Para Dionísio
Ó senhor, o jovem touro do amor
e as ninfas de aspecto sombrio,
de um lado, a púrpura afrodite
jogam juntas se voltando, de outro,
do alto vendo os cimos,
eu tocando em teu joelho, tu pois querida vinhas agradecida
ouvir os votos, dando-me ouvidos
a boceta [κλευβουλῳ] boa tendo devindo
símbolo do meu amor [ἔρωτ']
ó Deynuse, receba
O blog se propõe a debater os temas elencados, expondo a produção autoral de Felipe Luiz, o Guma, mestre em filosofia pela UNESP-Marília e ex-militante do movimento estudantil.
quarta-feira, 25 de setembro de 2019
sábado, 21 de setembro de 2019
Fragmento sobre a éris
Se duas pessoas discordam, há um conflito instalado. Pensar o conflito é tarefa da filosofia. Mas nem todos os filósofos salientam o conflito. Para alguns, há concordância impera, visto que, só há base para o conflito se houver acordo prévio em conflitar: pode-se dizer, mesmo na guerra há certos acordos. A filosofia nasce sob o signo do conflito. O primeiro filósofo que, segundo a tradição, escreveu, Anaximandro, fala do conflito cósmico, da injustiça que as coisas se pagam; mas, se há injustiça, há também, para ele, reparação na ordem do tempo, necessariamente. Esta noção é perpetuada por Heráclito que mostra como mesmo no pólemos, a guerra, há uma harmonie, uma harmonia. Estou dizendo estas coisas porque todas as principais teorias políticas da modernidade estão pautadas na ideia de conflito; o liberalismo e a competição, o nazifascismo e a luta contra os comunistas, o socialismo e a luta de classes. Reconhecer que há conflito é parte fundamental da própria colocação na disputa; posto que, caso não haja sobre o que disputar, não há necessidade sequer de falar. Lembremos as relações que o logos, a racionalidade do mundo, mantém com o verbo légein, dizer, falar. Se há conflito, é porque falamos, expomos nossas divergências. A própria noção de democracia pressupõe o conflito constante, mesmos em suas origens, posto que os gregos eram um povo que disputavam bastante. Quem se furta ao conflito, está condenado a perder posições, posto não reconhecer a necessidade de lutar para vencer. Nesse sentido, o Islã está mais bem paramentado que o cristianismo ou o taoísmo na luta pelo domínio do mundo, posto reconhecer a necessidade da luta para evangelizar. Os próprios protestantes neopentecostais estão na luta constante contra o diabo, que enxergam em toda parte. Se estar em sociedade significa conflito de interesses, penso ser necessário uma analítica que dê conta de mostrar os interesses em conflito em um gradil ontológico. Uma ontologia bélica, que situe o conflito no coração do ser, mas abrindo mão da harmonie heraclitiana, que se replica em Hegel e, por conseguinte, nos marxistas. Na minha modesta opinião, esta é uma tarefa que está para ser feita no campo da filosofia contemporânea.
Sobre o livro "Chutando a escada", de Ha-Joon Chang
Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica
Ha-Joon Chang, SP: EDUNESP, 2004
O livro de Chang já se tornou um clássico contemporâneo. A tese central do livro é que os países ricos adotaram historicamente uma estratégia de desenvolvimento diferente daquela que vêm prescrevendo aos países subdesenvolvidos. Daí que estejam "chutando a escada" por onde subiram, impedindo que os países subdesenvolvidos possam se desenvolver. Assim, se trata de um livro escrito contra o neoliberalismo das instituições internacionais, como o FMI, o BCE, o BIRD e a OMC, que defendem o enxugamento do estado, a adoção de certas políticas, como o câmbio flutuante e o livre comércio, e de certas instituições. Chang, através de acurada pesquisa histórica, mostra como os países desenvolvidos , para se desenvolverem, foram extremamente protecionistas, adotando altas tarifas sobre os manufaturados importados, além de não terem adotado a democracia e as instituições de proteção ao trabalhador senão tardiamente. Chang não defende que os países da periferia do capitalismo abram mão da democracia, por exemplo; apenas aponta que o atual sistema internacional, em sua formação, não adotou estas instituições prematuramente, mas que somente em um período posterior, quando a armação do sistema já estava constituída, isto se mostrou. Se Chang tem a noção de que os países desenvolvidos bloqueiam o desenvolvimento dos demais, exigindo, por exemplo, para empréstimos internacionais a adoção de certas políticas, como vimos recentemente no caso grego, falta a Chang uma teoria do imperialismo, onde se mostre que, na verdade, os países ricos vivem do saque daqueles pobres; neste sentido, a leitura de Marini é complementar, ao menos no tocante ao caso latinoamericano. O tom do livro é austero, posto que Chang busca se mostrar como autor de um estudo científico, ou seja, suas conclusões surgiram no correr da pesquisa, não estavam prontas de antemão. Segundo o perfil da Editora UNESP no Facebook, publicadora do livro no Brasil, este texto é uma de suas publicações mais vendidas. Em fato, muitos liberais tem se dedicado a contrapor-se às teses do alfarrábio de Chang, afirmando, por exemplo, que os EUA não se desenvolveram devido a políticas protecionistas