato, de dois registros de verdade, dois conceitos incompatíveis: a verdade-revelada e a verdade raciocinada. Quem acredita que, em um átimo, a estrutura mesma do universo pode ser conhecida e quem pensa que a natureza deve ser interrogada para que extraiamos dela a verdade. A filosofia e a ciência se encaminham nesse último sentido e, todos os dias, dela usufruímos os frutos, já que ele nos confere uma vida mais aconchegante (além de problemas, claro; mas isso é assunto para outro texto).

Já a verdade-revelada, a qual perdeu todas as batalhas que travou contra a ciência, historicamente falando, nos oferece conforto, o conforto de uma mentira muito mal contada. A escolha é, portanto, entre uma verdade dura, mas que melhora nossas vidas, ou uma mentira bonita, mas que nos ofusca a verdade. Não é uma escolha tão difícil assim…

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