em relação à Inglaterra, centro industrial do sistema no século XIX, mas apesar destas políticas. Os liberais, como se sabe, apesar de se apresentarem como cientistas, são mais apóstolos que pesquisadores sérios, malgrado a experiência histórica os contradiga dia-a-dia. Por exemplo, desde a adoção do neoliberalismo, com Collor, a economia brasileira perdeu complexidade e se reprimarizou, com leves curvas fora da reta. Apesar disso, continuam os liberais com sua cantilena, que só beneficia os donos do capital e os imperialistas internacionais, afirmando que "vantagem comparativa" d Brasil são os produtos primários, de modo que devemos nos especializar nestes, e que tanto faz vender aviões de ponta ou soja in natura, uma besteira contraintuitiva. Esperemos que o livro de Chang sirva como uma trincheira, apesar das fraquezas apontadas, contra a maré liberal que tomou o Brasil. Mas Chang não é socialista, apenas um intervencionista moderado. Não adianta pedir que gatos ponham ovos, portanto. Se contribui com o debate, não é de suas posições que encontraremos a solução dos problemas brasileiros, apenas sua mitigação. A solução, meus caros, há de vir da boa e velha seara socialista, pensamento sempre atual enquanto existirem classes sociais e capitalismo.
sexta-feira, 20 de setembro de 2019
Sobre o livro Heidegger e sua herança, de Victor Farias
Heidegger e sua herança - o neonazismo, o neofascismo e o fundamentalismo islâmico
Victor Farias, SP: É realizações, 2017
Victor Farias ocupou o centro do debate filosófico internacional quando, na década de 1980, publicou seu estudo sobre as relações entre Heidegger e o nazismo, relações estas que vêm alimentando a exegese da obra do autor teutônico. Farias, ele mesmo outrora aluno de Heidegger, escreveu o livro ora analisado na mesma linha: mostrar como o pensamento de Heidegger é profundamente imbricado no nazismo, sendo, até mesmo, mais radical que o nazismo realmente existente, posto que Heidegger era ligado ao grupo das S.A., assassinados na famosa Noite dos Longos Punhais, em 1934, visto se oporem ao realismo político do grupo dirigente do NSDAP (Partido Nazista), que se aliava, por exemplo, com setores católicos. O nazismo autêntico de Röhm e outros dirigentes da S.A. era anticristão, defendendo, por exemplo, a da homossexualidade e o paganismo, algo que colocava entraves às alianças de Hitler com os setores conservadores do Exército e do clero católico. Heidegger foi reitor e, em seus escritos, defendia um nazismo filosófico, antijudaico-cristão, que colocasse a questão do surgimento de um novo homem. Para Lukács, Heidegger faz parte do movimento do irracionalismo na filosofia contemporânea, que nada mais é que um movimento reacionário que visa combater as conquistas da razão, como o materialismo, e as asserções da revolução francesa, tal qual a igualdade entre os humanos. Em seu livro, Farias recupera todos estes elementos para mostrar como o pensamento heideggeriano alimenta, há décadas, o que de mais extremo a direita tem produzido, como movimentos neonazistas, o neofascismo e o fundamentalismo islâmico, todas correntes que se opõem a conquistas da modernidade, como a Declaração Universal dos Direitos do homem e a igualdade entre homens e mulheres. O neonazismo, contudo, se esconde atrás de uma capa supostamente democrática, afirmando que os povos têm direito a existência própria, mas em seus próprios territórios. O socialismo e o liberalismo, enquanto internacionalistas, seriam negativos pois desvinculam o homem da terra. Defensores de "raças puras", se opõem à miscigenação, posto que esta enfraquece os povos. Do mesmo modo a democracia, que iguala os homens, quando, na verdade, a sociedade deve produzir uma elite dirigente que conduza a todos. Há de espantar que o fundamentalismo islâmico também se alimente da seara heideggeriana. Quem fez a mediação foi o islamólogo francês Henri Corbin, tradutor e divulgador de Heidegger na França, mais tarde professor no Irã. Para os fundamentalistas, o Ocidente encontra-se em franca decadência e somente o Islã pode regenerá-lo, enquanto verdadeira religião universal - tudo isto pautado em Heidegger, como mostra Farias. Este critica ainda o governo bolivariano venezuelano, por se cercar de heideggerianos neonazistas, como Ceresole. Outra alvo da crítica de Farias é o criptofascismo de Dugin e sua Quarta Teoria Política, teoria esta que vem orientando a ação do governo russo, o qual, como se sabe, vêm fomentando a extrema-direita mundo afora. Farias analisa detalhadamente todos estes movimentos e ideias, mostrando, através de documentos, sua pertença inequívoca à seara fascista heideggeriana. O problema é que boa parte da filosofia contemporânea foi muito influenciada por Heidegger, e teóricos que estão na moda, como Foucault. Talvez seja uma intrusão subterrânea do fascismo na filosofia, intrusão esta que precisa ser combatida por outras correntes do pensamento político, como liberais e socialistas, revivendo a aliança de outros tempos, que enterrou a serpente fascista. O livro de Farias é uma contribuição a este debate, e há de ser de grande valia.
quarta-feira, 18 de setembro de 2019
Tradução do sermão da montanha
"À vos eu digo, aos que escutam, amai vossos inimigos, benfazejos sedes aos que vos odeiam, abençoai quem vos amaldiçoa, rezai para aqueles que vos insultam. Quem vos bater na face, fornecei a outra"
Lucas 6:27-29
terça-feira, 10 de setembro de 2019
Marcela II
marcela,
mais um ano se passou
eu cá estou
sem a sua mão
marcela
nunca escolheremos a miséria
diante da riqueza de seu coração
Marília, inverno de 2019
mais um ano se passou
eu cá estou
sem a sua mão
marcela
nunca escolheremos a miséria
diante da riqueza de seu coração
Marília, inverno de 2019
segunda-feira, 9 de setembro de 2019
A sede
Sempre gostei
de bebidas quentes, desde criança. A origem deste gosto, tão caro aos ingleses,
em minha pessoa me parece incerta. Talvez ainda feto informe tenha me afeito ao
líquido amniótico, este verdadeiro caldo da vida. Talvez, já infante, o contato
com outras bebidas que o engenho humano possibilita seria a verdadeira chave de
meu gosto peculiar. Li certa vez que, em quase todas as línguas, as palavras
para chá se assemelham, dada a origem comum da difusão deste hábito no sul da
China. O certo é que, em polonês, herbata é o termo, e não guarda muitas
relações com outros vocábulos, como Tea, Thé ou Tee.
O mais certo, longe das genealogias
bambas, é que o chá foi a continuação de meu vício. Tomava chás de todos os
gêneros, de ervas, de legumes, meros caldos, sopas. Nada poderia se interpor
entre um homem e sua fixação. Para mim, era necessário sempre mais, e o mero
ritual dos chá das cinco eu transformava em uma verdadeira compulsão por me
brindar com chá a todo instante, não só de ervas, como dito.
Meu jantares, ainda na infância,
eram sempre regados a sopas. Nunca gaspacho, esta verdadeira heresia ibérica,
mas, sim, sopas muito quentes, sem sólidos flutuando, ao contrário: gostava de
tudo bem batido, bem homogêneo. Dizem que o universo já foi homogêneo e que
tende à homogeneidade, quando a cobra comerá o rabo e a energia se esvairá.
Estes impulsos primitivos me guiavam, ainda que inconscientes, na busca pela
melhor bebida quente.
Nascendo
os dentes do juízo, e, agora, senhor de minha vida, pude dar vazão acentuada
aos meus instintos. Lenta mas firmamente fui me guiando na experimentação de
outros tipos de bebidas quentes. Se antes, sopas e caldos eram meu ápice, agora
o perigoso álcool se assomava. Como diz Baudelaire, devemos sempre nos embriagar,
se não de álcool, de vida. Eu unia a alga com o touro, tal qual Lorca, e me
satisfazia com os prazeres que os etílicos podem nos proporcionar.
Não me confundam com um relés
alcoólatra. Não bebia porque era líquido, à moda da tirada de Jânio, mas porque
era quente, dando vida ao esqueleto. Como se sabe, em alguns idiomas as bebidas
alcoólicas são conhecidas como “spirits”, exatamente porque nos concedem ânimo,
dando forças para que a carcomida carcaça cotidiana possa ir adiante, mais uma
hora, mais alguns dias. Bebia exatamente para buscar o calor que a bebida,
sendo energética, podia proporcionar.
Eu possuía meu trabalho, estudava,
namorava. Mantinha relações humanas normais. Mas a curiosidade é o maior mal e
o maior bem do homem. Pela curiosidade nos tornamos a espécie dominante do
planeta, quiçá do cosmos; pela mesma curiosidade devemos presas do
infortúnio e do desconhecido, afinal, nos expomos a ele. Quem poderia imaginar
que, em minha vida de dipsômano quente eu iria me entregar ao inaudito, ao
misterioso, ao absolutamente novo, ao menos para mim?
Um dia, em minha casa, passando
pelos canais de televisão, vi uma disputa pela sobrevivência levada aos últimos
níveis. Não, nada de corpos dilacerados, mas homens comendo os piores insetos,
se sujeito, a troco do vil metal, à situações perigosas, à infâmias mil. Um
destes acintes consistia em beber sua própria urina. Terminado o programa, fui
me deitar, a fim de dormir e, no dia seguinte, contribuir como produtivo
cidadão de nossa sociedade de capitalismo periférico brutal. Mas o sono não
vinha. Minha cabeça rodava entre imagens, provenientes de um sonho lúcido, onde
eu invadia a privada de meus vizinhos objetivando coletar o mel de seu canal
excretor. Somente depois de me fartar com outras bebidas quentes, como nossa
boa e velha branquinha, consegui encontrar a paz e me adormecer.
Mas não foi vitória, somente uma
trégua. Dias se passavam e eu era tomado por um impulso crescente de tomar
minha própria urina. A idéia me repugnava, eu a rejeitava fisicamente, sentindo
fortes ânsias de vômitos quando era chegada a hora de mijar. Se o inferno
realmente existir, e tivermos a infelicidade de descer aos domínios do Tinhoso,
haverá a hora em que mesmo ele, tornado nossa residência, nos assomará como agradável,
e as brasas escorchantes se assemelharão ao fogo de um isqueiro. Assim, com o
tempo, fui me acostumando com a idéia, e o que eram náuseas logo se tornou o
mais puro desejo. A cachaça, o uísque, o vinho, tudo isso se assemelhava em
meus pensamentos a traques, quando as bombas atômicas eram produzidas de hora
em hora por mim.
Destarte, me entreguei ao desejo. Em
outra madrugada de insônia entreguei-me a tragar o tão cobiçado néctar. Minha
primeira reação foi a do sublime. Kant, em um de seus livros, descreve o
sublime como a sensação de se estar diante de algo muito maior que nós mesmos,
infinitamente grande, como o mar revolto ou uma grande montanha. Nunca estive
em montanhas, mas certamente as sensações devem guardar relações. Aquele caldo
de mim mesmo, quente, bem líquido, de cores e fragrâncias variadas, tudo isso
me preenche de tal forma que posso dizer que já freqüentei os céus.
Hoje me vejo na solitária posição de
me tornar amigo de cadeirantes apenas para poder afanar suas garrafas de urina
e vertê-las em minha goela. Invado banheiros e capto, no auge de minha
dipsomania, o suprassumo de desconhecidos, somente para poder apreciá-los com
uma boa refeição. Fermento a urina para produzir urina alcoólica e assim, me
embriagar duplamente.
Os
dias passam. Nunca conhecemos suficientemente nosso próprio eu, senão diante de
experiências extremas. Dizem que a urina possui poderes curativos. Não o posso
afirmar medicalmente, mas, em termos de boaventurança, certamente, todos nós
guardamos o paraíso em nossa fábrica
daquele líquido dourado com ouro, que inspira os melhores sentimentos e possui
o aroma de um deus.
sexta-feira, 6 de setembro de 2019
A espuma
— Vamos
por partes; começar pelo começo. Aí podemos ver como vamos tratar com a
imprensa. O que você acha? Sempre que escrevo os relatórios aqui da INTERPOL é
o meio que adotamos.
— OK,
tudo bem. Mas é uma história meio maluca. Além disso, não terminamos as
investigações. Afinal, não é fácil entender como meio milhão de pessoas
morreram de uma hora para outra, sem bombas nem armas de fogo. Ao que parece,
tudo começou com aquela espuma estranha que encontramos por toda parte.
— Diga
novamente o que era essa espuma.
— Pelos
vídeos de segurança que vimos, as mãos das pessoas, pouco antes de morrerem,
estavam cheias de uma espuma de cor gelo. Parecia espuma de um bom sabão de
coco. Aliás, tudo indica que a infecção, se é que podemos usar este nome,
começou em um banheiro público. É de lá que vieram os primeiros vídeos. Bem no
centro da cidade, era um banheiro aberto a toda população. Todos o utilizavam.
— Já
estive na ilha a trabalho. Era um banheiro ao lado daquele supermercado grande,
não é? Creio que o utilizei algumas vezes nas minha estadia por lá.
— Esse
mesmo. Tudo começou quando alguém simplesmente lavou suas mãos com esta espuma.
Ela gruda na pele, não sai com água nem esfregando. Ao contrário, parece se
propagar no ar, vai aumentando.
— Aumenta
no ar? Vocês conseguiram alguma amostra? Um material com propriedades únicas,
ao que parece.
— Há
resquícios dela por toda parte, especialmente nos corpos, nos cadáveres, nos
olhos destes. Uma cena muito forte de se vislumbrar.
— Nossa.
Também, meio milhão de mortos em algumas horas. Qual arma consegue isso? Uma
bomba atômica? Nem o ebola mata tanto, tão rapidamente.
— Depois
do primeiro infectado, os vídeos gravaram como tudo se passou. Essa pessoa, que
calmamente foi lavar suas mãos depois de utilizar o banheiro, ficou horrorizada.
Corria por toda parte. Ela gritava, se debatia, andava por todos os lados.
Parece que a infecção pela espuma é extremamente dolorosa.
— E como
se espalha?
— O
número 1 logo entrou em contato com outra pessoa. A espuma foi parar de suas
mãos para outras mãos. Tentaram lavá-la, mas ela ia crescendo, aumentando de
tamanho. Logo, eram centenas, correndo pelo centro da cidade, se tocando, se
infectando. Em questão de minutos, o número 1 caiu para nunca mais se levantar,
todo envolto nesta espuma maléfica.
— Bem, e
como se propagou do centro para as periferias?
— Ora, o
centro é supermovimentado, ainda mais em um dia de semana. Praticamente toda a
ilha se dirigia ao centro, seja para fazer compras, seja para trabalhar. Além
disso, reparamos que, depois de contaminada, a pessoa se move freneticamente,
sem sentar. Como se sofressem de acatisia aguda. Andando de um lado para outro,
você imagina como tudo se passou em uma ilha pequena como aquela. O primeiro
caso infectou várias outras pessoas, que foram infectando outras, e outras.
Tudo muito rápido, a partir de um núcleo naquele banheiro.
— Acatisia?
O que é isso?
— É a
impossibilidade de se sentar, de ficar parado. As pernas se mexem
freneticamente, a pessoa sente um ímpeto irrefreável de se movimentar, e
termina por fazê-lo.
— Entendi.
E do que elas morrem exatamente? Esgotamento físico de tanto se mexer?
— Não
sabemos, os exames não foram feitos. Diante destas evidências, qual
infectologista quer se aproximar disso. Além disso, não era uma ilha tão
importante. Pequena, isolada; as mortes doem menos. Mas estamos tentando
encontrar médicos que topem se arriscar. O problema é que toda a região central
está tomada pela espuma, de modo a estar intransitável. As imagens das câmeras
foram obtidas através do sistema online do governo por nossos técnicos de
informática e através de drones. Só estivemos nas praias, em algumas casas de
periferias menos afetadas. Mas sempre com muitos corpos tomados de espuma.
— E quem
ou o quê seria o responsável? Ataque terroristas? Algum governo inimigo? A ilha
era pacífica, nem exército possuía.
— Não
sabemos. As gravações não mostram nada de extraordinário no banheiro antes do
primeiro infectado. Claro, podem estar adulteradas, pode ser que não tenha sido
algo no sabão, mas na reação deste com algum produto que a pessoa tinha nas
mãos. De todo modo, há uma quarentena declarada, ninguém pode se aproximar. Se
for um vírus, ele não sobreviverá tanto tempo sem vetores.
— Vocês
pensaram em como noticiar isto? Pode gerar pânico. Quais informações foram
passadas à imprensa?
— O que
você viu. A ilha está sem tráfego aéreo
ou marítimo por motivos internos. Como provoca acatisia, as pessoas não
conseguiram filmar e divulgar na rede. Então, há uma atmosfera de espera. Mas
alguns jornalistas já começam a investigar. Por isso a quarentena; a ilha está
cercada de navios, nada passa.
— Bem,
esperemos então. O importante é que nada saia da ilha. E a história é
particularmente horripilante. A pessoa pensava se lavar, se limpar; na verdade,
estava se matando. O remédio, no fim das contas, era o mal.
— Verdade. E um mal contagiante, fulminante, mortal. Quantas
vezes não fazemos o mal pensando estar fazendo o bem?
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